Laura Alcoba: “Griselda tentou salvar algo da sua humanidade, ao ser para Flavia aquilo que não conseguiu ser para os filhos mortos”
“Naquele Dia” – assim se chama o livro –, 14 de dezembro de 1984, Griselda matou os dois filhos de três e quatro anos. Flavia, a filha de seis anos, sobreviveu. A escritora Laura Alcoba reconstitui esta história 30 anos depois. Um relato que é de uma tristeza profunda, mas também de uma grande beleza.
Era uma história tão terrível que Laura Alcoba a bloqueou da sua memória. O pai contou-lha, claro. Afinal, abalou profundamente a comunidade de argentinos exilados em França, fugidos da ditadura. Anos depois, foi ao cinema com uma amiga, ver o filme Shutter Island, de Scorsese, e saiu abalada. Não conseguia parar de pensar: “Eu conheço esta história… Mas de onde?” Dias depois – as coincidências repetem-se em todo este relato –, o pai liga-lhe para contar que Flavia o havia procurado. “Queria falar comigo sobre o que se passou com a família dela. Lembras-te da Flavia?” E nesse momento Laura lembrou-se não só da Flavia, mas de tudo o resto: Griselda, mãe de Flavia, matou os filhos mais novos, Boris e Sasha, com três e quatro anos, tinha então Flavia seis anos, e tentou matá-la também. Foi buscá-la à escola, mas a professora pressentiu que algo de errado se passava e recusou entregar a menina. Salvou-lhe a vida.
Trinta anos depois, a pedido de Flavia, que precisa de compreender o seu passado, Laura decide contar esta história profundamente triste e perturbadora, entrevistando todos os implicados: a mãe, Griselda, o pai, Claudio, Flavia, a professora, a advogada. Naquele Dia é fruto desse trabalho. Houve momentos em que Laura achou que não ia conseguir continuar. Mas tanto Griselda quanto Flavia lhe deram coragem. Ambas queriam, precisavam, de ver esse relato terminado.
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Laura Alcoba viveu na Argentina até aos 10 anos, altura em que se mudou para Paris, com a família, para fugir à ditadura. Tal como fizeram Griselda e Claudio, e muitos outros argentinos. Licenciou-se em Letras, tornou-se escritora e, atualmente, é professora universitária. Escreve em francês. Naquele Dia é o seu primeiro livro publicado em Portugal, mas escreveu uma trilogia muito aclamada sobre os tempos de ditadura na Argentina e a experiência do pai enquanto preso político. Encontrámo-la há uns meses, na livraria Buchholz, em Lisboa. Uma mulher bonita, afável, com uma presença tranquila, ela própria ainda um pouco aturdida com o horror (e a redenção) da história que escreveu. Tudo verdade.
Um ato terrível e inesperado, numa história sobre resiliência após o horror
Foto: DR
Foi logo no momento em que o seu pai a recordou de Flavia e da sua família que decidiu contar esta história?
Naquele momento, quando reencontrei a história, digamos assim, comentei com o meu editor, em França: "Sabes, houve uma história terrível dentro da comunidade de exilados argentinos. Se um dia eu tiver força suficiente, talvez escreva algo sobre isso. Gostava, mas não sei se vou conseguir. Talvez um dia..." E ficou por aí. Escrevi outros livros. E, a dado momento, comentei qualquer coisa com o meu pai, já não sei bem o que foi, acho que lhe perguntei se ele tinha o contacto da Flavia, e foi como dar um passo em frente. Elas souberam que eu tinha falado com o meu pai e entraram em contacto comigo. Não sei exatamente como foi. Sei que um dia me deparei com uma mensagem da Griselda no meu telemóvel: "Ah, parece que você quer…" Só que eu ainda não sabia se queria. Se estava preparada. Se era capaz.
