Histórias de Amor Moderno: “Até aos 3 anos, não voltei a ver o meu filho. Sei que as pessoas me julgam. Parece uma decisão sem coração”

“Eu disse-lhe que não estava pronta para ser mãe, respondeu-me que estava ele pronto para ser pai. Dispôs-se a cuidar do bebé, a educá-lo.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Dilema familiar: Mãe questiona exposição do filho a novo relacionamento e receia danos Foto: 'Tudo Sobre a Minha Mãe' / IMDB
12 de julho de 2025 às 07:48 Maria Olívia Sebastião

Com o avançar da refeição, o Sérgio, como é seu hábito nestas situações, foi ficando bêbado. No final, talvez achando que ainda não tinha bebido o suficiente, pediu um “whisky duplo on the rocks” - fê-lo em voz alta, muito mais do que seria necessário, e já com uma maneira arrastada de falar. “On-da-urruóques”, disse ele, dobrando a língua dentro da própria boca e exibindo o pedido para a sala, em geral, e para os dois adolescentes sentados diante de nós: o meu filho David e o Francisco, um amigo do meu filho.

Esse jantar, numa pizzaria de província, aconteceu durante as nossas férias no Alentejo. Dessa vez, consegui convencer o Joaquim, pai do meu filho David, a trazê-lo comigo durante uma semana. O Joaquim acedeu, desde que o David pudesse trazer o seu amigo, para não ficar desconfortável.

PUB

O Sérgio gosta de se exibir diante dos rapazes. O seu lado de macho vem ao de cima, principalmente quando bebe. Todas as noites durante as férias levava os rapazes a jogar bilhar, tentando explicar-lhes como os homens da sua terra jogam bem. Durante os jogos, ia bebendo, ficando mais expansivo, mais inconveniente. Os rapazes parecem-me constrangidos quando o Sérgio entra nesta sua dinâmica de macho bebedor, de exibicionista que fala alto. De repente, a sua pronúncia do Norte torna-se mais sublinhada, mais forte, mais incontornável, ao mesmo tempo que o linguajar ganha características brejeiras, malcriadas, sem maneiras. O discurso enche-se de palavrões, de expressões de mau-gosto, de tiques que, na verdade, detesto.

A parte final daquele jantar, na pizzaria, foi confrangedora. Com os miúdos em silêncio, claramente desconfortáveis com o palavreado do Sérgio e sem saberem o que responder, o discurso foi subindo de tom. Falou da guerra colonial, dos relatos que ouvira do seu pai e dos seus tios, do que eles faziam às moças negras que encontravam nas tabancas, de como bebiam logo que acordavam, do que faziam para se aliviarem das necessidades mais básicas e também das sexuais. Tudo muito explícito, muito gráfico, tudo muito volumoso. Sem resposta, o Sérgio optou por começar a contar aos miúdos como faziam dantes, quando ele tinha a idade deles, nas festas com as raparigas da escola. Dizia-lhes “porque elas gostam é disso”, “elas querem é assim”, “elas adoram é que um gajo assim e assado”, e ria-se alarvemente, fungando e sugando as próprias secreções nasais de um modo de tal maneira sonoro que me fez levantar da mesa. Em redor, as pessoas pareciam incomodadas. Alguns clientes foram saindo.

Não sei se devo continuar a ver o meu filho. Eu quero, quero muito, mas cada vez mais me parece uma má ideia e um desejo egoísta meu. Eu estou bem com o Sérgio. Estamos juntos há já alguns anos. Tivemos um filho, o Vicente, que tem agora um ano e meio, e vem a caminho a Pilar, que há de nascer no fim do verão. Este lado brejeiro e provinciano do Sérgio revela-se a espaços. O álcool puxa por ele. Mas consigo conviver com ele e equilibrar o que há de bom na nossa vida. Só não sei se quero envolver o David nessa vida e correr o risco de o expor a situações que tanto o podem traumatizar e constranger, como, pior ainda, podem deixar-lhe imagens e exemplos que o encaminhem numa direção muito errada.

O David vive com o pai, o Joaquim. O pai do David é um bom homem. Uma pessoa educada, serena, com bons valores. Deixei-o porque, na altura, achei que não queria que a minha vida fosse por ali. Eu tinha 19 anos, ele 28. Envolvemo-nos, apaixonámo-nos, acho eu, e então . Só que o pai do David tinha uma vida alinhada, arrumada, uma profissão,objetivos claros, ambições, as suas regras, as suas rotinas. Eu tinha uma vida inteira pela frente e queria vivê-la.

PUB

Inicialmente, quando soube que estava grávida, . Foi ele que me impediu. O Joaquim quis que o David nascesse. Eu disse-lhe que não estava pronta para ser mãe, respondeu-me que estava ele pronto para ser pai. Dispôs-se a cuidar do bebé, a educá-lo. A criá-lo. Aceitei. Não foi fácil, especialmente depois de o bebé nascer. Antes disso, ter de explicar aos meus pais o que se passava e o que havia decidido - ter a criança, deixá-la ao pai abdicando dela -, talvez tenha sido a tarefa mais difícil da minha vida. Quando o bebé nasceu, senti uma vontade animalesca de mudar tudo, de dizer “não, eu fico com ele, afinal quero criá-lo”. Mas era demasiado tarde e seria muito injusto para o pai do David. Depois dos primeiros tempos, em que o bebé precisava mesmo de mim, deixei que fosse o pai a criá-lo. Não consigo imaginar nada mais excruciante do que abdicar de um filho.

