Kanoa Igarashi: “Estou sempre a tentar encontrar a linha em que me divirto para poder vencer os nervos”
Recebeu a medalha de prata nos Jogos Olímpicos de 2021. Kanoa Igarashi, surfista no auge da sua carreira, quis alertar-nos para os cuidados que devemos ter com o mar. Falou-nos da sua relação com os solares da Shiseido, a marca japonesa não para de criar iniciativas que tentam diminuir o impacto humano nos oceanos.
Foto: DR14 de maio de 2024 às 13:32 Tiago Manaia
Em Peniche há uma azáfama fora do comum num hotel com grandes janelas de vidro viradas para o oceano. Nos dias em que ali decorre a Liga Mundial do Surf (WLS), o vento não traz só um intenso odor a maresia, atrai também surfistas de todo o mundo ávidos de mergulhar para dentro de água.
Ficamos sentados no lobby a observar o movimento das novas chegadas, as múltiplas nacionalidades vincam a importância que têm ganho as ondas em algumas regiões de Portugal. É neste cenário que aguardamos a chegada de um surfista que não para de suscitar interesse – nos média, nas redes sociais e na forma como tem evoluído dentro e fora da modalidade. Ainda antes de subir ao pódio dos Jogos Olímpicos de Tóquio, Kanoa já fascinava pelo seu percurso de vida.
Nasceu há 26 anos na Califórnia, os seus pais de origem japonesa mudaram-se para ali tentando concretizar o sonho de oferecer uma educação onde o surf teria um papel central na vida do filho. O plano deu certo, ele começou a competir por volta dos 12 anos. Na sua mistura de culturas, a beleza de Kanoa sobressai, o carisma também. A sua consciência no que toca as questões de ecologia tornaram-no extremamente pertinente. Ele encarna a voz de uma geração que está pronta a lutar pelo futuro dos oceanos (e não só). Nesta dinâmica tornou-se embaixador da Shiseido e o seu Blue Project.
A linha de produtos solares da marca, recentemente reformulada, está focada em reduzir o seu impacto ambiental, as suas fórmulas são muito resistentes e têm uma eluição muito baixa na água do mar. As embalagens de papel veem de florestas geridas de forma ecológica e são recarregáveis. O Blue Project da Shiseido tem apoiado competições de surf, sensibilizado as pessoas para a fragilidade dos oceanos em inúmeras ações, como a que iria suceder no dia a seguir a este nosso encontro, na Peniche Ocean Watch, o surfista esteve a limpar redes de pesca com crianças da região – trazem sempre centenas de bocados de plástico quando veem do mar, e a quantidade é tão grande que são feitos móveis a partir desse plástico que boia no oceano.
Há uma agente e assessores de imprensa, o tempo é contado, ele sorri acessível indiferente ao aparato. Fala em português, quase não tem sotaque. Explica o atraso, estava a surfar na Ericeira, onde acaba por viver uma parte do ano. Foi nessas praias que teve as melhores aulas do nosso idioma.
Um corpo multicultural que se deixa atravessar pelo melhor que cada lugar tem para lhe oferecer. Será assim o corpo do futuro?
É muito impressionante o teu nível de português, usas calão e dizes palavras como "bué". Como surgiu este idioma na tua vida? Como é que foste à procura das palavras que usas agora nas conversas?
Eu comecei a vir para Portugal em 2015. Do nada, foi um país onde comecei a fazer muitas amizades. Tinha uns 17 anos na altura. Era uma boa idade para conhecer pessoas, dentro e fora do surf. Na minha vida, nunca pensei poder ter um grupo de amigos fora da Califórnia. Eu só tinha amigos assim lá.
A tua vinda para Portugal coincide com o final da adolescência?
Sim. Entre os 15 e os 17 anos, uma pessoa normal está sempre em casa ou está com os seus amigos. Como eu estava sempre a viajar acabava por não estar muito ligado às pessoas na Califórnia. Claro que quando comecei a fazer amizades o meu português não era assim. Eu nunca li um livro para aprender português ou fiz qualquer tipo de curso. Foi só mesmo criar amizades e depois foi falar. Depois aprendi a usar outro tipo de português para poder falar com os pais dos meus amigos.
Como explicarias a sensação de apanhar uma onda a uma pessoa que nunca fez surf?