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Mas depois encontrou-se com a Flavia…
Sim, e foi nesse momento que percebi não só que queria escrever o livro, mas que precisava de o escrever. Porque tive a impressão de que a Flavia estava à minha espera. E tive a mesma impressão com a Griselda, mais tarde. Elas sabiam que eu era escritora. Na verdade, a Griselda tinha os meus livros todos. E elas próprias precisavam de compreender e de conversar uma com a outra sobre o que se passou, mas não conseguiam. E quando vi a Flavia, vi que ela não era a pessoa que eu imaginava. Achei que uma menina que havia sobrevivido a algo tão terrível seria alguém que estaria muito mal. Mas o que vi foi uma pessoa que parecia tão tranquila, tão afável, tão luminosa. Uma grande fotógrafa. Uma pessoa que se realizou profissionalmente de forma incrível. E pensei: "Como é possível?"
Uma das primeiras coisas que ela me disse, quando me falou das suas memórias, foi que não conseguia conversar com a mãe sobre aquele dia. E que era a minha missão fazer com que a mãe falasse. Porque a mim ela contar-me-ia tudo. A Flavia acreditava nisso e assim foi. E eu senti-me… Envolvida. Dei um passo e, de repente, foi como se estivesse a correr atrás de um livro que já ali estava. Foi um destino que se abriu por completo. Como se fosse o livro que eu tinha de escrever, que me estava destinado escrever.
E qual foi a sua primeira impressão da Griselda?
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Da Griselda… Eu não sabia muito bem como abordar o assunto com ela. Marquei um encontro, no mesmo café onde me encontrei com a Flavia. Sentámo-nos e imediatamente ela disse: "Bom, tu sabes o que eu fiz… Mas antes preciso de contar-te algo." E começou a contar a sua história. Falou, falou, falou… Quase não precisei de fazer perguntas. Eu estava ali apenas para receber o que ela me contava. E foi muito forte. A história é dura. Ela sofreu uma série de episódios de violência. Tem uma grande fragilidade psicológica, como seria de esperar. Fui escrevendo tudo à medida que ela me contava. E ao mesmo tempo, a dado momento, ela pára e ela diz: "Nada do que te estou a contar justifica ou explica aquele dia, que continua a ser um horror." Ela tinha isso muito presente.
Acho, sinceramente, que, sem a Flavia, sem essa parte luminosa, eu não teria escrito o livro. Para mim, escrever esta história foi realmente entrar no incompreensível, na loucura de um ato inimaginável, impensável: um duplo infanticídio dos próprios filhos. E, ao mesmo tempo, naquele dia em que tudo parecia prestes a precipitar-se na loucura, na morte, no horror, houve um gesto, uma intervenção, que o impediu.
Por parte de Colette…
Sim, a professora que se recusou a entregar a menina à mãe. Ela disse "não". Eu vejo esse gesto, o gesto da mão dizendo "não" [Laura ergue a sua própria mão]. E a partir dali, outra história foi possível. A partir dali, surgiu o gérmen da luz do que veio depois.
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Para mim, este é um livro sobre resiliência. Um livro sobre como viver depois do horror, como sobreviver a algo assim. E é um livro sobre a força da infância. Acho que o que veio depois só foi possível por causa da força que a Flavia tinha dentro de si. Para mim, é também um livro sobre a infância.
Ao ler o livro, percebe-se que há um grande carinho e proximidade entre mãe e filha. No entanto, se não fosse a professora, a mãe teria matado a filha também. Como é que a relação delas pôde recuperar de algo assim? Desse conhecimento?
Não sei. É um grande mistério. Depois de uma história tão sombria, Griselda, com as suas fragilidades, evidentemente não é uma pessoa equilibrada, conseguiu reconstruir-se, de certo modo, em torno da maternidade. De ser a mãe que Flavia merecia e precisava. É incrível, mas foi assim. E o que eu pude perceber foi que houve uma espécie de aposta incrível por parte da advogada e do tribunal que julgou Griselda de maneira muito clemente. Surpreendentemente clemente. Porque nove meses… Bom, nove meses é o tempo de uma gravidez, e ela teve nove meses de condenação. É muito pouco.
