Histórias de Amor Moderno: “Onde é que já se viu, em pleno século XXI, ter um homem a pedir a mão da sua amada ao pai desta?”

“Admirara em especial o esforço daquele Colin Firth, em piloto automático e versão de venda natalícia, para aprender português.” Hoje, excecionalmente, apresentamos uma história completamente fictícia - embora pudesse ser verdadeira. De resto, todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Romance em noite de Natal: casal apaixonado enfrenta dilemas amorosos modernos Foto: IMDB
27 de dezembro de 2025 às 09:00 Maria Olívia Sebastião

À saída do cinema, começámos a ouvir gritos. Não eram gritos de socorro nem de pânico, eram berros de pessoas a discutir. Um homem uma mulher. Na verdade, quem berrava era a mulher. O homem, sereno, mantinha-se de rosto fechado e limitava-se a dizer “desculpa, mas é o que eu acho”. A mulher ripostava, berrando e insistindo que “tu não tens coração”, “como é possível alguém ser tão insensível” e outras afirmações e questões de essência semelhante, até culminar na pergunta definitiva: “Mas o que é que eu estou aqui a fazer contigo?” Houve uma breve pausa em que ambos se olharam, frente a frente e em silêncio. Tudo foi muito cinematográfico. Por fim, o homem respondeu, “essa é a interrogação que mais me inquieta”. E despediu-se, “até sempre, Lurdes”. Seguiu o seu caminho.

Esta história aconteceu há já muitos anos. Saí com o David, um rapaz do meu curso, já sénior, dois ou três anos mais velho do que eu. O David era muito simpático comigo e tinha claramente um fraquinho por mim. Estávamos em dezembro, quase véspera de Natal, e o David convidou-me para ir ao cinema ver O Amor Acontece - Love Actually, no original, como se diz agora - que tinha estreado poucas semanas antes.

PUB

Pelo que consegui perceber, a discussão lá fora, entre aquele homem tranquilo mas convicto e aquela mulher chamada Lurdes, tinha que ver exatamente com o filme. O homem considerava que o filme era uma xaropada sem pés na cabeça, com casos forçados de amor a acontecer, mas sabe-se lá como e a que custo, ou sob que lógica contorcida e forçada, ao passo que Lurdes, mulher romântica com todas as suas forças, feita de poesia simplezinha e tão cor de rosa quanto possível, admirara cada situação, cada ocasião, cada lágrima do argumento, cada traição do enredo, cada surpresa idiota do destino daquelas personagens miudinhas, frágeis, sem dimensão nem profundidade. Lurdes, porém, gostava daquilo, daquela história comezinha, daquelas relações forçadas - e admirara em especial o esforço daquele Colin Firth, em piloto automático e versão de venda natalícia, para aprender português e conseguir comunicar devidamente com a família de Lúcia Moniz, que aparentemente, segundo o filme, detinha o título da sua propriedade.

Ainda dentro da sala, eu disse ao David, entre a boa disposição e o protesto, “acho que esta comédia romântica não tem muita graça e de romance contém muito pouco”. Ri-me. Ele olhou para mim com estranheza, “como assim?” Parecia surpreendido pela minha crítica. “Não estás a gostar?” Respondi-lhe sem palavras, encolhi o ombro, sei lá, fiz uma espécie de careta a torcer o lábio. Enfim, dei a entender que, ok, agora que paguei bilhete, que se dane, vamos ver até ao fim.

No final, quando saíamos da sala e antes de assistirmos à gritaria de Lurdes com o homem, o David perguntou-me “então, o filme é ou não é fixe?” E foi precisamente a gritaria da discussão que me impediu de lhe dar uma resposta composta, completa e justificada, em que lhe diria que não, que detestara o filme, que era uma amálgama pateta de histórias gratuitas, de sketches despegados e completamente inverosímeis, que ainda por cima parecia fazer a apologia de uma série de coisas de que discordo, desde a traição até ao sentido de posse, refletindo o poder incontestado do patriarcado de uma forma particularmente irritante - onde é que já se viu, em pleno século XXI, ter um homem a pedir a mão da sua amada ao pai desta? Desde quando é que é aceitável ter um homem a tentar seduzir outra mulher com cartazes à porta de casa dela, para que ninguém conseguisse ouvir? Enfim, ficou todo um dossier de contestações por verbalizar.

