Maria Francisca Gama: “Eu não ostracizo fantasmas na literatura. Mas mostro fantasmas de outras pessoas.”

Entrevistámos a autora do livro do momento, “A Cicatriz”, uma autoficção ficcionada, como assim lhe chamamos, que segue um casal de namorados de viagem pelo Brasil a quem acontece uma desgraça que lhes muda a vida para sempre.

Foto: Joanna Correia
27 de março de 2024 às 11:42 Rita Silva Avelar

Lê-se num dia, se o leitor assim quiser, o novo livro da jovem autora Maria Francisca Gama, que em 2022 publicou A Profeta pela Suma, chancela da Penguin Random House. Desta feita, a escritora debruçou-se sobre o tema da violência contra as mulheres, a partir de uma viagem que a protagonista faz ao Rio de Janeiro com o seu namorado de então. Um relato duro, escrito de forma limpa, escorreita, bruta, mas muito realista e capaz do efeito page-turner. Formada em Direito e nascida em Leiria, diz que lê desde pequenina e na solidão, e assim a imaginamos a escrever A Cicatriz (Suma), que mostra uma devoção à escrita e ao prazer da leitura tão grande quanto a sua imaginação para contar esta história que, embora não tenha nomes, é descrita na primeira pessoa, num exercício literário astuto. Aos 26 anos, podemos dizer que é já uma autora especial da nova geração.

A Cicatriz é um exercício de autoficção ficcionada, podemos dizer? Eras já fã do género? Que escritores lias quando eras mais nova?

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Eu acho que acabei por escrever este livro no registo e no género em que está, porque, enquanto leitora, as histórias que permanecem mais tempo em mim são aquelas que são escritas na primeira pessoa, sejam ou não fruto da realidade de quem as escreveu. Acabou por se tornar inevitável que a história fosse escrita na primeira pessoa, porque o que a personagem principal conta é muito íntimo. Se nem a personagem principal contou às pessoas da sua vida pelo que passou, não seria outra a pessoa a fazê-lo ao leitor. Eu gosto muito de ler histórias escritas, tanto por mulheres como por homens, em que é usado este artifício de mostrar aos leitores a vida, não como ela é, mas como poderia ser.

Esta é uma autoficção ficcionada, porque está escrita na primeira pessoa, mas realmente não se baseia em nada daquilo que vivi ou que vi. Baseia-se, sim, em algumas coisas, em experiências pessoais, em amigas, não na parte mais dura da história, mas na questão de a violência de género continuar a ser uma realidade. Não é um exclusivo do Brasil, passa-se, infelizmente, em todo o mundo. E, ao longo da minha jornada enquanto leitora, tenho lido muitas escritoras mulheres. Posso destacar, por exemplo, a Annie Ernaux que ganhou o Prémio Nobel, e que usa a sua vida [na escrita], mas também outras vidas. Ou a Tatiana Salem Levy, que escreveu a Vista Chinesa, inspirada numa experiência de uma das suas amigas mais próximas. Escrever na primeira pessoa é estar num lugar que pode ser visto como desonesto, não é? Porque estou a escrever sobre uma coisa pela qual não passei. Por outro lado, também é um lugar que encontra muito mais empatia do leitor do que se [o livro] fosse escrito de outra forma.

Foto: Joanna Correia

Estudaste Direito, mas sempre te viste mais na escrita. Porquê esta primeira escolha?

Do Direito ou da Escrita?

Do Direito.

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Queria e sempre quis ser escritora, desde muito jovem, mas tinha a percepção (que confirmo agora na idade adulta e que é a correta), de que é muito difícil viver da escrita em Portugal. E, por isso, o exercício que fui fazendo ao longo da minha vida estudantil foi procurar uma área que me permitisse continuar a escrever, que depois verifiquei não ser Direito, no sentido em que o trabalho de escritório de advogados não era compatível com a escrita, e com o nível de escrita que eu queria atingir e que quero atingir. E, então, na altura do secundário, impulsionada por muitas pessoas que me diziam que eu era muito argumentativa e que tinha um grande sentido de justiça, acabei por escolher Direito. E gostei muito de estudar Direito. Foi um curso que me acrescentou muito, não só em várias áreas, mas também na área da Escrita. Tornei-me mais sintética, mais preocupada com o pormenor, com eliminar o excesso.

A tua personagem não tem medo de mostrar as vulnerabilidades, de assumir os preconceitos, de mostrar as dúvidas da idade, de expor como as amizades são vulneráveis. Sentias que precisávamos de mais vozes assim?

