Desde que me lembro de ser gente que nunca compreendi a violência que é a obrigação de acordar de madrugada, uma maldade incompreensível para uma criança e sem qualquer propósito engrandecedor. Sempre que muda a hora, esta singela reflexão regressa sem resposta: porque temos de ser todos iguais? Ainda mais agora, que vivemos um momento de obsessão com a saúde, que tem muito valor, mas também tem muito de aborrecido. Ainda mais na cultura europeia, tão criativa e hedonista, que nada tem que ver com o limitado artifício do american way of life que parecemos importar sem pensar, ou porque as redes sociais nos impingem. Já mercantilizam o yoga, o pilates, são especialistas em transformar tudo o que é antigo e sábio em regras simplistas de vida, plásticas e sem interesse nenhum, que nos tornam caricaturas a beber garrafas de água compulsivamente a acharmos que ficamos mais magros. A obsessão capitalista a varrer tudo, porque temos de ser cada vez mais eficientes e rápidos e tudo e tudo – mesmo que básicos e aborrecidos. Pior, este é o modelo das novas gerações, que antes compraram o rabo oversized das Kardashians e passaram a maquilhar-se imenso: qual é a piada do artifício?
A melhor arte, literatura, música, moda, teatro, dança, para não falar das melhores conversas, não se fazem às seis da manhã, muito menos regadas a sumos verdes, tostas de abacate e saudações ao sol. Podemos fazer tudo isto, eu faço tudo isto há três décadas, até antes de ser moda, mas sem ter acordar ainda de noite, comer tudo com salada, achar o álcool um horror e os cigarros uns escândalo. Somos todos diferentes e ainda bem, por isso o mundo não tomba, como diz uma amiga minha, só se torna preocupante quando o moralismo desce, e com ele normalmente chega a grande ignorância. E a condescendência que lhe é comum e que é uma grande plataforma para todo o tipo de ditaduras. Nunca acredites em quem te diz como deves ser. Como disse o teósofo e espiritualista Krishnamurti: para a sociedade, a liberdade significa desordem.
Alguns de nós somos naturalmente mais ativos ao serão, e não sou eu que o digo, mas a neurologista Teresa Paiva, neurofisiologista, professora na Universidade de Lisboa e especialista europeia em sono, também diretora clínica e CEO do Centro de Medicina e Sono, do Sleep Medicine Center e do iSleep. Entrevistei-a há uns anos e abriu-me a pestana para o meu complexo descabido (como quase todos são, verdade seja dita). Cresci numa sociedade que decidiu que quem acorda cedo é mais trabalhador do que quem acorda tarde. Sendo eu uma workaholic assumida desde os 20 anos - fechei tantas revistas até de madrugada e escrevi tantos textos ao serão e ao fim de semana - tendi sempre a discordar profundamente em silêncio até a ciência me compreender.
Mais, cresci num colégio onde as regras eram algumas e evidentes, e cumpri-as quase todas com alguma facilidade. Nunca me custou obedecer ou participar quando percebo as razões e reconheço a autoridade. Claro que compreendo a importância da disciplina, que adoro, aliás, das regras e fronteiras demarcadas, seja para um dia, uma tarefa ou uma pessoa. É um sinal de competência e inteligência, até. Ninguém faz uma atividade física regular ou um bom trabalho, sem disciplina. E também não é nada contra os saudáveis, já que não como carne há três décadas, e faço yoga há mais de duas, só não acredito na condenação da diferença no outro. Até porque, e quase todos o sabemos, os diferentes são normalmente os mais interessantes. E os desobedientes são quem leva isto para a frente, são os que tiram as ideias das caixas de sempre e lhes dão asas.
Sempre adorei a brisa fresca da manhã, que nos dá uma sensação de missão no mundo, de ter coisas para fazer e de ter saudinha, que nunca são demais. Mas podemos ser tudo isto e acordar uma hora ou duas depois, não é? Entendo porque é que a sociedade valoriza muito mais os madrugadores, porque assim organiza melhor as suas tropas: não só estão todos certinhos e a marchar na hora de ponta, de manhã, como jamais se podem esticar ao serão. Tudo bolinha baixa. A sociedade sempre vigiou o que sai da norma, e senta-se no mito porque quer-nos mais formatados e subservientes do que livres e responsáveis. E agora que os fascismos se levantam das pedras, onde julgávamos já estarem enterrados desde os séculos passados, ainda se torna mais evidente e mais assustador.
Segundo a Dra. Teresa Paiva, o mundo divide-se, grosso modo, entre “as cotovias, os matutinos, que se deitam e levantam cedo, que são do tipo mais racional e executivo e os mochos, que se deitam e levantam tarde e tendem a ser mais criativos.“ É a natureza de quem gosta de levar o seu tempo, e não ser levado por ele, muito menos a dar-nos ordens sobre o certo e o errado. Temos de ser todos madrugadores? “Não temos, claro! Basicamente, cada um tem as suas próprias necessidades de sono”, disse-nos Teresa Paiva, que também se assume notívaga, sem todos os preconceitos que este adjetivo sempre carregou quando apenas define quem não quer ir para a cama às horas das crianças e dos velhotes.
Os noctívagos, que somos em menor número, claro, temos algumas manias como não gostar de blackouts, porque gostamos de ir acordando lentamente com a chegada do dia. Eu nunca tive cortinados, nunca gostei, a Dra Teresa Paiva diz que devia optar por uns cortinados translúcidos, vou pensar nisso. “Todos devíamos acordar como nas séries inglesas: com o mordomo a abrir as cortinas lentamente”, acrescenta. Ser noctívago tem outros senãos: “As pessoas mais criativas são as que têm maiores níveis de consumo de café, tabaco, álcool e drogas, que estragam o cérebro e têm maior tendência para a depressão.” Só chatices. Mas quase tudo o que é interessante para um criativo se passa ao serão: das séries e filmes, aos concertos e peças de teatro e de dança, os jantares cuidados e os bons vinhos, as conversas profundas com os amigos. Claro que podemos fazer isto tudo às nove da manhã, mas não seria a mesma coisa, pois não?
A sociedade está toda construída à volta dos madrugadores, esses arautos do trabalho e da produção, e que tanto devem ter dado jeito aos patrões todos estes séculos. Nós fazemos isso tudo, só duas horas depois, acham que pode ser? Oiçam a especialista: “Se conseguir, não deve tentar trabalhar muito cedo, porque tem um cronotipo noctívago”, aconselhou-me. Depois, “levantarmo-nos de madrugada é muito estúpido… Ainda por cima agora há a mania de ir logo fazer ginástica a seguir!”, disse a médica a rir-se. “Levantar antes das seis da manhã é até prejudicial, existem estudos sobre isso, sobre o sono dos camionistas, por exemplo. Mas, lá está, tem de ser visto caso a caso, porque há sempre exceções a estas regras.” E acrescenta: “Sabe, as pessoas nos extremos desta natureza são sempre em menor número.” Sabemos. E os diferentes são sempre olhados de soslaio até alguém perceber que podem ter mais piada precisamente por serem diferentes. Depois, devemos sempre pensar na sabedoria da antiguidade clássica: “Os romanos usavam a cama para fazer tudo, de comer a estar com os amigos, tudo e mais alguma coisa… Bom, há quem diga que o que não merece ser feito na cama, não merece ser feito sequer.”