Sou mais feliz uma hora em Algueirão do que uma vida inteira aqui, na aldeia. No outro dia, cruzei-me com uma moça mais nova, que agora anda por aqui, mais o marido, parece que se mudaram para cá, ou que se estão a mudar. Vêm de Lisboa. E eu perguntei-lhe o que vieram para aqui fazer. Ficou muito espantada, não percebeu a pergunta, “estão, isto é tão bom e tão bonito aqui”, dizia-me ela, “muito melhor do que na cidade”. Eu ri-me. Estas pessoas mais novas acham que sabem coisas - não sabem nada. Andam só ao sabor das modas, flutuam na espuma dos dias. Nada - é o que elas sabem.
E foi isso que eu lhe disse, precisamente, mas por outras palavras: “Sou mais feliz uma hora em Algueirão do que uma vida inteira aqui”, respondi-lhe eu. Perguntou-me porquê, fazendo uma expressão que eu sei muito bem o significa: significa que não acredita em mim, que não acha possível que uma velha de bengala pense assim. O que sabe uma velha da aldeia com uma bengala na mão, curvada sobre o empedrado de sempre, caminhando devagarinho? Só que esta velha que aqui está sabe muito. Contei-lhe a minha história.
Eu nasci naquela casa ali ao fundo, no quarteirão a seguir à igreja. À época, havia menos casario, eram aqueles becos antigos e pouco mais. Depois, foi crescendo, pois claro, como acontece em toda a parte. Mas, na altura, naquela parte da aldeia, eram uma dúzia, se tanto, as casas ali voltadas para as quintas e para a serra. Foi ali que nasci e foi ali que cresci. Não me fiz mulher na aldeia, mas saí de cá já moça crescida. Tinha 16 anos. Eu trabalhava nos campos, como boa parte das outras da minha idade. Andei na escola até à segunda classe. Aprendia a ler e a contar, sabia assinar, fazer contas de somar e de subtrair, coisas simples. Sabia o essencial para a vida que me esperava. Acontece que não era essa a vida que eu queria.
Fiz 16 anos e, lá em casa, deram-me os parabéns. Não havia tempo, nem dinheiro, nem disposição para grandes festas. Nem bolos de aniversário, muito menos prendas. Bebia-se um copo de vinho, fazia-se um brinde, a minha mãe cozinhava no lume de lenha um prato mais caprichado que não fosse a sopa de sempre. “Queres ir trabalhar para Lisboa?”, perguntou-me o meu pai. Não respondi, não sabia o que dizer. Ele depois lá explicou melhor: um primo daqui, da aldeia, abrira um restaurante alguns anos atrás, nos arredores de Sintra. Precisava de uma mulher para a cozinha. Perguntou se eu - “a tua Alzira” - não gostava de experimentar. Fiz rapidamente as minhas contas: entre a ceifa e as colheitas, carregar palha, dar de comer animais e ordenhar ovelhas, e uma ida para a cidade, ver coisas novas, conhecer gente, ver o mundo, não hesitei. “Está bem, eu vou.”
Comecei por trabalhar na cozinha, mas as minhas maneiras rudes, a pronúncia do Alentejo e, segundo diziam, os meus olhos bonitos tornaram-me mais solicitada na sala, onde passei a servir clientes e a aturar-lhes a falta de maneiras. Naquele tempo não era como agora. Os homens, com uns copos em cima, ficavam ainda mais desavergonhados. Diziam-me tudo. E, às vezes, não se ficavam pelo que diziam - mexiam. Pousavam a mão em mim. E uma pessoa tinha de, com boas maneiras, conseguir esquivar-se da situação. O cliente tinha sempre razão e uma mulher dava-se ao respeito, não o exigia.
Não eram todos iguais. Felizmente, havia alguns verdadeiros cavalheiros. Um deles era o Gonçalo. Dez anos mais velho do que eu, mas ainda assim um jovem. O Gonçalo não tolerava esses comportamentos. “Eh-lá! Que estás a fazer, deixa a rapariga!” Várias vezes confrontou os bêbados que, à medida que as horas passavam, se tornavam mais e mais atrevidos. Eram outros tempos - e só tem saudades desses tempos quem nunca os viveu.
A maneira firme e confiante como o Gonçalo encarava os outros homens, muitos deles mais velhos, mais bem vestidos e com mais alto estatudo do que ele, começou a encantar-me. O Gonçalo era um homem discreto, não se lhe viam exuberâncias. Vestia-se com elegância e discrição, gostava de não dar nas vistas, mas sem nunca parecer demasiado humilde. Caminhava com dignidade, falava de modo sereno. Mesmo quando parecia exaltar-se, como nessas situações em que enfrentava os malcriados que me apoquentam, mantinha sempre a calma e a compostura. Era essa maneira séria e suave ao mesmo tempo que faziam do Gonçalo um homem atraente. Não tinha a beleza dos artistas de Hollywood, mas possuía o charme de quem sabe estar.