Quando nos dirigíamos para o carro do David, senti-me na obrigação de ser sincera e dizer-lhe abertamente que, naquele momento, preferia ficar sozinha. Disse-lhe que o filme me dera que pensar. “Pensei que não tinhas gostado assim tanto”, disse-me. “Não gostei mesmo. Achei o filme pouco menos que miserável.” A expressão dele ficou ali, entre a surpresa e o caos. “E é por isso mesmo que preciso de ficar sozinha e de pensar nisto.”

PUB

O David ficou triste, percebi-o. Disse-me que percebia e eu disse-lhe que talvez fosse melhor não avançarmos deste ponto em que éramos bons colegas e praticamente amigos. Expliquei-lhe que há coisas inconciliáveis, divergências que a vida, por mais que insista, nunca vai conseguir corrigir. Ele pareceu-me desapontado, “gosto de ti, Joana”, foi tudo o que conseguiu dizer. E meteu-se no carro. Acenei-lhe uma espécie de adeus e vi-o seguir. Não me perguntou se eu queria boleia - e agradeço que não o tivesse feito, pois eu teria declinado.

Caminhei um pouco no sentido oposto. Passei de novo diante do cinema. Detive-me um pouco a contemplar o póster do filme. Que coisa deprimente: um embrulho natalício, com quadradinhos cheios de cores natalícias e atores britânicos que eram estrelas prontas para serem natalícias também. Eu devia ter percebido de imediato a pobreza de filme que aí vinha. Perdi uma belíssima oportunidade de ficar em casa a fazer qualquer coisa que não fosse perder tempo.

Após esta breve reflexão, de certo modo auto-crítica, continuei a caminhar. Algumas dezenas de metros mais adiante, passei por um pub, daqueles de estilo irlandês, e pensei que, já que estava na rua, porque não aproveitar e entrar. Precisava de qualquer coisa que me fizesse distrair daquelas duas horas de vida que me haviam sido subtraídas diante de um ecrã gigante onde passou um dos piores filmes supostamente românticos que me lembro de ter visto. Entrei.

Junto ao balcão, identifiquei um rosto conhecido, embora não conseguisse perceber imediatamente de onde o conhecia. Demorei alguns segundos até que a ideia me fizesse pop-up, “ah, é o homem da Lurdes e da discussão”. Sem pensar, aproximei-me do balcão, direito à zona onde ele bebia a sua cerveja. Pedi uma Guinness, “copo ou pint?”, perguntou o empregado. “Pint”, respondi. O homem levantou os olhos da sua solidão e olhou para mim, talvez espantado pelo meu pedido robusto. Sorri-lhe. Sorriu-me de volta.

PUB

Hesitei alguns momentos antes de meter conversa. “Que grande discussão, hein?” Ele não percebeu logo. “Lá fora, com a sua companheira, à saída do cinema.” Ele riu-se. Talvez envergonhado, talvez arrependido por não ter sido discreto. “Foi tudo um erro, uma série de equívocos.” Toquei com o meu copo no dele, como se brindasse. “Também odiei o filme.” À nossa!

Conversámos um pouco, a seguir. Falámos de cinema, claro. Ele disse-me que já tivera, tempos antes, outras discussões com Lurdes. “Fomos ao cinema ver a estreia d'O Fabuloso Destino de Amélie, e eu quis sair a meio, aquilo era um insulto.” E saiu mesmo? Ele disse que sim, “se pagas bilhete é para ver um filme com gosto, não para seres castigado duplamente - pagando bilhete e obrigando-te a ver uma coisa sem jeito, que te ofende”. Brindei de novo. Não conhecia mais ninguém que não tivesse gostado - ou mesmo adorado - O Fabuloso Destino de Amélie.

Contou-me que, desde então, ele e Lurdes nunca mais tinham ido ao cinema juntos. A mulher ficara muito ofendida com ele por ter saído a meio e não ter terminado o filme. Ela ficara na sala, vira até ao fim. Adorou, claro. Ele e Lurdes eram casados há 8 anos, contou-me.

Noto agora que não cheguei a perguntar-lhe o nome. Não sei como se chamava aquele homem. Desabafou comigo. “O que é que eu faço agora?” Parecia preocupado. “Disse-lhe ‘até sempre, Lurdes’. Isso é muito definitivo. Com que cara é que eu agoro volto para casa?” Não soube responder-lhe. Fizemos mais um brinde. “O Era Uma Vez no México está em cartaz. Não quer ir ver?”, sugeri. “Podíamos ir os dois.” “Nah… Tenho de ir para casa. O gosto cinéfilo dela pode ser muito pobre, mas é a minha Lurdes e não gosto de a deixar sozinha.” Fizemos um último brinde e desejámos boas festas um ao outro.

PUB
leia também
PUB
PUB