Eu acho que sim. Vejo que há cada vez mais jovens a ler. E percebo que aquilo que os jovens querem ler são personagens com as quais se identificam. A verdade é que esta idade dos 18 aos 35 é uma fase de construção de personalidade. Uma fase de descoberta de quem nós somos, em que é que acreditamos, quais são os preconceitos com os quais vivemos durante toda a nossa vida até então, e que nos foram incutidos pelos nossos pais, pelos nossos meios. É, também, a altura de os desconstruir. Por vezes, os leitores querem personagens perfeitas, que são boazinhas e que sabem a diferença entre o certo e o incerto, entre as pessoas boas e as más e tudo mais. Mas todos nós somos feitos de muitas dúvidas. Por melhores pessoas que sejamos, temos preconceitos e temos coisas que precisamos de resolver. E eu acho que as personagens são tão mais interessantes quanto mais se assemelharem às pessoas da vida real, porque é aí que cada leitor se encontra, se perdoa e também melhora, que é um dos objetivos. Eu quero que um leitor olhe para uma personagem em que é possível notar algum racismo ou alguma dificuldade em aceitar a diferença, ou até, como acontece no A Cicatriz, em que ela acha a pobreza bonita, que é uma coisa tola, não é? A pobreza não pode ser bonita. Queria que esse leitor, criticando a personagem principal, revendo-se nela, possa pensar que ela não devia agir assim.

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Este esquema de construção literária, que tem por base a chegada a um clímax, está a fazer com que as pessoas te leiam num dia. Pensaste muito nisso?

Se calhar devia dizer que sim, mas não. Ou seja, aquilo que aconteceu foi que quando eu comecei a escrever a história eu não tinha muitas certezas para onde é que ia. Foi um processo de despejar um conjunto de coisas que me estavam na cabeça, que, depois, fui aperfeiçoando naturalmente e que deu origem ao livro. Aquilo que eu pensei, o motivo foi o seguinte, o qual começa com cinco dias para o dia e vai diminuindo, tem a ver com a forma como eu própria conto ou falo sobre coisas que me são difíceis. Normalmente começamos pelo geral e depois vamos contando: ‘pronto, agora eu vou dizer, mas antes queria só explicar que não sei o quê’, não é? Quando estamos a dar uma má notícia ou a contar a alguém que mentimos. Foi um bocadinho essa perspectiva do ‘está a custar muito partilhar isto’, e a história vai decrescendo até o momento mais triste da vida dela [a narradora].

Como reages às pessoas que querem saber que partes da história aconteceram? A separação do que é ficcionado ou não?

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A minha experiência, que já é de alguns anos, indica-me que os leitores, na sua maioria, não perdem muito tempo a pensar sobre isso. Talvez mais com autores portugueses porque os podem encontrar na rua e isso acrescenta aqui uma camada de curiosidade. Mas, no caso em particular d’A Cicatriz, tenho de admitir que me preocupava que houvesse esta confusão entre a vida real e a ficção porque uma das coisas que é abordada no livro, a situação pela qual a personagem principal passa, é muito dura, e eu não queria que as pessoas achassem que eu passei uma coisa pela qual não passei. E a verdade é que eu deixei essa indicação no final do livro, de que o livro é ficcional, mas isso não impede que alguns leitores achem que eu os estou a enganar e que aquilo é sobre mim e tudo mais. E, quanto a isso, eu não posso aqui fazer nada.

Escreves sem metáforas, com franqueza, rudeza, nalguns casos, ao contrário de alguns autores portugueses da geração anterior à tua. Pensas muito nisso ou é uma coisa que vem de ti?

Eu acho que principalmente em livros que têm muita descrição, como é o caso d’A Cicatriz, o meu objetivo é que enquanto leitora possas dizer que conheceste uma parte do Rio de Janeiro. Eu acho que as metáforas e todos os recursos estilísticos que eram mais utilizados, talvez pela geração anterior à minha, retiram alguma objetividade que por sua vez beneficia o imaginário do leitor. Ou seja, a partir do momento em que eu digo ‘a parede é branca’ e não digo ‘a parede é branca como uma nuvem’, sei que a parte ‘como uma nuvem’ não acrescenta muito. Talvez os leitores procurem mais, na ficção, a vida. Pelo menos é essa a percepção que tenho tido. A autoficção tem muita saída, a ficção literária também tem muita saída, isso tem a ver com o facto de as pessoas talvez quererem evadir-se da sua vida e viver outras. E na procura desse outro universo gosto que aquilo que eu escrevo - e é assim que eu me identifico também como leitora -, seja o mais próximo possível da realidade. Ajuda-nos a voar mais rápido para lá.

