Fomos conhecer o novo Centro de Arte Moderna da Gulbenkian

Acaba de inaugurar o novo CAM, num rasgo de modernidade que atravessa os jardins bucólicos da Fundação Gulbenkian, com mais um lindo espaço verde, uma renovação arquitetónica e a reconfiguração de novos espaços e exposições. Inaugura a 21 de setembro e fica grátis até 7 de outubro.

Foto: DR
13 de setembro de 2024 às 11:34 Patrícia Barnabé

Numa Lisboa cada vez mais cosmopolita, a oferta para mostrar boa arte sobe de tom. Depois da nave espacial que é o MAAT revolucionar a paisagem ribeirinha, e depois da nova cara do museu de arte contemporânea do CCB, é a vez do centro da cidade voltar a palpitar. O novo Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian é um orgulho lisboeta e, como o seu fundador visionária a idealizou, não podia ser mais internacional. Como Lisboa hoje. Não há museu que consiga competir com a poesia da coleção e dos jardins Gulbenkian a salvarem-nos da cacofonia da cidade.

Foto: Fernando Guerra
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Mais jardim a entrar dentro museu 

A nova entrada faz-se em frente ao Provedor da Justiça, na Marquês da Fronteira, por um portão invulgarmente baixo, que contraria o grande muro que ali estava antes, separando a cidade daquele oásis. Árvores e bancos convidam a estar e a entrar neste jardim que se estende agora até à Avenida de Berna. "Do grande muro acastelado, construído durante o tempo do Parque de Santa Gertrudes, prevalecem as pedras, de diferentes tipos de calcário, que foram cortadas e podemos vê-las neste muro banco, que traça um arco unificador das fachadas da Duque d'Ávila e da Marquês de Fronteira", explica a arquiteta paisagista Paula Corte-Real, antes de descermos suavemente pelo jardim até ao novo CAM.

Foto: DR

O projeto paisagístico é de Vladimir Djurovic, oito mil metros quadrados verdes cheios de espaços para nos estendermos ao sol, recantos para contar segredos, lagos com patos e tartarugas. Depois da intervenção do arquiteto Ribeiro Telles e Viana Barreto, no final dos anos 60, que criou os bancos e as papeleiras, e as linhas curvas demarcadas, esta é um refrescamento feliz onde permanecem as velhas árvores, as maiores, tílias, ciprestes, pinheiros e pinheiros das Canárias, um plátano enorme, que foram podadas, e plantar espécies autóctones portuguesas como os sobreiros. Nelas vivem toutinegras, chapins, papa-moscas, abelhas e borboletas. Ao longo dos caminhos existem leitos de drenagem, água que desagua depois no grande lago da Gulbenkian, de onde sai a rega do jardim. O antigo poço foi transformado num depósito de água e tem uma antiga nora que remonta ao século XVIII, é o mais antigo elemento arquitetónico deste lugar.

Foto: @Vladimir Djurovic

Arquitetura e luz de inspiração japonesa 

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O novo CAM é belíssimo, a sua enorme pala de Kengo Kuma, uma espécie de grande alpendre, recria o edifício original do 1983 traz frescura (lembram-se quando se estendiam grandes panos brancos nestes jardins para sobreviver à canícula do verão?). O seu desenho limpo em materiais naturais parece apontar o céu e um novo lago nascido na antiga clareira projeta cenicamente o edifício. É feito a partir do conceito de engawa, da arquitetura japonesa, que liga "o interior completamente íntimo ao exterior aberto", e vice-versa, refere o diretor do museu Benjamin Weil enquanto caminha. "É um espaço contaminado por essas duas realidades e é muito importante para nós ao nivel do simbolismo", pois quer que este seja um lugar de contemporaneidade e acolhimento.

