O nosso website armazena cookies no seu equipamento que são utilizados para assegurar funcionalidades que lhe permitem uma melhor experiência de navegação e utilização. Ao prosseguir com a navegação está a consentir a sua utilização. Para saber mais sobre cookies ou para os desativar consulte a Politica de Cookies Medialivre
Atual

Margarida Ferra: “Ganharíamos muito se nos prendessemos menos aos objetos e mais às memórias que eles deixam”

"Saber Perder" é o terceiro livro da autora. Um texto à base de fragmentos, minuciosamente escolhidos e muito bem interligados, em que o leitor sente que está a entrar no palácio da memória de Margarida Ferra. A Máxima conversou com a escritora sobre o seu percurso.

Margarida Ferra
Margarida Ferra Foto: Ana Brígida
14 de agosto de 2025 às 13:05 Madalena Haderer

O encontro com a escritora estava marcado para um dia de quase primavera, mas com alerta de chuva e ventos fortes que impediram a jornalista de chegar ao local marcado. O Zoom foi, rapidamente, incluído no plano. Ainda que com relutância. A escritora vive no bairro onde a jornalista nasceu e cresceu. Uma familiaridade que apetecia explorar em pessoa. Em compensação, através do Zoom, descobriu-se outro interesse comum: gatos – que, de um lado e de outro, apareciam e desapareciam do ecrã. Além disso, fizeram o mesmo curso, na mesma faculdade – Ciências da Comunicação, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. É importante que entrevistador e entrevistado tenham coisas em comum? Certamente que não, mas mal também não faz. De resto, há sempre uma certa curiosidade (talvez mórbida) em saber o que outras pessoas fizeram da vida usando as mesmas ferramentas que nós. 

'Saber Perder'
"Saber Perder" Foto: DR

E o que Margarida Ferra fez foi criar um percurso muito rico na intercepção entre literatura e museologia, entre texto e ser humano, entre escrita e memória. Além da licenciatura em Ciências da Comunicação, frequentou um mestrado em Museologia. Trabalhou numa pizzaria, numa galeria de arte contemporânea, no Palácio da Ajuda, em livrarias e editoras, e foi jornalista no Jornal de Letras. Foi responsável pela comunicação da Casa Fernando Pessoa e do Museu da Marioneta, e trabalha, agora, na Quinta Alegre, que faz parte da rede Um Teatro em Cada Bairro.

A autora, que já escreveu dois livros de poesia – Curso Intensivo de Jardinagem, em 2010, e Sorte de Principiante, em 2013 – antes deste seu mais recente Saber Perder  (uma prosa de não-ficção), tem um talento especial para dar vida a memórias, entrecortando-as com episódios quotidianos, que talvez se viessem a tornar memórias ou talvez se perdessem para sempre, se a escritora não os tivesse capturado. 

Há muito de museu na sua escrita. Nota-se um cuidado minucioso para escolher o local perfeito para cada fragmento de texto. O sítio que o faça brilhar, da mesma forma que uma obra de arte ganha vida com melhor luz ou localização. A escrita de Margarida – pelo menos, neste livro – é memorialista, fragmentária, ensaística e até um pouco diarística, apesar de não seguir uma cronologia. E, no entanto, os fragmentos estão todos interligados, como na vida. E contam uma história maior, como num museu. Saber Perder é um pequeno livro que surpreende e encanta.

Margarida Ferra reflete sobre memórias, livros e a arte de saber perder.
Margarida Ferra reflete sobre memórias, livros e a arte de saber perder. Foto: Ana Brígida

Margarida, tens um percurso profissional bastante variado. Era o que querias fazer? Foste empurrada pela vida? Como é que as coisas se processaram? 

Bom, eu queria mesmo estudar Comunicação, não fui lá parar por engano. [risos] Embora não quisesse, propriamente, ser jornalista. Apesar de ter chegado a trabalhar no JL [Jornal de Letras], como estagiária, e ainda lá fiquei dois anos. Gostei muito dessa experiência, adoro o JL, mas o caminho não era por ali. Na faculdade não fiz cadeiras de jornalismo, fiz Comunicação e Cultura, que era a área para quem não queria fazer nada mais específico. Mas isto para dizer que as questões sobre quem enuncia, sobre a recepção, sobre o sentido, os temas daquelas cadeiras – já que estamos entre pares, posso referir – da Maria Augusta Babo, do José Augusto Mourão [Teoria do Texto e Semântica, respectivamente, cadeiras que, por norma, aterrorizavam os estudantes], eram coisas um bocadinho estranhas, naquela altura, mas a verdade é que continuam a ressoar na minha cabeça. 

