A viagem dos poetas. A exposição de Patti Smith chegou a Lisboa
'Evidence: Soundwalk Collective & Patti Smith' acaba de inaugurar estará em mostra até 15 de setembro no MAC/CCB, em Lisboa.

O grito das aves, rajadas de vento, guizos, trovões, buzinas, portas que rangem, vozes xamânicas, música sufi, remos a bater na água e um espaço escuro que convida à reflexão sobre o que procuramos. Esta é uma pequena amostra daquilo a que os nossos sentidos estão expostos em Evidence. Recebe-se um par de auscultadores e mergulha-se num universo metafísico.
"Trata-se de uma exposição completamente imersiva", informa o curador Jean-Max Colard à porta da sala onde cada visitante fará o seu caminho interior. Tudo começa e acaba na viagem, ou em coincidências literárias, para quem estiver disposto a acreditar nelas.


O encontro entre a artista / cantora / poeta / escritora Patti Smith e o fundador de Soundwalk Collective, Stephan Crasneanscki (que também deram um concerto sábado, no CCB, e tocam este domingo no Theatro Circo, em Braga), acontece em pleno voo em 2012. Nas nuvens, como no Cinema. A autora de Just Kids contará na conferência de imprensa que a ligação entre os dois é fruto de "intuição pura". "Pode dizer-se que nos conhecemos através da poesia. Não costumo falar com ninguém em aviões". Faz com as mãos um gesto recolhido. "Stephan estava a ler um livro de poemas de Nico – cantora alemã conhecida por participar no álbum de estreia de Velvet Underground – e confidenciou-me que lhe iria fazer uma homenagem. Ela era alguém que eu conhecera. Perguntei quem irá ler os seus poemas? Como ele não ainda tinha decidido, cheguei-me à frente." O resultado foi Killer Road, um álbum focado na morte de Nico em Ibiza.
Este seria só o princípio de uma relação de trabalho e amizade muito forte entre os dois, reforça Jean-Max Colard. Terminado este projeto seminal, Smith teve a certeza que queria continuar a trabalhar com Stephan. Ele ia fazer um projeto sobre Rimbaud, o poeta amado de Smith desde os 15 anos, por isso não havia como não entrar em mais uma parceria.

Na génese de Evidence está Perfect Vision, um tríptico de álbuns inspirados na obra de três poetas franceses: Arthur Rimbaud, Antonin Artaud e René Daumal. Estas viagens metafísicas terão sido o ponto de partida para esta exposição multidisciplinar criada pelo Soundwalk Collective e Patti Smith num primeiro momento para o Centro Georges Pompidou, em Paris. Patti dirá que qualquer dos três poetas estão presentes na sua jornada. "Com eles aprendi a escrever poesia", acrescenta. A sua atividade enquanto viajantes também a fascinou.

O planalto abissínio (Etiópia) onde Rimbaud passou os últimos anos de vida, a serra de Tarahumara (México) onde Artaud esteve em 1936 ou as montanhas sagradas (India) que são referência no Monte Análogo de Daumal foram percorridos por Stephan Crasneanscki. Stephan subiu montanhas íngremes, nadou em rios com correntes e atravessou a dura planície africana. Além da coleção completa de sons, o fundador de Soundwalk Collective trouxe materiais físicos como pedras, vidros e amuletos, entre outros objetos. Enquanto Stephan deambulava pelo mundo, Patti investiu nos estados de espírito de cada um dos poetas. Estas paisagens sonoras com mais de 500 fragmentos de som incluem também as vozes de Abel Ferrara, Anoushka Shankar ou Charlotte Gainsbourg, entre muitas outras. E, claro, a voz poderosa da própria Patti Smith.