Comecei a conhecer os artistas de Hollywood precisamente com o Gonçalo. Convidava-me para ir com ele ao fim de semana a Lisboa. Andávamos pela Baixa, subíamos ao Chiado e assistimos aos filmes que estavam em cartaz. Íamos ao São Jorge, ao Éden e ao Condes. Às vezes, para vaguear pelas avenidas, subíamos ao Império ou até lá acima ao King. Foi assim o início do nosso namoro, às tardes de domingo, passeios com direito a cinema e gelados nas esplanadas do centro.
Quando eu fiz 18 anos, casámo-nos. Já passávamos a maior parte do tempo juntos. Eu praticamente vivia em casa do Gonçalo, que tinha um pequeno apartamento em Algueirão. Ele dizia sempre “no Algueirão”, mas nunca me soou bem. Os meus pais não podiam saber deste amancebamento, como é evidente. Não viam o concubinato com bons olhos. Na minha terra, um homem e uma mulher dormiam juntos depois de casados, nunca antes.
Quanto ao casamento, o pedido foi feito com todos os preceitos, com uma visita do Gonçalo à aldeia, onde se apresentou ainda mais bem vestido do que de costume. Galante como era, causou impressão. Falava bem, com gentileza e segurança, usava as palavras num alinhamento que não era habitual ouvir-se pelas nossas paragens, onde o quotidiano rude pedia frases simples e objetivas, que pouco importam se eram mais ou menos cuidadas. A minha mãe gostou muito dele, o meu pai mostrou-lhe respeito, foi tudo muito educado. Ele pediu a minha mão, o meu pai disse que sim, senhor, e voltámos à nossa vida, em Lisboa.
As nossas rotinas mantiveram-se, mesmo depois de casados. As visitas à cidade não eram apenas um escape para namoros às escondidas. Tornaram-se rituais de que verdadeiramente desfrutávamos com prazer. Muitas vezes, descíamos ao Terreiro do Paço, estacionávamos o carro - um Datsun 1200, que mais tarde o Gonçalo trocou por uma Ford Escort carrinha -, e caminhávamos até ao Cais de Sodré, onde apanhávamos o ferry para o outro lado. Gostávamos muito de lanchar nas tasquinhas de cacilhas, íamos às lamejinhas, aos carapauzinhos, aos petiscos tradicionais. Era uma vida boa.
Tivemos filhos. Três, duas meninas e um rapaz chamado Nuno. O meu Nuno ainda hoje é a minha maior dor. Ceifaram-no tinha ele sete anos - um carro que vinha muito depressa e o apanhou a atravessar uma rua de Algueirão. Nunca me conformei. Desde esse dia, protegi as minhas filhas como se não houvesse outra coisa na vida. E, na verdade, não há. Só que a proteção que lhes dei acabou por ser em demasia, acho eu. Agora, que tenho tempo de sobra para pensar nisso, compreendo que talvez as tenha querido prender demasiado a mim. Fui sempre vigilante, sempre controladora, e isso também não é bom. Não espanta que se tenham ido embora as duas, assim que puderam. Uma foi para a Suíça, a outra viajou para ainda mais longe: vive em Singapura vai para 12 anos. Raramente as vejo, claro.
Quando fiquei viúva, há seis anos, não me restava ninguém. O meu Gonçalo morreu e eu não queria sair daqui, largar a vida que tínhamos. Resisti o quanto pude. Queria tudo menos regressar à aldeia. Por mim, ficava em Algueirão para sempre. Mesmo com a solidão a correr-me, sentia-me muito melhor lá do que aqui. Aqui, não me identifico com ninguém. Da minha geração, as pessoas que saíram, não voltaram; as que ficaram, não evoluíram, permanecem estagnadas, até hoje. E eu mal me dou com elas, digo bom dia, boa tarde, pergunto como estão - em todo o caso, é só disso que sabem falar, de como estão, de como vão, de como se mantêm vivas, que tal estão os sinais vitais, as doenças crónicas, as análises do médico. Um aborrecimento.
Eu não queria voltar. Não, nem pensar. Só que houve um inverno em que caí à cama. Foi só uma constipação, nada de muito grave. Acontece que, nesses dias, percebi que não tinha quem me acudisse em caso de precisar. Falei com as minhas filhas e elas lá me convenceram. Regressei à aldeia.
Se eu meu Gonçalo fosse vivo, eu nunca na vida voltava! Era o voltavas. E, mesmo ele já cá não estando, ainda me custa deixá-lo, lá longe, num cemitério em Mem-Martins. Vou tentar visitá-lo no fim do verão, arranjar-lhe a campa, que tem estado ao abandono já lá vão 18 meses.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.