Icons, Innovations & Firsts: como a Levi’s contou a sua história em Milão

Foi no Mudec - Museo delle Culture, em plena Milan Design Week, que tivemos o privilégio de ver de perto as peças de vestuário que contam a história da marca de São Francisco. E também a história da roupa utilitária dos últimos 150 anos.

Foto: @MUDEC
09 de maio de 2024 às 07:00 Diego Armés

É recorrente: cada pessoa que pretende entrar, tenta abrir aquelas portas empurrando-as. Dir-se-ia que nove em cada dez pessoas cometem o mesmo erro, que é instintivo: olha-se para os puxadores, verticais e compridos, e a intuição diz-nos "empurra". Contudo, a realidade riposta, "não é para empurrar, é para puxar". Nove em cada dez pessoas. O erro não pode ser de nove em cada dez humanos, tem de ser anterior a quem, enganado, tenta empurrar as portas. O designer que as concebeu falhou na sua missão de ir ao encontro da perceção intuitiva do objeto. Falhou no capítulo da função prática.

O episódio podia ser irrelevante - e é-o, na verdade -, todavia estamos diante das portas do Mudec - Museo delle Culture, em Milão, a cidade do design, mundialmente conhecida como um dos principais polos, senão mesmo o principal, da concepção de objetos cujas funções estética e prática sejam primorosas. E viajámos até Milão no contexto da Milan Design Week que se realizou de 16 a 21 de abril. Felizmente, não foi o design de portas e puxadores o que nos trouxe até Milão, o design que nos interessa é outro. Vamos antes falar de moda. Mais concretamente, vamos falar da Levi’s e do seu papel cultural como referência e inspiração.

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Foto: @MUDEC

É precisamente numa das primeiras salas do Mudec que encontramos (depois de acertar com a maneira de abrir as portas) a exposição Icons, Innovations and Firsts, cujo subtítulo trata de explicar melhor: "Stories of heritage and progress from the Levi’s archives", "histórias de herança e de progresso dos arquivos da Levi’s". Entrar nesta sala e deparar com estes 31 itens, cada um deles contendo uma explicação detalhada e respetiva contextualização, é, de certo modo, entrar num observatório do mundo ocidental ao longo dos últimos 150 anos a partir do que as pessoas foram vestindo ao longo dos tempos. E se há coisa que as pessoas vestiram durante o último século e meio foi calças de ganga. É, portanto, um olhar transversal à sociedade, com óbvio enfoque na classe operária, os chamados blue collar, os primeiros a perceberem nas calças da Levi’s uma ferramenta indispensável aos trabalhos mais duros - nas minas, na vida de cowboy, nas fábricas, nos caminhos de ferro -, mas com uma expansão natural, quase espontânea, a todas as outras áreas da sociedade, com algumas das peças a serem, hoje, qualquer coisa que mistura a essência da relíquia e do documento histórico.

Exemplos não faltam. O primeiro de todos, na coleção Firsts - aquela que em que se apresentam os mais relevantes exemplares de primeiros modelos ou, de algum modo, os mais importantes de uma categoria ou ranking -, encontramos aquelas que foram designadas 9 Rivet Jeans ("jeans dos 9 rebites"), o mais antigo par de calças do arquivo da Levi’s - e, especulamos nós, o mais antigo par de denim à face da Terra: as 9 Rivet, depois de encontradas numa mina, foram analisadas e os seus tecidos datados de 1873 ou 1874, nos laboratórios da casa, em São Francisco. As 9 Rivet fazem parte da primeira remessa de jeans produzidos por Levi Strauss. Paul Dillinger, Head of Global Product Innovation da Levi’s, tentou reconstruir a peça de vestuário e deparou-se com dificuldades, no mínimo, insólitas: a formidável consistência do tecido original impedia Paul de costurá-las como pretendia. Dillinger conta ainda que quando analisou o corte das calças percebeu que esse não obedecia a opções estéticas de qualquer ordem, era antes uma estrutura de linhas e ângulos retos, cujo propósito era simplesmente conceber umas calças resistentes. Paul Dillinger falará com a Máxima acerca de como a função prática do design é parte do ADN da Levi’s, e que esse aspeto é tido em conta em todos os capítulos da inovação na casa.

