Idadismo. Persistem as normas de aparência para as mulheres acima dos 50 anos? Uma reflexão
O idadismo aparenta ser mais visível nas mulheres porque engloba os conceitos, os preconceitos e os estereótipos criados em torno do ideal de beleza feminina, imposto pelos homens e consentido pelas mulheres, castigando-as quando a frescura da idade se esbate e o corpo se transfigura. As atrizes famosas, favorecidas pela beleza e com idades superiores aos 40 anos, são o rosto mais visível dessa desprezível discriminação.
Foto: Getty Images30 de dezembro de 2024 às 13:47 Manuel Dias Coelho
"Mãe de três filhos - 10, 11 e 15. Divorciada. Americana. Trinta anos de experiência como atriz, em cinema. Ainda com mobilidade e mais afável do que os rumores proclamam. Pretende um emprego estável em Hollywood. (Já esteve na Broadway.) Bette Davis, Ao c/ [do agente de talentos] Martin Baum. Dão-se referências, se requeridas." Com o sarcasmo inato, a par do tom e do vocabulário cáusticos que a marcaram, até nas frases memoráveis no grande ecrã ("Gostava de te beijar, mas acabei de lavar o cabelo.")*, Ms. Davis fez publicar aquele anúncio, acompanhado de uma fotografia sua, na secção "Procura-se: Mulheres/Artistas" da Variety, a revista dedicada às artes cinematográficas, em 24 de setembro de 1962.
Tinha completado 54 anos de idade e 31 de uma carreira gloriosa, praticamente indemne, e revelou a surpreendente modéstia de não citar as 11 nomeações para os Óscares, das quais recebeu duas das tão ambicionadas estatuetas douradas. Mais do que a "procura" por um emprego (presume-se que o anúncio terá sido publicado como retaliação por ter abandonado a peça A Noite da Iguana, na Broadway), a atriz contribuiu para proclamar o ostracismo, senão o desprezo, a que a máquina trituradora de carreiras que é Hollywood sempre votou as atrizes, não pela idade, per se, mas pelo que a mesma contribui para o esbater da beleza física, devido à passagem implacável dos anos.
Sessenta e dois anos volvidos, Demi Moore, de 61, regurgitou a mesma repulsa pela hostilidade que o cinema e a sociedade continuam a revelar para com as mulheres, sejam atrizes ou não, quando o corpo, por via da idade, não exala a frescura que as transforma, nem sempre por vontade própria, em objetos, sobretudo de desejo. Disse-o na lúcida e algo imprevisível entrevista que concedeu ao TheNew York Times, em 24 de setembro deste ano, o dia do lançamento do seu livro Inside Out - A Memoir (HarperCollins). Na verdade, Moore representa todas as Bette Davis que existem desde os primórdios do Cinema, e que se tornam descartáveis a partir dos 40 anos. E o indigno fenómeno não se restringe ao grande ecrã. A beleza do rosto de Demi Moore, estranhamente inocente para a imagem hipersexualizada que lhe atribuíram, e o corpo que se esforçou tanto por manter "desejável", bem como a voz sensualmente rouca, sempre se sobrepuseram ao reconhecimento do seu desempenho profissional.
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Na entrevista, a atriz interrogou-se sobre as razões, sempre ditadas pelos homens, que impõem as normas de conduta às mulheres, nomeadamente no que diz respeito ao corpo. Assim, quando interrogada sobre a "obrigatoriedade" de manter um corpo perfeito no início da carreira, na década de 1980, declarou: "Penso que havia um sentimento generalizado em relação a certas expectativas, em especial quando estávamos a sair dos anos 80 e 90, em que havia uma maior pressão para a perfeição. Se olharmos para qualquer publicidade [daqueles anos], tudo era muito clean e perfeito, e não havia qualquer atitude de inclusividade em relação ao corpo. Existia um padrão de beleza mais extremo e, como escrevi no meu livro, eu tive a experiência pessoal de me terem mandado perder peso em alguns filmes, antes de ter os meus filhos. E, mais uma vez, essas foram experiências humilhantes. Mas a verdadeira violência era o que eu estava a fazer a mim própria, a forma como me torturava, fazia exercícios extremamente loucos, pesava e media a minha comida, porque estava a colocar todo o meu valor na forma como o meu corpo era, no seu aspeto, e a dar mais poder à opinião dos outros do que a mim própria."