Foto: Fernando Guerra

O arquiteto Lourenço Rebelo de Andrade, que trabalhou na reconstrução do espaço, com o arquiteto Jorge Lopes da Gulbenkian, recorda que o CAM vivia de costas voltadas para o seu jardim, e por isso rasgou janelas para a luz entrar livremente: "Para uma maior transparência e ligação entre os jardins. Era um desejo antigo dos antigos projetistas da Gulbenkian". Alguns escritórios foram recolocados junto ao auditório, para se ganhar espaço. "O objetivo era acrescentar mais 1000 metros quadrados de área expositiva ao edifício e requalificar todos os espaços". Até no piso menos 1 foram feitas demolições para uma amplitude máxima em lugares de permanência do público, e foi instalado um novo centro educativo com um poço de luz que ilumina todo o piso, dantes enterrado. Também foi feito um grande reforço sísmico em ferro e "era importante a presença dos jardins em todos os espaços, à imagem da sede, a Natureza é a grande protagonista deste projeto." Destaque para os 3274 azulejos que revestem a pala, em "três tons de branco, para uma maior plasticidade", produzidos em Portugal como todos os materiais, com prioridade dada à sustentabilidade.

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Exposições imperdíveis 

Quando entramos na nave principal, cheia de luz, somos recebidos por um "conjunto denso e ritmado de esculturas suspensas sobre uma peça escultórica de chão em cortiça", de Leonor Antunes, explica a curadora Rita Fabiana. É a estreia da artista na Gulbenkian, apesar de ter representado Portugal na Bienal de Veneza, em 2019. Esta exposição intitulada Da desigualdade constante dos dias de Leonor, a partir do título de um desenho de Ana Hatherly, que cita Camões, e é de 1972, o ano em que Leonor Antunes nasceu. É uma intervenção no espaço, em diálogo com a arquitetura, mas também com o acervo, já que a artista escolheu uma seleção de mulheres para uma sala contígua onde está uma papeleira de Maria Keil ou as esculturas têxteis da Guida Fonseca, uma obra inédita de Helena Almeida, Isabel Carvalho e J.Mombaça, Charlotte Perriand e Lina Bo Bardi. "A ideia é juntar artistas modernistas, numa relação crítica com a historiografia de arte e com a ação técnica dos museus, onde se assiste à subalternização e invisibilidade das artistas mulheres." Uma parede principal foi mantida despida, crua e imperfeita depois das obras, "com anotações dos trabalhadores da obra".

Foto: @Pedro Pina

O artista Fernando Lemos está no espaço Engawa, um andar abaixo, com O Calígrafo Ocidental, uma exposição belíssima, para ver até 20 de janeiro. O artista pediu uma bolsa à Gulbenkian para ir ao Japão estudar caligrafia, "o encontro da escrita e do desenho", explica uma das curadoras, Leonor Nazaré, e aqui estão reunidas cerca de 200 obras, entre 50 fotografias inéditas, uma série feita no Japão, 70 desenhos, a maior parte desconhecidos em Portugal, e 32 estampas japonesas da coleção do Museu Gulbenkian. Numa leve estrutura de inspiração nipónica, estão espalhados por seis momentos batizados por frases de Lemos, algumas delas dos seus poemas: "'Quanto mais desejo mais invento o que vejo', para referir ou como projetamos o nosso desejo nas coisas abstrata ou 'nem sempre nos conhecemos para sempre', sobre as pessoas que passaram pela sua vida e não ficaram, como acontece na vida de todos nós." Esta exposição resulta num livro de artista e de um dicionário da travessura, que a curadora organizou com frases espirituosas do artista, numa parceria com a Tinta da China.

Foto: @Pedro Pina

A galeria principal da coleção e as novas salas somam 900 metros quadrados de novo espaço expositivo, e incluem uma sala de som e outra de desenho. Nesta, no andar de baixo, estão quatro vídeos encomendados a Gabriel Abrantes onde os protagonistas são fantasmas que vivem num certo limbo "uma das ameaças que representa o mundo virtual e digital e a sua fragilidade ética, que o preocupa", explica Leonor Nazaré. "Nomeadamente, a ameaça ao mundo vivo, é claro o facto de os níveis de consciência não acompanharem os desenvolvimentos tecnológicos. A ideia de ameaça que paira sobre a humanidade é muito o seu imaginário, ao mesmo tempo que convoca sentimentos universais com o amor ou a tristeza ou a agressão." 