Até aos três anos, não voltei a ver o David. Era-me demasiado doloroso. Então, preferia ir tendo notícias, mas sempre sem o ver. Eu sei que as pessoas me julgam. Sempre julgaram. E eu entendo, a sério que entendo, tudo isto parece uma decisão sem coração, sem instinto de mãe. Se alguém quiser acreditar em mim, no entanto, posso garantir que não é. Eu era uma miúda e tive consciência daquilo que era, só isso. Sabia que, com o meu espírito e o meu temperamento, se insistisse em fingir que podíamos ser uma família, tudo iria correr mal. Provavelmente, o David acabaria por sofrer mais tarde por causa da minha insatisfação. O pai dele definitivamente seria trocado por alguém que eu viesse a conhecer. E eu viveria em constante agitação até que um dia explodisse.

Quando voltei a ver o David, tinha ele três anos. Estava enorme. Eu tinha decidido mudar-me para o Norte, para perto do Porto. Havia lá uma boa oportunidade de trabalho para mim. Sabendo que o David ficaria com o pai em Almada, decidi vê-lo e despedir-me dele, pois não sabia quando voltaria a vê-lo. Curiosamente, desde a minha mudança para o Norte, passei a ver o meu filho com relativa frequência - uma ou duas vezes por ano, pelo menos. Comecei a vê-lo crescer. O pai dele nunca me pôs qualquer obstáculo a que o visse.

Os obstáculos chegaram mais tarde. Só depois de eu começar a namorar com o Sérgio é que os problemas surgiram. Antes do Sérgio, tive outros companheiros. Alguns deles, conheceram o David. Foi tudo sempre muito fluido, muito natural. Mas com o Sérgio foi diferente. O pai do David não gostou dele logo desde início.

PUB

Possivelmente, porque sentiu ou antecipou o perfil brejeiro do meu novo namorado. Além disso, o Sérgio é 7 anos mais novo do que eu - tem agora 26, tinha 23 quando começámos a namorar. Ou seja, era pouco mais do que um miúdo para o Joaquim, que ficou com muitas reservas - “isto é alguma brincadeira?”, perguntou quando os apresentei. Não era.

Eu não discuti muitas vezes com o pai do David e quase todas foram por causa do Sérgio. Ou, melhor, porque ele não queria deixar o David comigo e com o Sérgio - “esse pequeno mancebo sem educação nem noção”, como ele o descreveu. São muito diferentes os pais dos meus filhos. Além dos 16 ou 17 anos de diferença que os separam, há tudo o resto. O pai do David era o meu homem, o meu porto de abrigo, a pessoa que tinha tudo claro e resolvido na vida, que sabia perfeitamente o que queria e como fazer para lá chegar. O Sérgio é o meu puto rebelde, um ser caótico que leva a vida à frente com um espírito que tem tanto de destrutivo como de divertido. É um furacão. Às vezes, temo que toda essa sua energia e todo esse seu caos se tornem demasiados e me deixem assoberbada.

Demorou algum tempo até que o Joaquim autorizasse que o filho passasse férias comigo e com o Sérgio. E, agora que finalmente consentiu, perante o comportamento recorrente do Sérgio, tenho de reconhecer razão ao pai do miúdo. Ele, que gosta da sua disciplina, das maneiras, dos bons modos, se assistisse a metade do que o Sérgio faz à frente do seu filho acabava de imediato com esta brincadeira, não tenho dúvidas. E é por isso que estou, de novo, diante de um dilema: devo deixar de passar estas temporadas com o meu filho? Temo que a minha vontade de estar com ele acabe por ser um impulso egoísta e que isso lhe cause mais dano do que lhe traga coisas boas. O meu amor por ele, por maior que seja, não pode, de modo algum, causar-lhe dano. Já o danifiquei demasiado.

Na noite daquele jantar na pizzaria, o Sérgio continuou no seu modo malcriado e arruaceiro, a falar alto, a dizer alarvidades e palavrões. Só lhe faltou cuspir para o chão. Um homem que estava com a família sentado numa mesa perto da nossa, às tantas, levantou-se, dirigiu-se a ele e disse-lhe “desculpe, importa-se de repetir como é que você fazia às raparigas da sua idade nas tais festas da piscina?” O Sérgio ficou estático. Todos nós permanecemos em silêncio. “Não, a sério, diga lá. É que eu ainda só ouvi 30 ou 40 vezes a sua descrição em voz alta e gostava de ouvir mais uma vez, para conseguir decorar.” Tudo em silêncio. “Aliás”, continuou o homem, “a minha mulher e a minha filha - e certamente também as senhoras que aqui trabalham - estão ansiosas por ouvi-lo uma vez mais dizer como é que fazia e o que é que fazia, com todos os detalhes sórdidos e pormenores escabrosos.”

PUB

O Sérgio não disse nada, ficou a olhar com um sorriso escarninho. Não sei se se apercebeu que estava a instantes de levar uma coça pedagógica. Mas nem assim quebrou o silêncio. O amigo do David sustinha o riso, mas com muito custo; o David estava vermelho, claramente envergonhado. Os olhos estavam vidrados. Não conseguia falar. O homem, antes de regressar, à mesa, virou-se para mim e disse (nunca vou esquecer esta frase, que foi acusação e sentença sumária): “Que a senhora ature esta figura já é extraordinário o suficiente, agora que exponha os seus filhos a este miserável espetáculo já me parece escandaloso.” E eu engoli em seco.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

leia também

Pergunta para os deputados do Chega: Há crianças de primeira e de segunda?

Somos um país de emigrantes, mas há quem conviva mal com os nossos imigrantes. Na serra da Gardunha, se não houvesse mão de obra estrangeira não teria havido apanha da cereja. O Chega, no entanto, insiste num rol de nomes de crianças estrangeiras que “roubam” o lugar às portuguesas. São manobras de recreio.

PUB
PUB