Sim, quando estava a ler o livro imaginei que ela tivesse estado presa durante 20 anos ou mais, e depois chego a essa parte onde diz que foram nove meses e...
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É um choque. Porque é muito pouco. Provavelmente, naquela época, eu teria considerado a sentença delirante. Mas o tribunal considerou que era um caso que dizia respeito à psiquiatria e não ao crime. Era preciso salvar a menina que havia sobrevivido, e essa menina precisava da mãe. E… Bom, é uma aposta muito estranha. Porque não seria inusitado imaginar que, se ela matou os filhos, talvez cometesse um novo gesto contra a filha. Mas, de facto, isso não aconteceu. Retrospetivamente, podemos dizer que essa aposta teve um retorno quase milagroso. Griselda, depois de ter sido a mãe que deu a morte, conseguiu apaziguar algo em si, graças ao facto de Flavia se ter salvo. Graças ao vínculo entre elas.
Ela teve uma reação muito estranha, mas muito reveladora, quando leu o livro. Antes da publicação, claro que o mostrei à Griselda e à Flavia. E Griselda teve uma reação que nunca vou esquecer. Ela disse-me: "No teu livro, o horror sou eu. E é normal. O horror sou eu. Mas obrigada por teres visto que Flavia é uma mulher tão maravilhosa." E para mim, isso diz muito. Era como se a existência de Flavia fosse o que faz com que Griselda suporte a própria existência.
Deve ter sido uma investigação muito dura, pungente. E um processo de escrita emocionalmente desgastante. Até porque a Laura também tem três filhos.
Sim, foi muito difícil para mim fazer esta investigação. Posso dizer que estive diante de um mistério humano que tem a ver com a morte, com a loucura, também com o amor e com a sobrevivência. E estando diante de algo tão forte, tão estranho, mas tão potente, quis entregá-lo ao leitor. Mostrar o caminho de luz que sai destas trevas. Porque, realmente, com Griselda entramos nas trevas. E não se trata nem de justificar nem de explicar – claro que não –, é um abismo absoluto. E, ao mesmo tempo, existe um depois. Um depois que só aconteceu porque houve uma espécie de fada vinda de outro mundo que conseguiu travar a máquina que estava em andamento. Acho que, em certos momentos, o mal ou a loucura são como uma máquina que entra numa engrenagem enlouquecida e é preciso pará-la. E ela pôde ser parada.
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Griselda matou os filhos, no entanto, ao longo de todo o livro, creio que o leitor sente uma grande empatia e compaixão por ela – eu senti. Dos dois adultos da história, Claudio e Griselda, os pais das crianças, Claudio é quem gera menos empatia, na minha opinião. Por que será?
Quando fiz a investigação, Claudio já estava muito doente, entretanto até já morreu, mas na época já estava muito calado, muito silencioso, já numa velhice profunda. Então, não pude entrevistá-lo a fundo. De qualquer forma, acho que, se não nos colocamos dentro do coração humano e também dentro da loucura, se dissermos [sobre este tipo de situações]: "são monstros", então, não entendemos nada. O ato que Griselda cometeu é o horror por excelência, mas se não olharmos para esse extremo, acabamos numa espécie de negação.
A literatura também nos permite explorar aquilo que há de mais negro dentro de cada um de nós. Atravessar algumas zonas escuras, dentro de nós, para tentar ver o que há ali. Claro que este limite de matar, a maior parte das pessoas não cruza, felizmente. Mas algumas cruzam. Eu tentei escutar o que aconteceu com ela. O gesto é terrível, claro, não há ambiguidade quanto ao horror que representa. Mas, ao mesmo tempo, é algo que acontece dentro da humanidade. Para tentarmos entender a loucura, o crime, o mal, temos de ir até lá, temos de nos aproximar. Mesmo que, no fim, a situação permaneça incompreensível. Acho que para a Griselda há um abismo. Eu própria tive a impressão de estar à beira desse abismo, olhando lá para dentro. Mas é algo que permanece na ordem do incompreensível.
