Em “Manas”, a realizadora Marianna Brennand conta a história do trauma geracional de meninas e mulheres da Ilha do Marajó

A realizadora conversou com a Máxima sobre seu filme que acabou de estrear em Portugal.

"Manas" retrata o trauma geracional de meninas e mulheres na Ilha do Marajó Foto: "Manas"
25 de agosto de 2025 às 11:32 Clara Drummond

“Manas”, de Marianna Brennand, é um filme “coming of age” onde todos os rituais de passagem são marcados pela violência sexual. Marcielle, de 13 anos, tem uma infância pobre, porém alegre, até o dia que vai caçar com o pai. Esta será a primeira de uma série de violências que, pouco a pouco, vão destruindo a alma da menina. Para nós, é aterrorizante acompanhar esse processo, que é extremamente nítido graças à atuação magistral de Jamili Correa, no seu primeiro papel. Mas, na Ilha de Marajó, onde o filme se passa, não há nada de novo debaixo do sol. Ali, não é novidade nenhuma uma menina ser violentada pelo pai, ou ser explorada sexualmente nas barcaças (o único meio de transporte da ilha para a cidade grande no continente). O mesmíssimo trauma é compartilhado por todas as meninas e mulheres na família, na escola, na igreja, sempre em silêncio.

O filme é didático (no melhor sentido da palavra) em mostrar como a estrutura favorece os agressores. Na escola, as páginas que ensinam educação sexual foram retiradas dos livros, de modo que as meninas se mantenham ignorantes a esse respeito. Na apresentação musical, vemos que uma das alunas está grávida, já de alguns meses, mas percebemos que isso é uma situação quase corriqueira (mais tarde, Marcielle e uma amiga debatem se a criança engravidou nas barcas ou do próprio pai). A pastora da igreja evangélica é veemente no discurso: a família deve ser mantida apesar das dificuldades. E, mais devastador ainda, nem as outras mulheres da família podem ajudar as crianças, já que além da impotência, elas próprias foram e ainda são vítimas do mesmo ciclo de violência, e portanto tratam a situação com triste naturalidade.

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Marianna Brennand fala sobre "Manas", filme sobre traumas geracionais na Ilha do Marajó Foto: DR

O Majaró é o maior arquipélago fluvial do mundo, e fica no Pará, norte do Brasil, bem na Floresta Amazónica. A região em que se passa o filme é tão isolada que, quando ocorre uma denúncia, a polícia leva mais de dez horas de barco até a casa da vitima. Até mesmo a energia elétrica é escassa. Mas, se o Estado não chega, a Arte chega. A primeira cena já mostra que o filme não é apenas uma forte crítica social. É, também, visualmente deslumbrante. O enquadramento mostra a casa, a janela, e Marcielle. É lindo, mas também sufocante. O ponto de vista é 100% Marcielle: estamos tão perto, que entendemos seus silêncios, seus gestos, sua alma.

Marianna trabalhava até então com documentários. Foi na época do lançamento do seu filme sobre seu tio-avó, o artista plástico Francisco Brennand, que um almoço com a cantora Fafá de Belém mudou para sempre a direção da sua carreira. “As pessoas perguntam-me: este é o seu primeiro filme de ficção, como escolheu um tema tão difícil, tão diferente da sua realidade? Mas, na verdade, foi o Manas que me escolheu a mim, eu sabia que precisava de contar esta história”. A Máxima conversou com a realizadora para saber mais do projecto.

"Manas" retrata o trauma de mulheres na Ilha do Marajó, segundo Marianna Brennand Foto: DR

Como surgiu a ideia para o Manas?

Há dez anos, fui almoçar com a Fafá de Belém, que é do Pará, e ela contou-me sobre a exploração sexual de crianças, adolescentes e mulheres na Ilha do Marajó. Eu fiquei profundamente impactada. O meu primeiro ímpeto foi: preciso de fazer um documentário de denúncia. Mas, logo no início da pesquisa, eu e a (produtora) Carolina Benevides entendemos que, não raras as vezes, a exploração sexual vinha também acompanhada do abuso sexual intrafamilar. É mais difícil entender o que está acontecendo quando o abuso vem do marido, do pai, do tio. E, quando entende, sente culpa e vergonha. A partir daí entendemos que seria inviável contar essa história de maneira documental. Para isso, precisaríamos expor aquelas mulheres e crianças, e fazê-las reviver aqueles traumas à frente das câmaras, o que seria mais uma violência. Então inscrevemos o projeto num edital de desenvolvimento de argumento, e ganhámos o edital. Foi aí que viajámos pela primeira vez para o Marajó.

Como foi o processo de pesquisa?

No Marajó, conversámos com algumas mães que já haviam vivido esse processo há algum tempo. Mas a maioria dos relatos vieram da rede de apoio, como conselheiros tutelares, assistentes sociais, delegados, psicólogos. Nós também consultámos juízes e procuradores para entender como funciona esta engrenagem tão machista do sistema judiciário que permite que estes abusadores fiquem em liberdade. E, sobretudo, a irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, que luta há mais de 40 anos contra a violência sexual no Marajó.