E pronto, para não estar aqui a contar a história toda da minha vida, sempre tive uma relação com os livros e com a literatura, sempre achei que a dada altura havia de chegar um momento em que iria escrever, e esse percurso relacionado com os livros levou-me a trabalhar em livrarias, e depois também, num período em que estive muito tempo como freelancer em casa – tinha filhos pequenos e dava-me muito jeito conciliar o trabalho com uma maternidade mais presente – trabalhei sobretudo com editoras, fazendo revisões, fazendo de leituras originais, também transcrevia muitas cassetes – para jornalistas e estudos de mercado –, era uma coisa que também me dava algum dinheiro. 

Só comecei mesmo a focar-me na comunicação, em 2009, quando fui trabalhar para a editora Quetzal, e depois coordenei a comunicação do Grupo Bertrand Círculo. Ou seja, já tinha 30 e tal anos quando comecei a usar a licenciatura para trabalhar.

Margarida Ferra explora a memória e a escrita em 'Saber Perder'.
Margarida Ferra explora a memória e a escrita em "Saber Perder". Foto: Ana Brígida

E quando começa a tua relação com os museus?

Depois da editora, passei para o setor público, deixei de trabalhar para clientes, comecei a trabalhar com pessoas, e fui para a Casa Fernando Pessoa, onde estive cinco anos e meio. A casa estava num processo de se transformar num museu – quando abriu, nos anos 90, não era um museu de literatura, era um centro cultural. Com a utilização que o público foi fazendo da casa, as pessoas começaram a querer ver mais sobre o Pessoa, e foi preciso criar uma exposição mais abrangente.

Gostei muito de participar desse processo de transformação, que coincidiu com a altura em que fui estudar museologia, porque me interessei muito pela comunicação em museus. Lembro-me de ter participado numa conferência em que ouvi uma pessoa do Rijksmuseum [o museu nacional dos Países Baixos] a falar sobre o processo de reescrita das legendas e sobre um processo de – na altura eles não usavam assim o termo, ou pelo menos não dava tanto debate como agora – descolonização do discurso das legendas, e eu achei que, realmente, aquilo que nós escrevemos por baixo de uma peça é brutal, e pensei que tinha muito a ver também com o que tinha estudado na licenciatura. E foi isso que me levou a fazer o mestrado, que não acabei, só fiz a parte lectiva, não fiz o projeto ou a dissertação.

E como é que esse interesse e esse conhecimento sobre museologia influenciou a tua escrita? 

Acho que influenciou muito, mas mais até as Ciências da Comunicação. Sabes como aquilo era, não é? [A jornalista assente com veemência.] A gente estava ali a estudar e só pensava “mas para que é que isto serve?” E eu, na verdade, acho que serve para muito. Acho que quando falamos, quando nos pomos no patamar de enunciar, de fazer um enunciado e quando fazemos isso em comunicação, por exemplo, no trabalho, isso tem um peso, não é? O que é que fazemos quando temos um microfone à frente, no sentido lato? E mesmo as questões dos sentidos. Quantos sentidos pode conter uma frase? Quem é que constrói o sentido? Não é também quem lê? Todas essas questões da teoria da recepção. Mais do que a museologia, a comunicação e as teorias do texto e do sujeito influenciaram muito esta minha escrita.

A museologia influenciou no sentido da ideia de recombinar peças. Os museus têm várias funções: guardar, recolher, conservar, proteger, mostrar e comunicar. E a função de comunicar cumpre-se numa exposição. Há um lado que eu acho super interessante que é o facto de os museus não mostrarem tudo, mostram uma percentagem baixa daquilo que é o seu acervo. E depois, a forma como olhamos para um quadro, por exemplo, é completamente diferente em função do sítio onde está exposto e das peças que tem ao lado. E acho que esse lado da museologia, das exposições, da forma como nos expomos, o discurso também é uma exposição, não é? Isso também influenciou. 

Margarida Ferra aborda a importância da memória em vez dos objetos.
Margarida Ferra aborda a importância da memória em vez dos objetos. Foto: Ana Brígida

Focando, agora, um pouco no teu livro mais recente. Eu diria que Saber Perder não é bem um diário, não é um livro de memórias, não é uma biografia, não é um livro de crónicas, mas creio que tem um bocadinho de todos estes registos. Achas que é uma reflexão correta?