Criticou, ainda, as normas da aparência para as mulheres acima dos 50 anos: "Lembro-me, há muito, muito tempo, de ouvir dizer que, a partir de uma certa idade, [uma mulher] não deveria usar o cabelo comprido e acho que, inconscientemente, havia uma parte de mim que não acreditava nisso e que dizia ‘Bem, quem é que fez essa regra? Só porque é assim que tem sido, não quer dizer que tenha de ser assim’." Por isso, Demi Moore exibe o cabelo longo, liso e preto.
Manohla Dargis, crítica de cinema (sim, existem mulheres que a fazem...) e chefe dessa secção no The New York Times, escreveu, a propósito: "No final da década de 1990, depois de anos a dar tudo de si a Hollywood e a mostrar quase tudo de si, Demi Moore começou a desaparecer [ao atingir os 40 anos]. Nessa década, tinha sido uma grande estrela de cinema, com grandes êxitos, fracassos humilhantes, amigos famosos, um casamento célebre e capas de revistas que faziam manchetes. Como todas as estrelas, ela trabalhou e vendeu a mercadoria, incluindo ela própria. E, como muitas estrelas femininas, fez filmes com realizadores masculinos que a transformaram num espetáculo de desejo, um espetáculo do qual ela procurou, em parte, apropriar-se através do seu corpo." E não se fica por aqui: "Vê-se muito do seu corpo no mais recente filme de Moore, The Substance, da realizadora francesa Coralie Fargeat. É uma aberração de terror corporal que, satiricamente, visa a mercantilização das mulheres e Moore é ferozmente memorável como uma atriz que é despedida quando chega aos 50 anos. É um desempenho suficientemente forte para que deixemos de pensar no facto de ela estar nua em muitas das cenas, suficientemente forte para que deixemos de nos perguntar qual é o seu regime de exercício [físico] ou que intervenções [estéticas e cirúrgicas] ela fez, se é que existem algumas. No final, admirei o facto de ela ter superado [o filme]. Também espero que tenha melhores filmes no futuro. Ela merece-os." O que Manohla Dargis quis referir, implicitamente, é que Demi Moore é mais do que um belo corpo.
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Uma outra atriz, Geena Davis, tem levantado a questão da idade e, através dela, do corpo feminino e da minoração das mulheres nos média. É muito louvável que as atrizes e outras celebridades do espetáculo possam colocar a fama, o poder e a influência que detêm ao serviço deste e de outros combates e que não sirvam apenas para o papel de musas publicitárias de marcas de luxo. Existem outras mulheres que também se solidarizam com essa luta, a qual, de resto, foi espoletada pelos movimentos feministas. Geena Davis, distinguida com um Óscar pelo desempenho em O Turista Acidental (de Lawrence Kasdan, 1988), e nomeada para esse galardão pelo soberbo manifesto feminista que é Thelma e Louise (de Ridley Scott, 1991), também viu a carreira cinematográfica a desvanecer-se, à medida que a idade progredia. Como desforra, fundou o Geena Davis Institute on Gender in Media, há 22 anos. O instituto é considerado um sucesso, dedicando-se a destacar e a procurar corrigir o desequilíbrio entre os géneros, e a desafiar os estereótipos degradantes nos meios de entretenimento. Por a questão da idade ser incontestável, a organização divulgou um estudo com o título Mulheres com Mais de 50 Anos: O Direito de Serem Vistas no Ecrã. As conclusões desse estudo, realizado em parceria com a fundação Next 50 que defende as mesmas convicções, revelam a sub-representação e os estereótipos das personagens com mais de 50 anos nos meios de comunicação social, apelando a uma representação mais diversificada e autêntica. Uma vez mais, a idade não significa mais do que um subterfúgio para a razão dessa exclusão no feminino: as perdas de juventude, de harmonia corporal e de desejabilidade que se exige, milenariamente, às mulheres.