Delfim Sardo, administrador do CCB, descreve Evidence como uma "viagem física, mental e transformadora". Chloé Siganos – diretora de artes performativas do Centro Georges Pompidou de Paris e curadora – fala desta primeira saída internacional da exposição como uma segunda vida, definindo-a como "completamente portuguesa" e também como "uma experiência espiritual", defendendo: "é como se estivéssemos a construir uma catedral no meio do museu". De facto, há qualquer coisa de sagrado e impercetível na sala à qual Stephan apelida, a brincar, de "Matrix".
A imersão deve ser feita sem pressa, avisam os curadores. Na primeira sala estão inscritas conversas entre Patti Smith e Stephan Crasneanscki. A segunda sala tem uma parede cheia de recortes, fotografias, cartas, poemas, artefactos e até paus que parecem serpentes. Lembranças de poetas mortos e, simultaneamente, células de energia. Criada pela dupla Smith e Crasneanscki, a "parede de investigação" é uma soma de documentos recolhidos ao longo dos anos. O nome Evidence (prova) nasce daqui. As ligações que se vêem não são fruto de uma lógica racional, mas sim de uma abordagem poética. Nas restantes paredes passam vídeos que remetem para viagens dos três poetas. Destaque para as três "ilhas" da sala onde há apontamentos disponíveis para serem explorados. Objetos de Harar (Etiópia) para nomear Rimbaud, mineral para lembrar Daumal e peiote para as viagens alucinogénias de Artaud.


A paisagem sonora distrai e conduz a estados hipnóticos e meditativos. Na sala escura Patti Smith dilui-se na multidão. Fotografa com o iPhone como se fosse uma simples visitante. O anonimato dura apenas uma fração de segundo. As câmaras disparam, é impossível passar despercebida. Chega com Stephan Crasneanscki que, com o seu metro e noventa, não é propriamente transparente. Depois de Paris, onde esteve em exposição durante quatro meses, esta será a primeira saída internacional. "É emocionante olhar para a exposição com um novo olhar. Houve uma evolução, porque a própria mostra é reflexo dos espaços, dos trabalhadores e da cidade", esclarece Smith. Um desses sinais é a secretária de viagem dobrável que pertenceu ao poeta Mário de Cesariny. Questionados sobre a presença dela na exposição, Stephan explica que foi um presente do CCB. "Como somos viajantes, pensámos que era um objeto válido que faria a correspondência entre Portugal e os seus poetas". Para Patti foi amor à primeira vista. "É pequena, simples e sentimos o poeta lá sentado a arrumá-la e levá-la consigo para a próxima viagem". Está muito orgulhosa de ter uma exposição em Lisboa. Já deu vários concertos aqui, calcorreou as ruas da cidade. Admira os azulejos e os candeeiros antigos. Mas há mais. "Quando eu era pequena, o meu pai adorava uma música chamada Lisboa Antiga – fado de Amália Rodrigues. Perguntei-lhe sobre a cidade e contou-me tudo o que sabia. Disse-lhe um dia hei-de ir a Lisboa. E aqui estou".
Evidence também é muito "o que vem à superfície", explica Stephan. "Quando vamos viajar, recolhemos o som, mas não sabemos no que vai dar. Focamo-nos no acto de escutar." No estúdio em Nova Iorque, enquanto montavam o puzzle, terá acontecido o mesmo: "encontrar o que vem ter à superfície". Patti conta ao coletivo de jornalistas que Dumal no fim da vida escreveu num caderninho: "What do you seek? O que procuras?" As hipóteses são várias: "o visitante talvez procure apenas ver lugares e materiais de países distantes, um entendimento mais profundo destes poetas. Cada um de nós pode decidir o que procura nesta viagem." Evidence é uma oferta dos artistas ao público "uma dádiva, um peradam, como escreve René Daumal, uma pedra preciosa que se revela apenas a quem a procura", sugere o texto dos curadores.


Tentar entender as viagens espirituais de Patti Smith também pode ser um caminho. Depois da sessão de esclarecimentos aos jornalistas pede um momento a sós na sala, com a obra de arte, sem flashes, sem perguntas, como se fosse rezar. Vemo-la sentada a escrever naquela que foi a secretária de Cesariny. A poesia acontece. Com uns jeans coçados, o cabelo preso em duas tranças e a personificação da força e da fragilidade, Smith é, ela própria, um poema.
Centro Cultural de Belém / Museu de Arte Contemporânea
Até 15 de setembro. Terça a domingo. Das 10h às 19h. €10-€20