Ainda assim, Griselda teve um papel fundamental na vida da filha, nesse depois que veio a seguir ao abismo. É surpreendente, sem dúvida, mas talvez tenha sido a forma de tentar, não corrigir o seu gesto, claro, isso seria impossível, mas de salvar algo da sua humanidade, ao ser para Flavia aquilo que não conseguiu ser para os filhos mortos. Acho que foi essa oportunidade a que Griselda se agarrou, de salvar o que havia de humano nela graças à Flavia. Mostrar que era capaz de amar, apesar do gesto que cometeu.
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E o casal não se separou, o que é surpreendente. Por que acha que ficaram juntos?
Não sei. Tento não encaixar tudo isto numa explicação psicológica ou sociológica. Acho que há diversas interpretações possíveis e que cada leitor pode ter a sua. Para mim, é importante deixar que o leitor faça a sua própria leitura. Mas creio que uma explicação possível é que Flavia os sustenta todos. Essa menina salvou-se, e para que tudo não seja tão tenebroso, é preciso dar-lhe o que não deram aos outros. Claudio sentia-se visivelmente culpado por não ter ouvido Griselda, que foi ter com ele para lhe dizer que se estava a sentir mal, e ele não a escutou. Mandou-a embora. Ela, provavelmente, sentiu algo como uma crise psicótica a aproximar-se – não faço diagnósticos psiquiátricos, não sou psiquiatra –, mas alguma coisa ela sentiu, porque foi ter com ele para pedir ajuda. E ele não a escutou. E sente-se culpado por isso.
E depois, Flavia sobrevive e é preciso estar ali para ela. O que salva é essa criança que tem um futuro, e é em torno dessa existência que tudo o que é sombrio se organiza. E isso é algo muito belo, muito forte.
Começa o seu livro com uma frase muito poderosa: “Naquele dia, Claudio não prestou atenção a Griselda.” Fez-me lembrar do começo de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, em que o leitor percebe imediatamente que algo terrível vai acontecer – já aconteceu, no momento em que se está a ler. E a partir daí fazemos o caminho até chegarmos a esse ponto e compreendermos, de facto, o que se passou. Griselda vai ter com o marido, pede ajuda. Ele não lhe liga. Responde-lhe de forma agressiva. E eu pensei: "Este desgraçado vai passar o resto da vida a pagar este momento de desatenção." Entretanto, ele percebe que algo de errado se passa, corre para casa. Mas é tarde. Já está feito.
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Sim, há uma sequência de coisas sinistras, horríveis… E depois é como se o que sobreviveu a isso dissesse: "Temos de estar à altura da menina que se salvou." E isso é muito forte. Para mim, o que nos salva, é a infância. Essa infância que tem tudo pela frente.
A Laura recorreu à mitologia grega para explicar o que Griselda nunca nos diz diretamente. Ela nunca diz: "Eu fiz isto. Eu matei os meus filhos" Nunca lemos essas palavras. Então, a Laura recorreu ao mito para explicar. Porquê?
Durante a investigação, a Flavia disse-me que o irmão dela – porque Claudio teve dois casamentos, e ela tinha dois meio-irmãos mais velhos – lhe contou o mito de Medeia. E eu perguntei: "Como? Mas ele sabia o que estava a fazer?" E Flavia disse: "Claro que sabia." Isso foi muito perturbador para mim. E é evidente que há muitos ecos entre a história de Medeia e a de Griselda. A história de Medeia também é uma história de exílio, também é uma história de uma mulher que sofre várias formas de violência, uma traição, e que cai na loucura, numa espécie de vingança mortal. Mas, ao mesmo tempo, Griselda também é a anti-Medeia.