A mim o mar parece que limpa tudo. É onde eu vou logo depois de fazer uma viagem. Cheguei a Portugal há dois dias, e ontem de manhã só queria surfar, só queria entrar na água para limpar. Parece que o mar me faz um reset. E depois eu estou sempre a viajar pelo mundo inteiro, e o mar é sempre o mesmo, parece que não muda... é sempre água salgada. Quando entro no mar, sinto-me logo em casa. Quando eu vou para um sítio novo, sinto que estou sempre a tentar habituar-me ao que está fora de água, mas sei que quando entro na água e vejo as ondas, estou em casa. Fico mais relaxado.
O mundo exterior é um stress?
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Quando tenho um dia stressante, só quero ir para a água para limpar. Parece que todos os meus problemas ou até o cansaço ficam fora da água. No mar não tenho internet, não tenho telemóvel, não tenho nada. Não preciso de me preocupar com mais ninguém, sou só eu. E sinto que estou conectado com o mar, com ele tenho uma relação única.
O surf para mim é um escape da realidade, mas ao mesmo tempo é a minha realidade porque é o meu trabalho. (risos). Aquilo é o meu escritório e ao mesmo tempo é o meu "get away".
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Quando ainda eras crianças, os teus pais levaram-te para Los Angeles, para fazeres surf. Deduzo que não te lembres da tua primeira vez em cima de uma prancha.
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Sim, como eu também não me lembro da primeira vez em que tomei banho, é a mesma coisa. Só há bem pouco tempo percebi que o surf e ir até ao mar não é assim algo super normal. E como me dizias há pouco, há realmente pessoas que nunca vão fazer surf na vida, mas para mim surf faz parte da vida.
Tu dizes que os teus pais são muito japoneses na sua forma de ser, só que tu cresceste na Califórnia. Como era sentir e viver com essa realidade de culturas tão diferentes?
Só há bem pouco percebi o quão diferente era. Eu quando estava em casa sentia mesmo que estava no Japão, só que eu vivia na Califórnia. Em casa vivia a cultura japonesa a 100%. Entrava e tinha de tirar os sapatos, comíamos sempre comida japonesa em casa, só com pauzinhos e essas coisas. Depois quando eu saía de casa, como pessoa, eu não sentia que mudasse ou mudava naturalmente. Mas quando ia ter com os meus amigos americanos, a dinâmica era completamente diferente. Não era só a língua que mudava. Tudo mudava em termos de cultura ou regras, mas eu achei simplesmente que era normal.
Tu olhavas para o mundo, por exemplo para Los Angeles, como um estrangeiro?
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Eu senti-me sempre confortável. No Japão sentia-me muito em casa e depois na Califórnia sentia a mesma coisa.
Em Portugal também?
Sim, também me sinto em casa. (risos) Eu faço estas perguntas a mim próprio também. No outro dia conheci um miúdo de onze anos que fazia skate, era espanhol, mas falava tão bem inglês, ele ia à escola na Califórnia, e dei por mim a pensar, como é que ele faz isto tudo? E lembrei-me... Eu era assim também! Visto de fora tudo parece mais confuso.
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São só narrativas novas?
Sim.
A tua narrativa vai sempre seguindo o mar? Como geres a competição no meio disto tudo porque ainda há pouco evocavas o surf como um escape. Que nível de concentração te é exigido quando estás a competir para vencer uma medalha olímpica? O que entra em jogo?
Como atletas, estamos sempre na luta contra nós próprios. Estamos na luta com a nossa mente. Mais que em relação aos outros atletas, eu sinto que estou sempre em competição comigo próprio.
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Lutas para alcançar os teus objetivos?
Sim, e luto contra a minha cabeça. Pode haver um dia em que acordo menos confiante que no dia anterior. Há coisas assim na vida de atleta em que parece não haver uma explicação. Os meus amigos dizem que eu sou maluco, mas é assim... Nós estamos sempre a pensar na competição, nós estamos sempre a pensar como podemos melhorar. E depois é preciso encontrar o equilíbrio e tentar encontrar alguma diversão ou uma atitude "have fun" que poderá dar algo a esses momentos em que enquanto atletas ficamos nervosos. Pelo menos eu... Eu estou sempre a tentar encontrar aquela linha em que me divirto para poder vencer os nervos.
Pareces um artista a falar...
Nunca tinha pensado bem nesta resposta, mas é o que eu sinto. Hoje passei o dia todo a treinar. Hoje até posso até ter apanhado uma onda em que fiquei nervoso e depois, no momento em que estou a remar para fora do mar, penso para comigo "tens de te divertir mais". Penso em sentir o vento, sentir a água, estar no mar, sentir a prancha nos pés, essas sensações... E assim começo a esquecer-me da onda anterior, pode ter sido uma onda em que caí ou em que eu estava fora do ritmo dela. Se me estou a divertir parece que isso já não interessa. Portanto, para mim o segredo é mesmo focar-me nisso e não é só dizer que o vou tentar, é fazer.