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No filme, mostramos uma batida policial na barca que foi inspirada numa acção feita pelo delegado Rodrigo Amorim, que foi a inspiração para a personagem Aretha, interpretada pela Dira Paes. A irmã Marie Henriqueta e o delegado Rodrigo participaram de todas as etapas, assistiram ao filme antes mesmo da estreia em Veneza.

"Manas" explora trauma geracional de mulheres na Ilha do Marajó, no Brasil Foto: DR

E é nas barcas onde ocorre a exploração sexual infantil?

O Rio Tajapuru tem um grande tráfego de barcas comerciais que carregam mercadorias da Zona Franca de Manaus até Belém. Essas barcas passam em frente das comunidades ribeirinhas que vivem do que pescam e do que colectam na floresta. São comunidades bastante isoladas porque a locomoção é muito limitada: há água por todos os lados, e são grandes distâncias, então remar não é uma possibilidade. Então o gasóleo e a gasolina tornam-se moedas de troca, daí a exploração sexual de crianças nas barcas, muitas vezes incentivada pela própria família.

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Não se trata de prostituição, porque a prostituição é uma profissão, uma escolha feita por maiores de idade. Neste caso, são crianças que não têm discernimento para entender o que está a acontecer. O abuso intrafamiliar está intrinsecamente ligado à exploração sexual. O abuso começa em casa, e, a partir daí, o próximo passo é a exploração sexual.

Marianna Brennand explora o trauma geracional de mulheres na Ilha do Marajó no filme "Manas" Foto: DR

Como tem sido a resposta do público?

Desde a estreia no Festival de Veneza, percebemos que a ligação do público com o filme se dá pela potência cinematográfica, mas também pela universalidade das questões, porque o abuso por pessoas próximas existe independentemente da classe social.

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O filme já está em cartaz no Marajó?

Nós fomos para a estreia em Belém, que teve uma receção muito positiva, todos se sentiram muito identificados e retratados de uma maneira muito verdadeira, respeitosa e ética. A primeira sessão no Marajó foi no dia 15 de agosto, e temos mais seis sessões programadas para este ano, e outras em 2026. Desde a altura em que queria fazer um documentário de denúncia que o meu maior desejo era a exibição no Marajó. A ideia é que, junto com a exibição do filme, também haja uma rede de apoio para eventuais vítimas caso exista a necessidade de denúncia. São sessões de impacto com uma equipa técnica de assistente social, psicólogo, delegado e médico. A vítima precisa de se sentir acolhida. E nós vamos também participar em algumas dessas sessões.

A delegada investiga o trauma geracional de mulheres na Ilha do Marajó no filme "Manas". Foto: DR

Hoje em dia, há uma crítica relativamente a filmes que usam a violência sexual contra a mulher como um artifício da narrativa.

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Mesmo com boas intenções, se é um realizador homem, o ponto de vista masculino pode sensualizar a mulher, mostrar a menina a sair do rio, um bocado do peito a aparecer... E, daí, podemos partir para aquele discurso: ela estava a oferecer-se, olha a roupa que ela vestia, de modo que a culpa seja sempre da mulher, ou da criança, e nunca do abusador. Então, para mim, era muito importante não estetizar a violência, não trazer mais violência, respeitar o corpo feminino. É uma criança, portanto não dá para justificar o desejo do homem, é um acto de violência. E, mesmo quando o abuso é feito pelo próprio pai, há justificativas, dizem que um pai que faz esse tipo de coisa é um doente. Não. Esse pai é uma pessoa completamente normal. No filme, o pai não tem nenhuma característica que possa justificar, ele não tem problemas com álcool, ele não bebe em demasia, ele não é doente. A verdadeira ameaça pode ser uma pessoa acima de qualquer suspeita.

E como foi com a atriz?

Era necessária uma preocupação ética e humana em toda a feitura do filme, desde o desenvolvimento do argumento, como a abordagem das entrevistas que foram a base do texto, e o cuidado com a equipa, principalmente o elenco infantil. O set precisava de ser um ambiente de trabalho saudável. A saúde emocional das crianças é importante: como fazer com que essas meninas interpretassem essas personagens, que estão a vivenciar uma violência terrível, sem que as actrizes entrassem em contacto com essa violência. Nós conversámos muito, tanto com os pais das crianças quanto com as crianças. As meninas sabiam da temática do filme, mas não leram o guião completo. No filme, não há nada explícito. Ainda assim, a condução das cenas de violência foi feita de maneira simbólica e delicada, com um preparador de elenco.

Filme "Manas" retrata o trauma de mulheres na Ilha do Marajó Foto: DR

E, por fim, quais filmes que foram as principais inspirações para o “Manas”?

“Iracema, uma transa amazônica” (1974), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna; “Cristiane F.” (1981), de Uli Edel;“Quem matou Pixote” (1996), de José Joffily; “Central do Brasil” (1998), de Walter Salles; “Verão de 1993”, (2017), de Carla Simon; “Eu, Daniel Blake” (2016), do Ken Loach.

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