Sim, subscrevo à exceção do diário, porque os diários são escritos no imediato e nada aí escrito é muito imediato. Mas há um tom de diário, no sentido de registo do quotidiano, que é também o tom da crónica. Sim, fui atrás de uma certa respiração da crónica, gosto muito da forma quando uma pessoa começa a ler uma crónica de um bom cronista e não sabe onde vai parar. O texto começa com um detalhe que o cronista observou e não se sabe onde é que vai dar, e eu gosto muito disso e tentei de alguma forma reproduzir essa mecânica no texto. E, sim, é um livro que trabalha a memória, mas não no sentido exaustivo das memórias de uma pessoa. No fundo, é uma escrita que passa por uma memória, mas sem ser aquela coisa, aqueles pesados volumes das memórias de não sei quem, que faz parecer que uma pessoa tem que ter já uma certa idade para ter memória. 

O registo fragmentário deste livro fez-me lembrar o caderno de apontamentos de um escritor. Um escritor que está a tentar escrever um romance e ao mesmo tempo que está a evitar escrever um romance. É uma leitura justa? 

Sim, acho que sim. Sendo que eu não estava a tentar escrever um romance, mas sim, há uma reflexão sobre a escrita e sobre o que é que eu estou a fazer, porque é que estou a fazer isto. Na verdade, já estou super saturada desse discurso porque já não me posso ouvir falar sobre isso. Adorava agora na próxima coisa que fizer libertar-me dessa reflexão sobre a escrita e talvez voltar a ela daqui a uns anos para tentar perceber se ainda é a mesma. Mas, sim, no fundo, há um lado de mostrar o processo.

Qualquer escritor, ou escritor wannabe, se identifica com esse exercício de estar sempre a tirar notas. Num caderno, no telemóvel, num documento Word. E isso acaba por ser também, muitas vezes, uma forma de procrastinação. Traz alívio porque a pessoa está a escrever, mas também não está propriamente a escrever.

Sim, e há também uma outra ansiedade nesse mecanismo que é a ansiedade de não perder pitada do presente que pode ser potencialmente matéria de escrita, não é? Acho que tudo começa com uma coisa em que se repara e nesse aspecto acho que essas notas são uma potência para o que pode depois vir a acontecer, não é? Há um treino do olhar. Tudo começa nesse primeiro olhar, acho eu. 

Margarida Ferra explora memórias e a relação com objetos em novo livro
Margarida Ferra explora memórias e a relação com objetos em novo livro Foto: Ana Brígida

Escreveste dois livros de poesia antes deste livro de prosa. Como é que foi saltar de um registo para o outro? Por que é que decidiste dar esse salto?

Eu não estava a contar publicar poesia, na verdade. Sempre achei, desde miúda, que havia de escrever, mas teria sido uma grande surpresa para o meu eu com 20 anos saber que ia começar pela poesia. Mas fiz aquele primeiro livro [Curso Intensivo de Jardinagem] e gostei muito de o fazer. Foi um livro escrito quando os meus filhos, que eram pequenos – agora já têm 20 e 18 –, foram para o infantário e eu trabalhava como freelancer e tinha a casa só para mim durante o dia. Fui dando corpo a essas anotações e a forma que escolhi para elas foram poemas. Os poemas são unidades que contêm muitos sentidos dentro delas, até se calhar mais do que a prosa. Acho que, idealmente, um poema é uma coisa que abre amplamente para que quem lê possa criar muitos sentidos. E um bom livro de poesia não é uma coleção de poemas, um bom livro de poesia tem de superar a soma das partes.

A recepção também estimula a criação e a recepção do Curso Intensivo de Jardinagem estimulou bastante que eu escrevesse depois a Sorte de Principiante, já noutra fase da vida – tive outro filho, fui para a faculdade. Depois, estive muito tempo sem escrever ou a escrever coisas que não me pareceram relevantes para publicar e desinteressei-me de escrever poesia. Eu publicava numa editora muito particular [a editora &etc], com um âmbito muito reduzido, o meu editor morreu e a editora morreu com ele. Ele era um editor de lápis na mão, debatíamos muito o texto e esse processo de edição era muito bom. 

Depois, fui lendo este tipo de livros mais autobiográficos, uma escrita mais na primeira pessoa. E gostei tanto de ler isso. Pensei que era uma coisa que eu também queria experimentar fazer. Não sabia se conseguia fazer isso com uma voz que fosse minha e que não fosse uma mera repetição de um formato. E então lancei-me para isso, porque, realmente, essa ideia de um grande romance se calhar nunca vai acontecer. Neste momento não tenho interesse nenhum em escrever sobre coisas que não existem. 

