Luísa Lopes: "Nada nas neurociências demonstra que a capacidade de uma pessoa seja diferente em função do género”
Homens e mulheres têm cérebros diferentes? O que diz a neurociência sobre género, mas também sobre hábito, cultura e envelhecimento? A neurocientista Luísa Lopes esclarece as evidências, avisando que há ainda muito por descobrir. Encontro na Fundação GIMM.
Foto: Gonçalo F. Santos15 de janeiro de 2025 às 07:00 Rita Lúcio Martins
Luísa Lopes é neurocientista, coordena um grupo de investigação na Fundação GIMM – o Gulbenkian Institute for Molecular Medicine - e dá aulas de Neurociências na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. É lá que a encontramos, em trânsito entre o gabinete e o laboratório. A certa altura, confidencia que sempre quis ser cientista, mas nem era preciso dizê-lo. O entusiasmo com que fala de neurónios e de sinapses denuncia-a. "Sou daquelas pessoas que leem os manuais das máquinas de uma ponta à outra e até sou muito gozada por isso lá em casa", confessa, sem embaraço.
Aos 12 anos, a mãe ofereceu-lhe um livro sobre a vida da Marie Curie. "Marcou-me muito, não só pelo facto de ser uma mulher num mundo de homens mas também pela sua determinação em estudar a radioatividade, pondo até em causa a sua integridade física." Licenciou-se em Bioquímica e, mais tarde, doutorou-se em Neurociências na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Trabalhou na Universidade de Cambridge (Reino Unido), no Instituto Karolinska em Estocolmo (Suécia) e no Centro de Investigação da Nestlé, em Lausanne (Suíça). Em 2008, regressou a Lisboa para criar a sua própria equipa de investigação.
Especializada na investigação sobre envelhecimento, nomeadamente nos mecanismos sinápticos com impacto na memória, no défice cognitivo e na neurodegeneração, Luísa tem dezenas de artigos e capítulos de livros publicados em revistas científicas, tendo sido distinguida com importantes prémios nacionais e internacionais. Paciente e resiliente, admite que essas são características indispensáveis na investigação científica, que muito tem beneficiado com a evolução tecnológica. "Sim, por um lado, é uma altura ótima para ser cientista, por outro, é frustrante. As diferenças dos padrões individuais são muito mais complexas do que pensávamos. Quando olhamos para um fígado, as células são todas iguais e funcionam da mesma forma. Num cérebro, os neurónios são diferentes, formam circuitos diferentes que interagem de várias formas e, depois, cada área cerebral dá origem a comportamentos diferentes. É uma complexidade em muitas camadas."
O cérebro tem género? Existem diferenças entre o cérebro de um homem e o de uma mulher?
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Costumo dizer, a brincar, que quando abrimos o cérebro, ele não é azul nem cor-de-rosa. Ou seja, quando olhamos para as estruturas internas não há diferenças. O cérebro tem um tamanho proporcional à estatura da pessoa e, por isso, regra geral, nos homens tende a ser maior e, nas mulheres, menor. Tirando isso, não há qualquer diferença anatómica.
E ao nível do funcionamento?
Existe uma técnica nova, a ressonância magnética funcional, que nos permite olhar para o cérebro em funcionamento de um modo não invasivo, observando a circulação sanguínea. As zonas do cérebro nas quais se observa maior circulação sanguínea são as que estão a ser mais ativas. Se observarmos o cérebro de uma pessoa que está a ler, a pensar em música ou na agenda do dia seguinte, essa ativação permite associar tarefas ao funcionamento do cérebro, criando um padrão. Por exemplo, quando sinto uma emoção, ativo duas ou três zonas em sequência. Ora, quando fazemos essa observação em homens e mulheres, notamos algumas diferenças: quer uns como outros têm a mesma capacidade executiva (seja no que diz respeito à memória ou ao cálculo), mas há diferenças no padrão de ativação. Ou seja, a sequência de ativação de áreas é diferente, mas ainda não se percebe porquê. Sabemos que algumas diferenças estão relacionadas com a oscilação hormonal. A ansiedade, a memória, a função cognitiva, os distúrbios de sono e a irritabilidade mudam, com maior ou menor amplitude, nas mulheres, à medida que temos oscilações do ciclo menstrual. O cérebro é sensível a tais oscilações.