O que é evidente é que os mitos nos falam do humano, de nós mesmos. Estão fora do tempo, definitivamente, mas podemos sempre voltar a eles para tentar encontrar respostas. Há arquétipos, há figuras, histórias que dizem coisas eternas. Mas, ao mesmo tempo, o mito não aprisiona, no sentido em que se pode sair dele. Felizmente, a história de Griselda não é apenas a de Medeia. Houve um gesto individual, um gesto de coragem, de amor, que é o gesto de Colette, que permitiu sair do mito. E tudo isto foi muito estranho para mim, porque eu tinha a impressão de estar diante de uma história que tinha a dimensão de um mito, no que há de mais esmagador. Como se a tragédia, a morte, o horror, estivessem em marcha. Mas depois há o raio de luz daquele gesto que salva a menina. Que permite que se inicie outra coisa. Como sair de um poço. Sair de um buraco.
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O que vem a seguir não é uma história feliz, porque, como é óbvio, Griselda continua muito quebrada, muito perturbada. Mas Flavia existe e isso é um alívio para ela. Para mim, tudo isto diz muito sobre a humanidade. Acho que é uma história particular, uma história que nos fala da coragem, do que significa um gesto de querer salvar alguém. Do que isso pode implicar, do que pode acarretar. De como pode haver uma cadeia sombria, mas também uma cadeia de luz.
Colette teve um pressentimento muito certeiro. É certo que Griselda estava com um aspeto estranho, mas não foi só isso. Ela sentiu qualquer coisa que a impediu de entregar a menina.
Sim, sim. Uma intuição. Ao pedido da mãe ela respondeu: "Não, não posso." E esse "não" é maravilhoso. O "não" da resistência. Esse "não" tem a ver com a bondade. A grande bondade é sempre muito simples.
Sim. E depois a Colette e o marido continuaram a ajudar a família, sem esperar nada em troca. Durante muitos anos, acompanharam Flavia, iam buscá-la para passar fins-de-semana e férias com eles, para se certificarem de que ela estava bem e também para apoiarem aqueles pais traumatizados.
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Sim, era o que tinham de fazer. Simplesmente, era o que tinham de fazer.
E eu admirava-me, dizia para mim mesma que era uma atitude maravilhosa. “Era o que tínhamos de fazer e fizemo-lo.” Diziam-no de forma muito simples, mas isso também é um gesto de amor. O amor não é o que se diz, é o que se faz. O amor é o que se dá, o que se vive, o que se mostra. Há aquela frase do Cocteau: “Não há amor, só há provas de amor.” O amor é aquilo que se demonstra, é a manifestação do amor. Não se fazem grandes dissertações, grandes discursos, porque isso não é amor. O amor é simplesmente… Enfim, houve uma intuição incrível e depois uma preocupação, penso eu, mas que não se expressava muito, apenas estavam sempre ali para aquela menina, aos fins-de-semana, nas férias, para continuar a acompanhá-la da forma mais simples possível, aquela menina que seguia um caminho que a permitia crescer.
E é incrível porque ela não me parece revoltada, não está danificada pela vida, a Flavia é forte, mas tranquila, calma, luminosa, é incrível, é maravilhoso vê-la, é algo muito bom que nasce de algo terrível. Ela é fotógrafa profissional, uma grande fotógrafa, eu omito o nome dela, mas é uma fotógrafa muito reconhecida e trabalha com o humano, trabalha muito para ONGs, tem uma grande sensibilidade para situações humanas, faz uma fotografia muito sensível, onde se vêem situações sociais, mas de uma forma muito próxima das pessoas e das suas vivências. Faz um trabalho muito, muito delicado, com muita sensibilidade.
Será que esta tragédia, ou algo semelhante, teria acontecido se o Claudio não tivesse aparecido na vida da Griselda? Ela era uma bomba-relógio?
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Quem sabe? É impossível saber. A Griselda tinha, claramente, uma estrutura psicológica muito frágil. Havia inúmeros problemas com a família, em particular com a mãe. Uma mãe muito opressiva, esmagadora, uma mãe que não ama a filha – e isso é algo que fere para sempre, essa falta de amor materno.
