Há situações em que não basta sermos moralmente corretos e termos a consciência tranquila. Não há superioridade moral em ficar quieto e calado quando percebemos uma injustiça diante de nós e não agimos. É preciso falar. É preciso sinalizar. Se for caso disso, se a situação for grave, é preciso denunciar. “Nenhum homem é uma ilha”, escreveu John Donne, mas 400 anos depois do surgimento das suas sábias palavras, aqui estamos, entre a apatia e o isolamento, escudados numa suposta virtude moral que nos torna arrogantes ao ponto de considerarmos aceitável o silêncio diante da injustiça, só porque temos a consciência tranquila.
Há uns anos, o tenista Andy Murray interrompeu um jornalista durante uma conferência de imprensa, corrigindo-o. O jornalista dizia que o tenista Sam Querrey, que acabara de eliminar Andy Murray nos quartos-de-final do Torneio de Wimbledon, era “o primeiro jogador norte-americano a chegar a uma meias-finais de um Grand Slam desde 2009”. “Tenista masculino”, interrompeu Murray, quase distraidamente. “Desculpe?”, perguntou o jornalista, surpreendido. “Tenista masculino”, clarificou e reafirmou Murray, claramente enfadado.
Na sala de imprensa, ouviram-se risos, fruto possivelmente da incompreensão. Andy Murray, por seu lado, manteve um semblante fechado, uma expressão desagradada. Os jornalistas presentes não valorizaram suficientemente a situação e prosseguiram. Murray foi a única pessoa em toda a sala a ter a decência de não subestimar o que as irmãs Venus e Serena Williams, ambas tenistas norte-americanas, haviam feito durante todos aqueles anos, após 2009: ir a meias-finais, ir a finais e conquistar títulos de Grand Slam. Elas também são jogadoras, elas também são tenistas, elas também são norte-americanas. Mas isso parece não ter tido importância para mais ninguém, além de Murray.
Recordo este episódio porque ele encerra, em si, mais assuntos do que pode parecer. Primeiro, porque é uma demonstração concreta, e imediatamente desconstruída, do machismo casual e quotidiano - “o diabo está nos detalhes”, como diz o provérbio, e aqui fica demonstrado. É nestas pequenas coisas que a importância se esconde. Diminuir o feito de uma pessoa, subestimá-lo, menorizá-lo, só porque é uma mulher e não um homem, devia merecer de todos a mais veemente condenção, o maior repúdio. Contudo, naquela situação, não o mereceu. Tudo o que recebeu foram risadas. E aqui temos o outro assunto: só Andy Murray falou diante da injustiça, todos os outros se riram e menorizaram. “Nenhum homem é uma ilha”, mas ali só Murray tinha consciência disso.
O gesto retratado nesta pequena história não é de somenos - e, especialmente, se o olharmos à luz dos nossos dias. Num mundo cada dia mais agressivo, cada dia mais injusto, mais duro, mais difícil para as mulheres, quase não se ouvem vozes masculinas, como a de Murray, a assinalar a injustiça, a indecência e até o abuso. Os homens comportam-se como se não fosse nada com eles - como se não fosse nada connosco, que eu não me deixo de fora, tenho a certeza de que posso ser e fazer muito melhor.
Mesmo vivendo numa bolha privilegiada, rodeado de pessoas inteligentes, cultas e bem-formadas, que não hesitarão um segundo na condenação moral de abusos, de violência e de todo o tipo de injustiças sobre as mulheres, é raro observar homens que eu conheça a manifestar publicamente o seu repúdio por certas ações ou o seu apoio a alguém do universo feminino. Onde é que eles estão, os homens? E, de novo, não tenho dúvidas de que todos não hesitam quando postos diante de bem e mal, certo e errado, humanidade e indecência. O que acontece é que não falam. E isso enfraquece-nos, isola-nos. Aos poucos, faz de nós as ilhas que não devemos nem podemos ser.
O que é que nos falta para juntarmos as vozes? Empatia? Solidariedade? Não haverá sequer compaixão? Quando vemos um caso, como este hediondo do bombeiro de Machico, não tenho dúvidas de que não há quem não se comova, quem não sinta o medo que aquele menino sentiu, o pânico e o desespero que destroem aquela mulher indefesa. Mas, então, temos de falar. E temos de falar sobre os outros meninos e as outras mulheres que ninguém filmou, mas que todos sabemos que existem, às vezes muito perto de nós. Aliás, juntos connosco. Não somos ilhas. Ninguém está sozinho.