Foto: Gonçalo F. Santos
Na gravidez e no pós-parto essas alterações são mais evidentes?
Escrevi sobre isso recentemente, sobre aquela ideia que associa uma certa amnésia ao pós-parto, a chamada mumnesia. Existem vários estudos, mas não são conclusivos, até porque o pós-parto é uma fase em que há muitas alterações do sono e essa é uma variável importante. A pessoa dorme menos, tem um sono entrecortado, lida com a ansiedade de cuidar de uma criança pequena. É difícil distinguir aquilo que são alterações estruturais da memória de alterações reversíveis. Nós já nascemos com a maioria dos neurónios que vamos ter ao longo da vida, mas, embora não surjam neurónios novos, há uma grande plasticidade sináptica.
Essa neuroplasticidade do cérebro é como uma espécie de renovação?
Os neurónios com que nascemos têm ramificações que podem ser muito longas. Ao longo da vida, e dependendo dos estímulos, essas ligações sinápticas, que permitem que os neurónios comuniquem entre si, mudam imenso. Mas importa distinguir duas formas de plasticidade: a reorganização cortical, na qual zonas do córtex cerebral ocupam outras, substituindo-as nas suas funções, permitindo que, se uma zona, de repente, deixar de ser funcional (por exemplo, devido a um AVC ou a um acidente), haja outra adjacente que toma este lugar e circuitos que se organizam. A outra forma de plasticidade é a sináptica, mais relacionada com as ligações entre os neurónios. É a que está na base do processo de aprendizagem: na segunda vez em que estamos expostos a um facto, é mais fácil lembrá-lo. Ou seja, é preciso menos tempo para que aquela sinapse, aquela ligação entre neurónios, seja ativada. Isto tem que ver com a capacidade das sinapses se reforçarem ou atenuarem consoante a sua utilização. As crianças têm imensas sinapses até aos dois anos. À medida que passam para a motricidade fina, dá-se o que chamamos um synaptic pruning, uma espécie de desbaste em que as sinapses que não são precisas são eliminadas. É uma fase crítica do desenvolvimento cerebral, daí ser importante dosear os estímulos (como os ecrãs) e incentivar a leitura ou o desenho, porque isso será muito útil ao longo da vida.
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A forma como uma criança é socializada tem expressão no desenvolvimento do cérebro?
Isso será mais do foro da psicologia, mas, nos primeiros anos, a vinculação em termos de afeto, ou seja, a sua interação com as pessoas que tornam o ambiente seguro, tem impacto nas estruturas cerebrais. Há estruturas ligadas ao trauma, como a amígdala, que têm um papel importante na memória emocional. Fizemos vários estudos sobre stress infantil (em modelos animais) e verificámos que, quando este tipo de alterações acontece nesta fase de desenvolvimento, tem repercussões não só a nível cognitivo mas também condiciona a resposta posterior ao stress. Acontece o mesmo com os adultos, nos casos de stress pós-traumático. A guerra do Iraque, nos anos 1990, foi a primeira em que foi possível fazer uma análise com base na imagiologia cerebral, permitindo observar inclusivamente que estas pessoas sofriam uma atrofia na zona cerebral do hipocampo. A maioria recuperou, o que permitiu concluir que o stress tem muitos efeitos dramáticos, mas também que são reversíveis.
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A epigenética veio demonstrar que os efeitos do stress podem passar de geração em geração. É mesmo assim?
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A epigenética é como uma assinatura, tem que ver com a forma como, ao longo da vida, alguns genes são mais ou menos expressos, sem que isso implique qualquer alteração no código genético. Este tipo de modulação não era conhecido até há alguns anos. O estudo que fizemos com animais demonstrou que há marcas epigenéticas relacionadas com o trauma, e com o stress de uma forma geral, que passam para a geração seguinte. Tudo isto mostra que é preciso ter muito mais cuidado nesse esforço de não passar heranças traumáticas.