É um paradoxo, porque essa mãe, que não ama a filha, não a mata, mas Griselda, que ama os filhos, mata-os.
Sim, e ao mesmo tempo, já tinha feito várias tentativa de suicídio, desde muito cedo. Li muitos artigos de psiquiatria, e descobri há uma forma de suicídio em que se leva consigo tudo o que se ama antes de se tirar a própria vida. Talvez… E tenho relutância em dizê-lo porque não quero fechar uma história tão forte com uma explicação, mas se a Griselda tivesse conseguido matar a Flavia, provavelmente ter-se-ia suicidado de seguida. E é curioso porque todas as suas tentativas de suicídio aconteceram antes daquele dia. A partir do momento em que ela entra naquele desdobramento, no dia em que comete aquele ato horrível, e a Colette interrompe essa máquina de horror, a partir daí ela não volta a tentar suicidar-se. Passa a estar ali apenas para a Flavia. Isso também é perturbador.
E foi difícil para si assumir o papel de mensageira entre mãe e filha? Porque a Flavia queria saber o que se tinha passado, mas não conseguia falar com a mãe. Então falaram através de si, através do livro.
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Sim, de certo modo. A certa altura senti que o livro estava em andamento, depois do primeiro encontro com a Flavia, e que era o livro que eu tinha de escrever. E fui seguindo o que a história me dava. Houve momentos muito fortes. Também com a Colette, quando fomos com a Flavia à escola onde tinham vivido [os pais eram porteiros da escola e viviam nas instalações, foi lá que Griselda matou os filhos]. Também foi um momento muito intenso e eu estava ali a observar. Era a história delas e eu estava ali a acompanhar a reconstituição. Por outro lado, o livro responde a algumas perguntas que a Flavia tinha, mas há outras que não têm resposta, que nunca terão.
E é muito comovente o facto de Flavia viver perto dos irmãos, numa casa com vista para o cemitério onde estão enterrados. A Laura conta que ela chorou muito quando se apercebeu disso.
É terrível. Naquele momento, tive a impressão de que estava a viver algo…
Sobrenatural.
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Sim, mágico. Porque a Flavia diz que não fazia ideia que os irmãos estavam ali, à frente da sua janela. Mas eu acho que era improvável que não soubesse que eles estavam enterrados naquele cemitério. Deve ter bloqueado essa informação. E, no entanto, de todos os sítios para onde poderia ter ido viver, foi viver para ali, para perto deles. E fomos juntas à campa dos irmãos, com a Colette e o René, que foi o sítio onde René reencontrou, digamos assim, a Griselda, deixando um papelinho numa roseira.
Esse é outro episódio espantoso. A Colette e o René perdem o contacto com a família e um dia René, meio de propósito, meio por acaso, encontra a campa dos irmãos no cemitério, vê que está muito bem tratada, percebe que é visitada com frequência, e deixa o seu número de telefone preso a uma roseira.
Sim, no meio do inverno, com chuva e vento. E o papel resiste. E a Griselda encontra-o. E retomam o contacto. A história é de uma poesia total. E eu, quando lá fomos juntos, e recordámos essa cena, disse: “Pronto, é aqui que o livro acaba.” E tive a impressão de que estávamos dentro do livro, percebes? Não sei se se percebe o que quero dizer… É como disse no início, o livro pôs-se em movimento e eu ia escrevendo à medida que ele se ia desenvolvendo. Quase corria para o acompanhar. E quando finalmente chegamos à campa dos irmãos, estamos ali a viver aquilo, ao mesmo tempo que eu estava já a escrever aquele momento dentro da minha cabeça. E percebi que era o fim. Foi muito estranho. E muito comovente.
“Deixei que ele ganhasse algum avanço, para que não desse pela minha presença. Não queria que achasse que o estava a perseguir.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.
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