Estas obras pertencem à exposição Linha de Maré, que inaugura a nova Galeria da Colecção que, como o nome indica, "dá novas perspetivas sobre a coleção" do CAM, explica o seu diretor a propósito e inclui peças do século XIX, XX e XXI. Parte de "uma reflexão sobre quais são as revoluções de hoje". Ana Vasconcelos, uma das curadoras, diz que estas cerca de 80 obras pretendem "refletir sobre a relação entre arte e natureza, e todos os organismos vivos que integram o mundo e a biosfera, o que nos inclui a nós" nomeadamente "a denúncia das ameaças ao planeta." E no ano em que se celebram os 50 anos do 25 abril, estas são algumas obras "que evocam, de alguma forma, a revolução", como o vídeo de Filipa César sobre a passagem a salto na fronteira do rio Minho, ou Mónica Miranda que reflete sobre o pós-colonialismo. "Partimos dessa revolução específica para chegarmos a atuações que são urgentes em relação a nós e ao planeta e a humanidades ecológicas que vêm substituir, cada vez mais, as ciências sociais e humanas". Também vão poder ser visitados os trabalhos de artistas japoneses, que vão continuar a temporada dedicada à cultura nipónica, vigente até ao fim deste ano. 

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Foto: DR

O CAM lança ainda um programa de reservas visitáveis, onde cerca de 220 obras expostas, muito modernistas, com destaque para Amadeo de Souza-Cardoso, Almada Negreiro e Sara Afonso, entre outros, podem ser vistos quando "se quiser", isto é, podem ser puxados das grades onde estão em reserva, e ser vistas a pedido do público, à segunda-feira. "Os visitantes poderem ter acesso às entranhas e à grande exigente rotina do museu que tem 12 mil peças!", explica a curadora. 

E o diretor do CAM, Benjamin Weil, concebeu e dirigiu uma Hbox, num programa de curadoria de itinerância de exposições de videoarte para a Fondation d’entreprise Hermès (2005-2011), que agora trouxe para aqui, com quase duas dezenas de videos disponíveis, a ser selecionados pelo visitante.

Foto: @Pedro Pina

Artes cruzadas 

O novo centro de arte moderno quer ser um palco de encontro das artes, de todas, por isso terá um programa de live arts, que começa este fim de semana, e terá uma linha de programação regular que cruzar artes ao mesmo tempo que amplia os temas em exposição e quer ser experimental, prospetiva e colaborativa. Ao mesmo tempo que qualquer espaço entre o edifício e o jardim será um bom lugar para lançar conversas, dança, artes performativas e instalações, concertos, projeção de filmes ou poesia. 

A provar estar interdisciplinaridade estará a abertura oficial do CAM, dias 21 e 22 de setembro, um fim de semana em festa com concertos e djs dentro e fora do museu, numa programação pensada pela Filho Único, que não tem erro, onde estão Nala Sinephro, Nídia, Tim Reaper, Éliane Radigue ou Jotta Mombaça. Também haverá uma performance de música e poesia, a propósito da temporada japonesa, com a dupla Ryoko Sekiguchi & Samon Takashi.

Foto: Fernando Guerra

A rematar, inaugura ainda o restaurante Mesa do CAM, nome inspirado na grande mesa central desenhada por Kenjo Kuma, onde o chef André Magalhães lança a sua magia em dois menus à base de produtos locais, um rápido e um a la carte, e a loja do museu onde se encontram livros de arte, uma pequena seleção de merchandising lema será "zero junk", e peças lindas de artesãos locais.

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