Vários estudos no campo das neurociências demonstraram que o cérebro não tem género. A investigadora Daphna Joel, por exemplo, descreve-o como sendo não-binário, como se fosse um mosaico com um conjunto de características. Cientificamente, é possível explicar uma maior apetência por determinadas áreas em função do género?
Em neurociências estudamos os mecanismos científicos da população, não estudamos os comportamentos individuais, tentando perceber o que é cultural e estrutural. Por um lado, aquilo que sabemos é que há padrões diferentes, mas não há nada na Ciência que nos diga que as mulheres estão mais dispostas a serem professoras primárias e menos a dedicarem-se à mecânica ou aos computadores. Existem dados que permitem concluir que as hormonas ligadas à vinculação e ao afeto têm um padrão diferente nas mulheres e que, provavelmente, isso está relacionado com a adaptação à maternidade. Por outro, os pais que cuidam das suas crianças, também revelam um padrão diferente dos homens que não o fazem. Isto mostra-nos que há uma capacidade de adaptação biológica e o padrão de libertação hormonal reflete isso mesmo. Há coisas que temos de perceber: o facto de os homens, em geral, terem um padrão de testosterona maior, explica que tenham mais força, mais capacidade física, mais agressividade até. Trata-se de uma diferença biológica inegável. Mas não há nada nas neurociências que demonstre que a capacidade de uma pessoa para fazer uma coisa ou outra seja diferente em função do seu género. Aquilo que existe são estratégias diferentes. No entanto, na biologia, também temos estratégias diferentes aos 20, aos 40 e aos 60 anos.
Ou seja, o fator idade também é importante.
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É um fator muito importante, no laboratório. Até recentemente, as pessoas consideravam que havia um pico biológico e que, a partir daí, não havia alternativa senão declinar. As neurociências não demonstram isso. Até aos 21 anos, o cérebro está em desenvolvimento, atingindo-se depois o auge. Sabemos também que, a partir dos 40, há estruturas cerebrais que começam a sofrer alterações (como perda de volume e alterações vasculares). Mas não há nenhuma indicação de que não podemos continuar a aprender coisas novas. Pelo contrário, pessoas de 50 e 60 anos confessam-se menos ansiosas no desempenho de tarefas porque contam com o fator experiência. E, em termos cerebrais, sabemos que as pessoas mais experientes vão ser muito mais rápidas. Portanto, usar o funcionamento cerebral como base de discriminação da idade é, cientificamente, errado.
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Partindo dessa perspetiva de que é errado discriminar pela idade ou pelo género, de que forma explicamos assunções caricaturais como, por exemplo, a de que as mulheres têm menos facilidade para ler mapas?
Já foi feito esse estudo! Temos dois tipos de orientação espacial: a egocêntrica, aquela que pensávamos ser a mais usada pelas mulheres (com pontos de referência em função do indivíduo), e a alocêntrica, mais usada pelos homens (e mais independente do indivíduo). O estudo a que me refiro juntou um conjunto de pessoas sujeitas a uma série de controlos e colocou-as num ambiente imersivo, a percorrer labirintos virtuais, tendo depois de descrever o percurso. Não se conseguiu encontrar qualquer diferença entre homens e mulheres. Eu era das que estavam convictas de que havia diferenças, até porque a minha experiência empírica apontava nesse sentido, mas a verdade é que "o mito dos mapas" ainda não é confirmado pela neurociência.
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Como se consegue dar o salto qualitativo de não negar a diferença (biológica), mas, simultaneamente, não deixar que ela se torne um argumento para justificar incapacidades ou desigualdades?