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No arco temporal que vai de 2010 a 2020, o estudo revelou as principais conclusões sobre a representação da idade e, nessa década, constatou-se que nos Estados Unidos da América, a principal potência mundial e detentora da mais poderosa indústria cinematográfica, de canais de televisão e de plataformas de streaming muito dominantes, as personagens com mais de 50 anos constituem menos de um quarto de todas as personagens dos filmes de maior sucesso e dos programas de televisão de maior audiência da última década; e que há uma disparidade significativa entre personagens masculinas e femininas na faixa etária superior aos 50 anos, com os números que traduzem a diferença de presença entre uns e outros a atingirem 80% nos filmes, 75% na televisão aberta e 66% no streaming. Acrescenta que a narrativa em torno das personagens de ambos os sexos com mais de meio século de vida, tende, frequentemente, para a vilania, em detrimento do heroísmo, com 59% dos filmes e 43,2% das séries de televisão a apresentarem vilões mais velhos, em comparação com 30% e 22,1% de heróis, respetivamente. E ressalta que os enredos românticos são desproporcionalmente mais baixos para as personagens com mais de 50 anos, sendo que as personagens mais jovens têm duas a três vezes mais probabilidades de viver um romance.
Os audiovisuais e a Moda mantêm-se cumplicemente unidos na imposição dos estereótipos da perfeição física que criaram e que as redes sociais passaram a ratificar e a sustentar. As publicações destinadas ao público feminino têm revelado, há uma década, um esforço (nem sempre consistente...) de inclusividade e de diversidade aos níveis do corpo, da raça e da idade, mas isso tem sido insistentemente contrariado, no último caso, pelas imagens da publicidade e das produções de moda que apresentam modelos femininos pós-adolescentes ou jovens adultos, alimentando, assim, a candente questão do idadismo, o qual, apesar de ser transversal na sociedade, atinge de um modo mais intencional as pessoas mais velhas e, entre elas, as mulheres. Estas são socialmente escrutinadas em termos do corpo, do comportamento, da idade e da atitude. Ao contrário dos homens, não é permitido na nossa sociedade, supostamente civilizada e avançada, que uma mulher apresente um grama de peso a mais, um único cabelo branco e uma simples ruga facial. Por exemplo, na televisão portuguesa, a idade e a beleza física aparentam ser requisitos imprescindíveis para a contratação feminina de profissionais de informação, ainda que também aos homens se possa aplicar essa realidade, na generalidade dos casos. Não foi por acaso que foi publicado o livro Beauty Pays: Why Attractive People Are More Successful**(Princeton University Press, 2006), de Daniel Selim Hamermesh, reputado economista norte-americano, que expõe, ou denuncia, as razões e as motivações que permitem a quem é bafejado pela beleza ter mais possibilidades de vencer na vida. O estudo abriu a porta a outras pesquisas que desenvolveram essa tese, sobretudo na Europa. De resto, basta irmos ao cinema, ligarmos a televisão ou folhearmos uma revista de moda para fazermos a contagem dos favorecidosthe pela juventude e pela beleza, e de quem não é, confirmando, sem equívoco, que os primeiros estão em notória vantagem. Até completarem 40 anos.
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* No filme The Cabin in the Cotton, de Michael Curtiz, de 1932.
** A Beleza Recompensa: Porque as Pessoas Atraentes São Mais Bem-Sucedidas (em tradução livre).
Texto originalmente publicado na revista anual da Máxima, de novembro de 2024.