Dating em Lisboa. “Ficava horas a vê-lo jogar, deitando um olho para o campo por cima do meu livro aberto”

Foto: IMDB / 'Little Manhattan'
18 de setembro de 2024 às 18:18 Maria Pestana

Quando nasci não era bonita. Ainda hoje, a minha mãe faz comparações entre o ar angelical, de olhinhos claros e cabelo loiro, com que o meu irmão nasceu e eu, que nem cheguei à sala de partos. Saí disparada ainda no corredor, tal era a pressa de vir ao mundo. Quando o médico finalmente chegou, fazendo piadas sobre quem era a bebé que interrompia a hora da novela, já cá eu estava fora. De olhos abertos, esbugalhados, não eram verdes ainda, e cabelo preto, um tufo gigante de cabelo, também preto, espetado no ar. Tinha pressa de ver. Talvez tivesse pressa de existir fora daquele útero também. A estória do meu nascimento fica completa com aquelas que terão sido as primeiras palavras da minha mãe para o meu pai, assim que este colocou um pé na porta da maternidade, já eu estava embrulhada numa mantinha rosa de tom pálido com os mesmos olhos esbugalhados à espreita da alcofa: "Ai Tó-Jó, que ela é tão feiinha!".

Continuei feia durante muitos anos. Na escola primária além de feia era tímida. Não falava com ninguém. Desajeitada com as palavras. Abria a boca e jazia um silêncio. Não tinha voz, mas observava tudo com os mesmos olhos grandes e curiosos. Assim que comecei a saber ler passei a andar sempre com um livro debaixo do braço e fugia das outras crianças. No ciclo usava o cabelo escuro comprido quase pela cintura. Parecia uma cigana. Além disso, herdei o tom de pele alentejano da minha avó que por mais banhos não deixa de ser encardido. Todos me chamavam de ciganita. E o meu pai recusava-se a deixar que me cortassem o cabelo, vá-se lá saber porquê. Na verdade, era o primeiro a chamar-me carinhosamente de ciganita. No Carnaval, a minha mãe costurou um fato de cigana, com uma saia preta pelos pés e um xaile para usar às costas. Não é preciso dizer que, nos primeiros anos da minha existência, não cativei muitos amores. Ou, numa visão mais positiva dos factos, se os tive nunca soube, pois ninguém se confessou. Mas isso não me impediu de ir tendo os meus, em segredo. Amei muito na minha solidão. Um desses amores foi o Zé Carlos.

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O Zé Carlos chegou quando eu andava na segunda classe. Ele era um ano mais velho do que eu, foi para a terceira. Frequentava outra sala. Apenas o via nos intervalos. Veio de Lisboa, a família mudou-se no segundo semestre. "Massamá não é Lisboa", teria eu respondido hoje, mas naquela altura a geografia que conhecia estava limitada ao que a vista conseguia alcançar e não tinha visto Lisboa ainda com olhos de saber. Tinha um irmão mais velho que se tornou muito amigo do meu irmão, que passou a frequentar a casa deles para jogar Playstation durante horas intermináveis, o que me deixava roída de inveja. Nunca me convidavam. O Zé Carlos era diferente dos outros miúdos, vinha da cidade. Vestia roupas diferentes. Usava camisolas de manga à cava, o que eu achava incrível. Moreno e de olhos castanhos. Era o melhor jogador de futebol e eu ficava horas nos intervalos a vê-lo jogar, deitando um olho para o campo por cima do meu livro aberto. Uma vez deu-me uma bolada, acertou-me com força no meio da coxa que ficou vermelha o resto da tarde. Pediu-me desculpa, tinha sido sem querer. Obviamente, o Zé Carlos não me ligava nenhuma. Nunca ligou e durante muito tempo duvidei que soubesse sequer o meu nome.

Quis a vida que o Zé Carlos reprovasse um ano e passasse a ser da minha turma. Na verdade, não foi coincidência, o Zé Carlos baldava-se às aulas sempre que podia para ficar a jogar à bola no recreio e, percebi, depois, pela quantidade de vezes que ficou de castigo virado para a parede, que era um bocado burro. Mesmo assim, conseguiu acompanhar com esforço a turma até ao 9º ano. Depois, ingressou num curso técnico para aprendiz de eletricista. Durante todos esses anos, sempre senti um carinho especial pelo Zé Carlos. E a minha mãe sabia, claro, como todas as mães atentas e confidentes, observava a forma como eu própria observei o Zé Carlos durante vários anos. Nunca troquei sequer um beijo com o Zé Carlos. Nunca houve um carinho que acalmasse o meu coração, as nossas mãos nunca se tocaram de nenhuma forma especial. Ele nunca me deu festas no cabelo. Nada. O Zé Carlos sempre gostou da Joana, que nunca lhe ligou nenhuma e que acabou casada com o Ricardo, com quem dei o meu primeiro beijo a sério. Foi a primeira língua que senti na minha boca, a do Ricardo, e não sabia a chiclete de mentol, mas sim de morango. O Ricardo também tinha vindo de Lisboa, mas de Lisboa a sério, para o campo. Essa estória pode ficar para outra oportunidade.

Possuía estes factos tão nos confins da minha memória que receio que nunca me voltaria a recordar de tudo isto, não fosse ter recebido uma notificação do Zé Carlos no Facebook. Criou um grupo de antigos colegas da aldeia e propunha um reencontro, um jantar de convívio, deixando algumas datas de sugestão. Foi quando li o seu nome que me relembrei. "O Zé Carlos", pensei, "que será feito do Zé Carlos?". Passaram-se mais de 15 anos desde que o vi pela última vez, terá sido numa festa da aldeia. Continuava bonito. Cliquei no perfil, preparando-me para iniciar uma investigação digna de CSI quando o telemóvel tocou. Era a minha mãe, queria saber como tinham corrido as férias no Algarve. "Mais do mesmo, nada de especial. Não tires já o enxoval da arca. Por acaso, sabes alguma coisa daquele meu antigo colega de escola, o Zé Carlos? Ele estava aqui a sugerir fazermos um jantar de antigos colegas". Do outro lado senti um êxtase. "O Zé Carlos? O teu Zé Carlos?", perguntou ela dando ênfase ao "teu". "Mas qual meu Zé Carlos? Eu alguma vez tive alguma coisa com o rapaz?", respondi meio indignada. "Pois olha, nem sabes! Acabei de vir lá de baixo da loja, parece que o Zé Carlos se está para separar!". Mesmo onde a Internet não chega, uma mercearia de aldeia basta para difundir as novidades. "E eu com isso?", perguntei. "Podia-te interessar, sei lá. Só é pena que esteja feio que nem um bode, quando tu estás cada vez mais bonita!". Continuei a fazer scroll no seu perfil e dei razão à minha mãe. O Zé Carlos tinha perdido atributos com a idade, o que me deixou um pouco saudosa. Um alerta de nova mensagem surgiu no meu ecrã. "Olá, Maria. Como estás? À quanto tempo…". Deu-se-me um arrepio na espinha e as saudades desapareceram. "Há uma vida, Zé Carlos, mas com 'h', irra!".

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