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Outro exemplo impressionante pode ser encontrado na secção Icons - a secção onde se mostra peças vestidas ou interpretadas por figuras famosas, tais como Albert Einstein (blusão de cabedal), Andy Warhol (o famoso par de jeans com os esboços de A Última Ceia para serem vistos sob luz negra), ou as Spin Art 501 por Damien Hirst, entre outras. Trata-se das célebres Homer 501. Homer era o nome do dono destes jeans, e fez a compra em 1917. Homer não era famoso, mas tornou-se conhecido da marca por causa da disputa que manteve com a casa de São Francisco, em que desafiou a garantia dada pela marca. Em 1920, escreveu uma carta à Levi’s, reclamando que as calças não tinham durado tanto quanto ele esperava. A marca acedeu a dar-lhe um par de substituição e guardou o par usado e danificado. Um século mais tarde, quando Tracey Paney, Historiadora e Coordenadora do Arquivo, decidiu analisar a peça, descobriu que o que estava danificado não era a ganga das calças originais. Essa estava inteira. Os danos estavam nos remendos que Homer tinha acrescentado quando as customizou, acrescentando-lhes bolsos e proteções a partir de calças mais velhas - e, uma vez mais, temos o design ao serviço da funcionalidade. Esses remendos, que se estragaram com o uso, escondiam um par de calças perfeitamente intacto debaixo deles.

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Na secção Innovations, aquela em que se olha para o futuro e onde se pode ver alguns modelos que mudaram o curso da história do design de vestuário e outras que foram, na altura, ideias brilhantes e no momento seguinte invenções obsoletas - "Todas estas inovações refletem a melhor tecnologia do momento, só que os momentos mudam depressa", dirá Paul Dillinger, com um sorriso honesto, durante a entrevista -, há também muito por explorar. Desde as Functional Fashion Levi’s, 1975, que permitiam a pessoas com deficiência vestirem calças sem esforço, graças a um sistema de fechos Éclair laterais em todas as costuras das pernas, até ao nosso favorito Integrated Electronics Jacket, de 2000, que tinha bolsos suficientes para carregar comodamente cinco leitores de mp3 - "É pena que o Steve Jobs tenha lançado o iPod logo a seguir", constatará um conformado Dillinger, antes de acrescentar que "tudo isto é aprendizagem". Já agora: as célebres 501 que o próprio Steve Jobs usava habitualmente durante as apresentações dos lançamentos da Apple também fazem parte da exposição, com o seu buraquinho no bolso de trás, por causa da carteira, e dois botões acrescentados ao cós da cintura, para que Jobs pudesse usar suspensórios em vez de cinto.

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Podíamos falar ainda do Commuter Trucker Jacket, desenvolvido em parceria com a Jacquard by Google, a partir de 2017, e que teria sido fenomenal, devido à sua capacidade para se atualizar, através das apps ligadas às diferentes funcionalidades e preferências do utilizador. Só que entretanto vieram as regulamentações e as políticas de privacidade da União Europeia e nos EUA, primeiro, e uma pandemia que deixou o mundo congelado durante dois anos e pouco, a seguir, pelo nunca saberemos se esta peça poderia ou não ter sido um êxito de vendas. Mas o que importa reter desta exposição, que pôde ser vista entre 5 e 26 de abril em Milão - e pela primeira vez na Europa -, é que a história Levi’s é feita de histórias de fusão entre estilo e utilidade. São como ferramentas que os trabalhadores foram adaptando às suas necessidades práticas, ao seu trabalho, quer se tratasse de um mineiro de 1890 ou do fundador da Apple 100 anos mais tarde.

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