Foto: Joanna Correia

No momento da tragédia que acontece a esta mulher, vais buscar elementos muito descritivos, que têm uma força e uma vivência quase reais. Contas que te sentias violada. Em que momento sentiste isso?

Eu pesquisei bastante em sítios da internet a que pretendo não voltar, para escrever, porque eu acho que às vezes a literatura e as artes (não as artes em geral, mas se calhar a literatura, a televisão, ou o cinema) pecam - na minha perspectiva - pela forma como não querem chocar o espectador ou o leitor. Ou seja, às vezes, para não se ser demasiado descritivo, acaba por se deixar um bocado aquém aquela que é a dor do outro, não é? Penso que aquilo que eu escrevi tem impactado tanto as pessoas porque é assim que elas imaginam que acontece. (E eu creio, apesar de nunca ter passado por isso, que será mais ou menos assim que as coisas acontecem, por aquilo que li).

A altura em que eu comecei a ficar mais sensibilizada com aquilo que estava a escrever foi no final. Normalmente escrevo tudo seguido, sem parar, e depois no dia seguinte leio tudo o que escrevi no dia anterior, e nesse dia seguinte, quando li o que tinha escrito, fiquei muito perturbada, porque realmente estava muito perto de tudo aquilo que eu tinha ouvido e lido, e consegui pôr-me naquela situação, acho que isso também acontece com muitas leitoras mulheres, e realmente é assustador. O medo é uma reação espectacular a um livro. O medo e o choque são duas emoções que nos estão muitas vezes vedadas na arte porque as coisas são feitas para um determinado horário ou para um género de público. E agora também estou um bocadinho mais perturbada, porque tenho recebido vários testemunhos de mulheres que passaram por isso.

Sentem-se retratadas?

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Sim. Eu não tinha esse objetivo, e claro que quero respeitar toda a gente, mas realmente a partilha que tenho recebido até agora é de mulheres que se sentiram retratadas não exatamente porque o que elas passaram foi aquilo, mas porque é assim que uma vítima muitas das vezes se sente quando passa por uma situação semelhante.

Há um lado da violação ainda pouco falado, o de pertencer ou não ao grupo, como dizes. Além do que estas mulheres passam, ainda levam um rótulo. Quiseste explorar isso? E a ideia da solidão, depois?

Por aquilo que li e que também me tem chegado, há muitas mulheres que preferem não falar sobre aquilo que passaram. Em primeiro lugar porque, apesar de não ser isso que acontece n’ A Cicatriz, a maior parte dos crimes sexuais acontece dentro de casa, portanto a maioria dos relatos que recebi até agora são de mulheres que foram violentadas por pessoas em quem deviam confiar. E por isso há esta questão de não partilhar porque há alguém que é próximo.

Mas depois, a acrescentar a isso - e já foi fruto da minha pesquisa, não vem de agora, daquilo que tenho lido mais recentemente -, há muitas mulheres que não querem falar sobre aquilo por que passaram porque é uma situação traumática e partilhá-lo é revivê-lo. E outras porque realmente quando os outros sabem que são vítimas isso naturalmente as coloca num lugar diferente de onde estavam. E há mulheres que, mesmo que passem por uma situação em que são vitimizadas, não querem ser vítimas. E pronto, temos de respeitar e cada uma fará o melhor. Mas tenho a certeza que muitas, não só que são violadas, mas que de alguma maneira são desrespeitadas e vítimas de violência de género, preferem ficar em silêncio, tal qual a personagem principal.

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Foto: Joanna Correia

Há sempre uma culpa, é isso?

Sim. É uma coisa que ainda não consigo explicar, mas que vejo muito na nossa sociedade e até no meu grupo de amigas, que nós mulheres temos, por vezes, medo de partilhar quando fomos assobiadas ou qualquer coisa de género ou [de dizer] que alguém nos apalpou, porque há um sentimento de culpa que não faz efetivamente sentido nenhum, mas com o qual vivemos. E é o que é.

Como funciona o teu processo de escrita? Passas muito tempo sozinha, dizes. Um escritor é solitário por natureza?

