Histórias de Amor Moderno: “Incomodava-me que fosse desleixado com a pasta de dentes, que nunca tapava”

“Uma vez, acabei com um rapaz com quem andei uns tempos na faculdade quando percebi que tinha o hábito de lavar no chuveiro os boxers que usava.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB / 'Bring it On'
24 de agosto de 2024 às 07:00 Maria Olívia Sebastião

O João Paulo não é um homem desarrumado, pelo contrário. Tem o seu método, os seus cuidados, a sua organização. Nem sempre coincidimos na maneira como escolhemos ordenar os pequenos objetos mundanos, a loiça lavada no escorredor ou as numerosas embalagens de champôs, amaciadores, gel-duche e óleos de banho, mas conseguimos entender-nos no que é essencial. As roupas têm o seu lugar, tal como os talheres, seja na gaveta ou na mesa, as escovas de dentes ou as cápsulas de café.  

A ordem é-lhe particularmente importante no que toca àquilo a que chama "objetos de degustação etérea", isto é, os livros, os discos e os vinhos. Neste capítulo, divergimos. O João Paulo atribui aos livros um valor subjetivo, que eu não consigo decifrar, e é a partir dessa escala, aplicada a cada volume, que os organiza nas estantes. Em cima, aqueles que considera "os melhores" - normalmente, clássicos da literatura -, depois aqueles que são "bastante bons", depois os que são apenas bons, ou curiosos, ou descobertas, "livros para explorar", segundo ele. Sempre assim, a descer, até encontrarmos nas prateleiras de baixo os livros técnicos, académicos e religiosos, que também os há nas nossas estantes. 

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Ao início, eu discutia com o João Paulo. Quanto a mim, a ordem devia ser simples: alfabética, primeiro por autor e, dentro de cada autor, pelo título, excluindo evidentemente os artigos, definidos ou indefinidos, para efeitos de consideração da ocorrência mais prematura no abecedário. Depois de muito debate, o João Paulo convenceu-me com um argumento simples - "com o meu método, terás sempre os melhores títulos da literatura à altura dos olhos ou até mais acima; um pouco mais abaixo, as coisas boas e as curiosidades; no fundo, junto ao chão, para onde ninguém olha, estarão os livros que ninguém lê". Ok, não foi só o argumento que me conquistou: a cedência que fez em relação aos vinhos também ajudou - ele queria dividir por regiões e perfis; eu preferi ser mais prática e ordenar por preços, dos mais caros, em cima, para os mais baratos. 

Esta capacidade de organização do João Paulo foi um dos fatores que jogaram a seu favor quando, há três anos, o meu coração se dividia entre ele e outro rapaz, com quem saí algumas vezes - o Nuno. Eu gostava do Nuno, existia entre nós uma química forte, e havia nele muitas coisas que me encantavam. Sentia-me alegre a seu lado. Só que em certos pontos, nos pequenos detalhes, eu perdia o controlo. Bem sei que para a maioria das pessoas estes pormenores não têm qualquer importância, mas a mim tiram-me do sério. E quando pensava no longo prazo, concluía sempre: "Não vai dar". 

O Nuno era incapaz de fechar as embalagens do que quer que usasse para tomar duche. E nem tenho bem a certeza de que ele soubesse para o que serviam alguns dos produtos que tenho na prateleira da banheira - por que raio um homem de cabelo praticamente rapado usa condicionador e reparador de cabelo, por exemplo? Ou gel de higiene íntima? Acredito que os usasse para experimentar, só por curiosidade, possivelmente para lhes sentir o cheiro. 

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Incomodava-me ainda mais que fosse desleixado com a pasta de dentes, que nunca tapava. E já nem falo de uma certa vez - só sei que aconteceu dessa vez e não quero pensar na possibilidade de ter acontecido mais vezes, dispenso saber tudo o que eu nunca descobri - em que se enganou e usou a minha escova em vez de usar a dele. O Nuno era um caso perdido. Pedi-lhe uma vez que pusesse a mesa. Felizmente, seria só um jantar romântico para nós dois. Ele era canhoto a comer, pôs os talheres todos ao contrário, faca à esquerda, garfo à direita. Quando vi, não consegui sequer falar. Senti falta de ar. Tirei tudo da mesa e depois voltei a pôr, com ordem, com arrumação, com lógica, com sentido. E ele a olhar-me com um ar assustado, "tu estás bem, Rosa? Está tudo bem contigo?" Não chegámos a jantar: nesse dia percebi que com ele não seria possível manter uma relação e decidi dar uma oportunidade séria ao João Paulo, com quem namoriscava, sobretudo por mensagem. 

O Nuno foi o mais recente desastre que me aconteceu na vida, mas não foi, nem de perto, nem de longe, o pior de todos. Uma vez, acabei com um rapaz com quem andei uns tempos na faculdade quando percebi que tinha o hábito de lavar no chuveiro os boxers que usava. E depois deixava-os a secar pendurados na torneira antes de os meter na máquina de lavar. Deixava aquilo ali, a ganhar cheiros e a empestar tudo em redor, com aquele odor a mofo e a usado. Era demasiado para mim. 