Eu não acho que as diferenças biológicas sejam, necessariamente, más. Há casos em que diferenças de padrões cerebrais são usadas como uma oportunidade. Temos o exemplo de doenças de desenvolvimento como o autismo ou o Asperger em que há limitações nas interações sociais, mas essas pessoas têm capacidades notáveis ao nível do cálculo. Isto para dizer que, mesmo que se descubram diferenças, em termos de estratégias, não se deve validar para desigualdade. Depois, pessoalmente, estaria muito interessada em perceber se temos realmente estratégias diferentes. É algo que me fascina, enquanto cientista. O acesso à ressonância magnética funcional permitiu perceber que aquilo que pensávamos que era muito igual entre as pessoas, afinal é diferente. Há muito mais diferenças interindividuais do que pensávamos. Talvez não seja possível revelar diferenças em termos de grupos, porque há diferenças individuais que ainda não conseguimos normalizar. Resumindo, esta plasticidade, por um lado, é fascinante, mas, por outro, dificulta a tarefa de perceber as diferenças individuais.
A neurocientista Gina Rippon defende que é o mundo que é genderizado, não o cérebro.
Concordo que muitas das diferenças entre géneros são culturais, no sentido em que os hábitos condicionam a nossa resposta. Costumo dar o exemplo do tom de voz que usamos para falar com os bebés. Todos temos os nossos vieses inconscientes e, sem querer, acabamos por ser mais gentis e carinhosos com as meninas, com os rapazes temos um tom diferente. Diria que integrar a perspetiva cultural é importante, mas é difícil integrar várias culturas em simultâneo. Veja-se o exemplo da monogamia/poligamia. Biologicamente, o ser humano está programado para espalhar o maior número de genes possível, mas, na nossa cultura, a poligamia não é aceite. Noutras é diferente. A reação das pessoas tem que ver com o condicionalismo cultural e não biológico.
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Foto: Gonçalo F. Santos
A desigualdade de género tem impactos a nível do diagnóstico clínico e do desenvolvimento de fármacos?
Há uma tradição de se estudar mais "o homem", tanto em modelos animais como em ensaios clínicos. Ou, em alternativa, nem se valoriza a questão do género. Durante muitos anos, pensou-se que alterações hormonais ou a menopausa seriam variáveis difíceis de controlar, o que também é verdade e, por isso, a mulher era mais ignorada. Mas isto está a mudar. Começa a ser pedido que se façam estudos clínicos em homens e mulheres, porque se percebeu que a resposta pode ser muito diferente. Hoje, quando submetemos projetos de investigação, temos de apresentar os estudos com os dois géneros. É um passo em frente, fundamental para que possamos ter fármacos adaptados a uns e outros.
As mulheres têm mais probabilidades de sofrer de demência?
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Em Portugal, as mulheres têm maior esperança média de vida. Nas doenças que estudamos, relacionadas com o declínio cognitivo no envelhecimento, sabemos que há uma maior prevalência da doença de Alzheimer em mulheres. No entanto, há uma maior prevalência de doença de Parkinson nos homens. Dito isto, um dos fatores protetores que estudamos é a cafeína, e ela revelou ter um efeito protetor muito mais forte nas mulheres em relação à demência. Contudo, ainda não sabemos bem porquê. Está a ser realizado um ensaio clínico que nos permitirá ter mais conclusões sobre isto, em 2026. A doença de Alzheimer não tem cura, não há um fármaco que limite a sua progressão. Tem havido muito trabalho nesse sentido, mas é precisa alguma cautela com a informação que se transmite. Nesta fase, o mais importante é observar as recomendações.
Refere-se a hábitos que devemos desenvolver?
Sim, hábitos de vida que aumentam a longevidade e diminuem o declínio cognitivo. São eles a alimentação saudável, o exercício físico, uma boa higiene de sono, a prevenção das doenças cardiovasculares e da diabetes, e evitar o isolamento social. Tudo isto tem um impacto muito grande na prevenção da doença. A depressão também é um fator de risco. E, este ano, adicionou-se outro fator, a perda auditiva. Se há coisa que nos assusta a todos, mais até do que outras doenças, é perder a memória, porque isso tem que ver com a nossa identidade. É fundamental melhorar os hábitos para envelhecer de forma autónoma e independente.