Margarida Ferra explora memórias e museologia no seu livro 'Saber Perder'.
Margarida Ferra explora memórias e museologia no seu livro "Saber Perder". Foto: Ana Brígida

E já sabes que livro vais escrever a seguir? Tens alguma ideia? Alguma vontade?

Tenho vontade de voltar a escrever, sim. Acabei este livro há não muito tempo e, como já disse, a recepção motiva muito a criação. Mas não sei ainda o que é que vou escrever, imagino que seja nesta linha da não-ficção, uma narrativa não-ficcional. Pode ser menos centrada em mim, espero que seja, na verdade, menos centrada em mim. Também já há muita gente a fazer isso e bem. Também tenho vontade de deixar esses fragmentos e de escrever um texto mais corrido.

Dirias que este teu livro se encaixa na autoficção? É aí que te estás a situar? 

Não gosto muito do termo autoficção – para mim. Já li coisas que acho que são autoficção, em que a proposta de quem escreve – mas pode ser a leitura que eu tenho da palavra – é fazer uma ficção que corre muito em paralelo com a sua vida e, nesse aspecto, há uma grande presença de quem está a escrever, há uma grande projeção de quem está a escrever naquilo que é uma ficção, uma coisa inventada. Até gosto de ler esses livros, mas [em Saber Perder] não tentei ficcionar. Embora, às vezes, tenha usado alguns recursos da ficção narrativa, mas o meu compromisso é tentar dizer as coisas como elas são ou como me pareceram a mim, mantendo o mais próximo possível de relação com a realidade. [Escrever sobre situações] que estão a passar pelo filtro da memória, que estão a passar pelo filtro da minha leitura pessoal, assumir que esses filtros existem, mas que há um compromisso com a realidade.

Há uma coisa curiosa que eu acho que detectei no teu livro: falas de anéis, de novelos, de bolas de futebol, de chávenas de café, que são tudo coisas redondas e que vão aparecendo e reaparecendo ao longo do texto, como se estivéssemos num museu – um museu dedicado à coisa redonda, ou à vida através da coisa redonda. Foi consciente? 

Não, não. Olha, é muito engraçado que estares a dizer isso hoje, porque ontem fiz um workshop no meu local de trabalho em que nos era pedido que fossemos buscar uma coisa à mala, e tínhamos de a pôr em cima da mesa e de organizar os objetos, e o meu grupo só usou coisas redondas. Portanto, tem graça estares a dizer isso. Mas, não, olha, não tinha pensado nisso, mas é uma ideia bonita, sim.

Margarida Ferra reflete sobre memórias e a arte de saber perder na sua escrita memorialista.
Margarida Ferra reflete sobre memórias e a arte de saber perder na sua escrita memorialista. Foto: Ana Brígida

O teu livro começa com memórias de jogos de futebol na rua, onde tu nunca tinhas noção de ouvir gritos de mulheres, e termina contando a história de mulheres brasileiras que foram proibidas de jogar futebol, e portanto tu arrumas a narrativa desta forma, outra vez, muito circular, muito redonda, muito bonita. E isto foi propositado? 

O último texto que eu escrevi foi já com a intenção de atar pontas soltas e de fechar um círculo, sim. Eu só não me lembro como é que surgiu a ideia das mulheres no futebol no Brasil. Mas bom, cruzei-me com essa informação algures e achei muito interessante, comecei a investigar um bocadinho mais e convoquei isso para o texto. 

Isto já para terminarmos, queria perguntar-te se no fim – no fim da vida, no fim de contas, no fim seja do que for –, achas que alguma vez aprendemos a saber perder? 

Eu acho que sim. Quer dizer, objetos acho que sim. Acho que claramente uma pessoa como eu, que perde tantas coisas, tem de aprender a saber e a deixá-las ir. Há ali um momento de grande frustração, mas depois acho que sim. Acho que todos nós, seres humanos e natureza, até o planeta, ganharíamos todos muito se as pessoas não fossem tão presas a objetos e se fixassem mais nas memórias que eles deixam. 

E mesmo nos jogos [a ideia de perder um jogo], acho que há um prazer em jogar tão grande, não é? E no caso, um prazer em escrever também. Quer dizer, claro que há momentos dolorosos, mas num jogo também há momentos dolorosos. Seja físico ou não. Acho que se nós só ganharmos não vamos jogar nada, não é? Porque para ganhar de vez em quando é preciso perder. Não se consegue estar sempre a ganhar. E acho que isso tem a ver com o viver. Congelar um bocadinho de tempo para viver. Deixar o tempo passar.

Leia também
As Mais Lidas