A ordem das coisas é sagrada para mim e deve obedecer a uma lógica. Quando essa lógica não tem uma explicação concreta e precisa, a ordem deve obedecer pelo menos a um sentido oculto, nem que seja indizível, ou mesmo ininteligível, mas que me cause agrado e me descanse. Há quem diga que é Feng Shui, mas eu não sei se é isso, porque não sei quais são as regras dessa prática oriental. Só preciso de olhar em redor e sentir que os meus olhos ficam em paz com o que veem, e que o meu ritmo cardíaco não se exalta por causa de qualquer coisa deixada num sítio absurdo, ou voltada de costas, ou do avesso, ou mal emparelhada. Se o universo, que é tão grande, não está disposto de um modo aleatório, porque é que a minha sala de jantar há de estar? 

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A mãe do João Paulo já percebeu que o meu apurado sentido de organização pode ser o mais forte dos meus pontos fracos. A Dona Paulina não me adora e eu também não gosto dela. Temos uma pela outra um carinho recíproco. Mas, claro, como ela é a mãe e eu sou só a namorada - eu e o João Paulo vivemos juntos há quase dois anos, pelo que "namorada" já nem devia ser o meu título singelo, porque fica curto, porque é pouco para tudo aquilo que eu sou, mas é assim que ela me vê ("a tua namoradinha, Paulinho, ainda é a mesma?", ouvi-a perguntar certa vez ao telefone, quando já vivíamos juntos há mais de um ano) -, tenho de mostrar compreensão e respeito, muito respeitinho, porque ela é uma senhora, "já tem uma certa idade", coitada, "passou por muito na vida para me criar", pobrezinha.  

Tudo bem, os pais do João Paulo separaram-se tinha ele dez anos, e foi a Dona Paulina quem o educou e criou. Mas também não é como se o pai dele tivesse desaparecido e nunca mais tivesse querido saber dele. Esteve presente, acompanhou, pagou a pensão de alimentos e as despesas de saúde que tinha de pagar, bem como todas as outras despesas com a educação do filho. Ainda hoje é uma figura que faz parte da vida dele e que sempre me tratou muito bem, o Sr. Alfredo. Só me espanta que tenha levado tanto tempo a separar-se da mulher - mas não posso dizer isto em voz alta, devo guardar só para mim e com muitos cuidados, não vá uma palavra desprender-se-me dos lábios sem querer e chegar aos ouvidos do filho ou, pior ainda, da Dona Paulina. 

O pior foi quando comprámos a nova máquina de café. Uma que é muito eficiente e ecológica, de tal modo que tudo nas cápsulas é reciclado, à exceção, espero eu, do próprio café. (É notável a quantidade de coisas que inventam para fingir que se inova, que se progride, que se melhora, quando o essencial já estava inventado há dezenas de anos: as máquinas de café antigas não levavam cápsulas, despejava-se e enchia-se de novo o recetáculo e estava feito. Pelo meio, dispensava-se todo o processo de reciclar para evitar o lixo e o desperdício.) A Dona Paulina jantou em nossa casa e ficou muito impressionada com o aparelho. "Que linda, que elegante", disse a senhora sobre a máquina o que nunca eu ouvira dizer acerca de mim. "Merece uma mesinha mais composta", acrescentou, com maldade, e riu-se, como sempre fazia de cada vez que criticava alguma coisa de maneira venenosa, "ahahahah estou só a brincar, querida, não leva a mal, não fique triste, não queremos uma Rosa murcha", rematou, rindo-se outra vez.  

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Fazia sempre esta cena em relação ao que quer que fosse, desde a mesa de jantar - "ahahahah mas que esquadria tão engraçada e inovadora, ahahahah, uma pessoa quase que fica tonta" - aos recipientes de onde o cão come e bebe - "ahahah então o Tobias come a uma altura e bebe a outra?", tentei explicar-lhe que a gamela da água ficava mais baixa porque se enchia até ao rebordo, ao contrário do que sucedia com a da comida, em que os bagos da ração cobriam o fundo do tacho e pouco mais, "ai que giro, que giro, muito bem visto - esperemos que o bicho não fique com torcicolos, ahahahah". 

No dia seguinte, cheguei a casa e tinha uma nova mesa para a máquina de café. Horrenda. Metálica. Cheia de brilhos e tão desproporcionalmente grande que tapava o acesso a uma das estantes dos vinhos. "Que tal, querida? Gostas? Foi a mãe que ofereceu", disse o João Paulo com voz meiguinha de quem está absolutamente estarrecido e a tentar prevenir cataclismos. "Foi a mãe? A mãe de quem?" - eu detestava que ele dissesse "foi a mãe", como se a mãe dele fosse universal, incontestável e ubiquamente reconhecida por todos, incluindo eu. "Oh, a minha mãe, claro, querida." Respondi-lhe às perguntas anteriores: "Gosto, pois. Só não sei se está no sítio certo." 

No dia seguinte, recuperei a sala: pus tudo como estava anteriormente. Peguei na mesa nova e levei-a para a varanda das traseiras. Sobre ela, dispus os vasos com catos para os quais ainda não tinha encontrado um lugar lógico. Quando o João Paulo chegou, abracei-o e dei-lhe um beijo, com um grande sorriso. "Agora, está tudo certo, amor. Finalmente, encontrei o sítio ideal para os catos. Agradece à mãe, sim?" 

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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