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Eu escrevo em casa. Às vezes vou escrever para um café. E apesar de eu ser muito sociável, dizem, e de ter amigos e uma família e tudo mais, eu sempre gostei da solidão, primeiro porque sempre foi na solidão que li, e eu leio desde pequenina, e porque escrever não é compatível com uma vida social ativa. Não estou sempre a escrever livros, não é? Mas quando estou a escrever um livro, fico tão esgotada, e acho que é uma coisa partilhada por muitos escritores, porque estou ali não sei quantas horas a viver com ‘x’ número de personagens, num ambiente completamente diferente do meu, que depois regressar à realidade e ir onde quer que seja conversar com amigos sobre coisas do dia a dia, às vezes sinto que é melhor estar sozinha. Quando estou no processo de divulgação do livro recupero a amizade de todos e ando atrás deles para combinar coisas.

Sentes o preconceito por seres mulher, jovem, e bonita? Na profissão de escritora? Ou na tua geração isso já vem a mudar?

Eu tenho sempre algum receio de fazer este género de statements porque eu percebo algum preconceito com a idade (porque durante muitos anos, e talvez ainda seja uma ideia assente em Portugal, escreviam-se livros quando já se tinha vivido muito e já se tinha muito para se ensinar aos outros). Mas por ser jovem e mulher, sinto que às vezes as portas não estão tão abertas. Não nas livrarias, ainda que haja sempre mais jovens portugueses com livros destacados do que mulheres, mas num festival literário, onde se celebra o snobismo do mercado literário português, não sou convidada, e aceito que achem que não tenho a qualidade literária. Quanto a ser bonita, não sei se ajuda, se piora, não sei (risos). Oiço muito o ‘que bom, é bonita e escreve bem, Deus abençoou-a’ (risos).

Foto: Joanna Correia

Como reagiram a família e amigos mais próximos a este romance?

A minha mãe não leu e não vai ler porque quando começou a ler, percebeu [onde ia dar]... Eu já lhe tinha explicado, ela sabia o que é que era o livro, mas é diferente. Ela começou e disse que era muito duro para ela, enquanto mãe, ler aquilo. Eu acho que é natural, a certa altura, que os pais - e quem diz pais, diz o que seja, as pessoas próximas da família -, abandonem o nosso trabalho artístico, neste caso o meu trabalho artístico, porque eu escrevo sempre de um lugar mais escuro. E para quem convive comigo até podem ficar preocupados e depois é sem razão, para ser honesta, porque é um lado criativo, eu não ostracizo fantasmas na literatura. Mas mostro fantasmas de outras pessoas.

Então, por exemplo, para a minha mãe é duro ler aquilo porque fica muito preocupada. Eu pedi-lhe para ela não ler, também achei que não valia a pena. Mas a minha avó tem 86 anos e leu o livro em 4 horas e adorou. Eu não queria nada que ela lesse, mas ela leu e gostou muito. E depois, claro, naturalmente, os amigos mais próximos, o meu futuro marido, todos já leram, estão todos muito contentes. São grandes apoios que eu tenho na minha vida. E que realmente percebem a importância que a literatura tem na minha vida e como trabalho para poder, um dia, chegar a um sítio onde diga que sou escritora sem ficar envergonhada a meio da frase.

Ou seja, dizes isso porque não te sentes como escritora, ainda?

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Não, ou seja, eu estou a ser lida, e eu sinto isso, pelas redes sociais e tudo mais, e isso deixa-me muito contente. E realmente, quem é lido, normalmente, é escritor, não é? Aquilo que eu faço é ficção literária e, portanto, acho que me enquadro. No entanto, não sei se por não viver inteiramente da escrita dos livros, ou se por ser muito nova e não ter outras referências jovens, tão jovens quanto eu na literatura, tenho ainda algum embaraço em dizer que ser escritora, como eu dizia há uns anos que era advogada, e agora já não posso dizer porque não pago as cotas da ordem. Mas sim, acho que sou, não é? Mas espero ser melhor. Espero daqui a uns anos olhar para aquilo que fiz até agora e ter vergonha, porque é sinal que evoluí, que fiz coisas diferentes e melhores.

Por fim, o que é que estás a ler?

Neste momento, estou a ler Quarto de Despejo, Diário de uma Favelada, da Carolina Maria de Jesus.

Já pensas numa próxima história?

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Sim. Entreguei agora a minha primeira longa-metragem, escrevi um filme. Portanto, estes últimos meses também têm sido de muito trabalho por causa disto. E agora, daqui a umas duas ou três semanas, quando eu descansar um bocadinho, vou começar a escrever aquelo que será o meu próximo livro, mas pode ser para o ano, ou para o outro, daqui a dez, nunca saberemos.

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