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É quase uma partitura musical, essas coisas que descreves, no processo de sensações sentidas dentro de água...
Mas há um equilíbrio que é preciso encontrar, quando nós estamos dentro de água a competir é muito difícil dizer "vou-me divertir".
Quando há medalhas ou há troféus e objetivos muito importantes, aí é muito difícil dizer que te vais divertir. Porque há a pressão, mais as pessoas que te estão a ver. Às vezes é só mais peso do que diversão. É aí que está a luta.
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Como é estar num pódio a receber uma medalha ou um troféu, depois de tanto esforço?
É das melhores sensações estar no pódio, estar com o troféu nas mãos e saber todos os sacrifícios que fiz... (pausa) o sacrifício pode ser não poder estar com amigos, nem sair à noite, ou lembrar-me do tempo que não passei com a minha família... Um atleta tem de fazer muitos sacrifícios. Mas quando estou no pódio eu sei que os meus pais estão a ver felizes, e os meus amigos estão a ver contentes por mim... (pausa). Não sei se vale a pena. Porque eu consigo perceber também que, por causa disso, perdi a festa de anos de um amigo próximo, ou não estive ao lado dos meus pais numa altura em que era preciso (pausa). Para mim o pódio é muito mais do que só o troféu.
A tua geração parece ter muita consciência daquilo que foi feito de mal no planeta em termos ambientais, muito mais do que as gerações anteriores. Tu tens a sensação de ter tido um "wake-up call" no que toca a ecologia e o clima e a gravidade das coisas que estão a acontecer?
Eu já tive alguns "wake-up calls". Como eu te dizia há bocado, para mim o mar é a minha casa. Posso até dizer-te que o mar é a minha primeira casa, hoje em dia. E para mim a melhor maneira de dizer às pessoas o que está a acontecer, é explicar-lhes tudo. Digo-lhes: "sabes, é como quando alguém vai ficar em tua casa e deixa lixo no chão ou deixa tudo desarrumado depois de lá ter estado." E neste momento eu tenho pessoas a chegar a minha casa e destruí-la, e tenho a sensação de que tenho de limpar a minha casa. Tenho de a arrumar, não posso deixar a minha casa assim. Já tive mesmo essa sensação de ir surfar e ver muito lixo. Dou por mim a pensar que aquela praia não é a praia que tinha na imaginação dentro da minha cabeça.
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Foto: Pedro Machado
E vês muitas praias assim neste estado?
Vejo no mundo inteiro. Lembro-me bem de uma praia em Bali. Foi das primeiras viagens que eu fiz com a minha família, devia ter 12 anos e havia uma praia cheia de lixo, com garrafas de plástico, garrafas de água e tudo e mais alguma coisa. Lembro-me de perguntar aos meus pais, 'porque é que eles não estão a tratar bem o mar aqui?'. Na Califórnia estava habituado a ver a praia a ser mais bem tratada. Explicaram-me, "há pessoas que não respeitam o mar". Isso foi um wake-up call dei por mim a pensar, 'como é possível? Como é que alguém pode deixar lixo num sítio tão incrível'.
Aos 12 anos pensei que era preciso fazer alguma coisa. Na altura não havia muito que pudesse ter feito, mas fui aprendendo, e fui passando a mensagem. Começou com o meu grupo de amigos, dizia-lhes 'sempre que formos surfar temos de voltar com algum lixo para deitar fora.' Depois comecei a fazer parcerias com marcas que tinham um real interesse em proteger o mar. E ainda estou a aprender, ainda quero melhorar. Mas por exemplo, em minha casa já não usamos garrafas de plástico, há coisas assim simples que eu sei que fazem a diferença. E agora quero que a mensagem passe para o mundo inteiro.
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Tens alguma superstição relativamente ao mar, ou antes de surfar?
Sinceramente é por creme. É por Shiseido. Para mim, mesmo num dia em que não haja sol, eu ponho creme. Quando tinha 6 anos a minha mãe dizia-me que se quisesse surfar tinha de respeitar duas regras – tinha de proteger a pele e terminar sempre os trabalhos de casa. Agora já não estudo, mas ainda meto o creme (risos).