Deitada na cama, com a janela aberta e a ouvir o tilintar das conchas do espanta-espíritos pendurado junto à janela, acompanhado pelo som das ondas ao fundo, percebi que não podia fugir à minha natureza curiosa. Podia tentar limar algumas arestas, mas seria inútil tentar resistir ao impulso de partir à descoberta. Por isso, levantei-me. Abri a porta e caminhei de noite pelo areal da praia, virei à esquerda e entrei pelas ruelas até me encontrar em frente à sua casa. Algo me disse que a porta estaria aberta, que ele esperava por mim. Era uma porta de vidro de correr, tapada somente por uma cortina de linho num tom cru. Corri a porta. Afastei a cortina. Sussurrei o seu nome. Não obtive resposta. Talvez tivesse falado demasiado baixo. Chegara a falar sequer? Olhei para o quarto do filho, a cama estava feita, ele não estava lá deitado. Achei perfeito, certamente dormia com algum dos amiguinhos da praia. Aproximei-me da porta do seu quarto. Ouvi uns barulhos que não entendi, um ranger sincronizado, mas como toda a casa é feita de madeira tudo range e treme à passagem do vento ou deslocar de um pé. Sussurrei novamente o seu nome. Voltei a não obter resposta. Pousei a mão no puxador da porta. Abri.
Estavam os dois na cama. Na cama onde eu achei que iria dormir numa concha perfeita que unia os nossos corpos bronzeados, partilhando um momento de ternura no meio da tesão daqueles dias de agosto. A sua ex-mulher cavalgava sobre si com fervor. Não lhe consegui ver o rosto. Não pude dizer se desfrutava com gosto ou não. Na pressa de fugir esbarrei contra um pilar. "Desculpem! Desculpem", disse enquanto o sangue me escorria do lábio cortado pela esquina da coluna de madeira. Os dentes doíam-me. Levei a mão à boca, pensei que poderia ter partido algum. Ele saltou da cama. Empurrou-a e saltou da cama num pulo – deduzo, pois nada vi. Somente sei que em segundos se apresentou a meu lado, pegou num pano de cozinha e colocou na minha boca tentando estancar o sangue. Estava completamente nu. O pénis meio flácido murchou completamente. Não houve pudor da sua parte. Já ela vestiu-se antes de sair do quarto. "Quem és tu? Quem é ela?", perguntou, confusa. Levantei os olhos. Ele também. Olhámos um para o outro. "É a Maria, é a Maria", disse ele, sem desviar o olhar de mim.
Pela primeira vez, este ano, não tinha quaisquer planos para o verão. Deixei as coisas correrem. Não queria férias em família. Não queria férias com amigos. Tinha a necessidade de desfrutar de uns dias sozinha. Arrancar para a praia só, tomar um banho de mar sozinha. Sair da praia, beber uma cerveja, comer uns percebes e umas ostras. Desfrutar do tempo. Desfrutar de mim, mas quis o destino tentar-me. Dar-me uma comichão que inevitavelmente tive de coçar e fazer-me descer rumo ao Algarve para uns dias idílicos numa cabana sobre as dunas. Ele enviou-me mensagem primeiro. Tinha gostado de me conhecer. Eu tinha algo de inesquecível, marcante. Não dei importância, conhecia o discurso de outras andanças, mas a verdade é estava curiosa com ele. Acho que apreciava o facto de ter desistido da vida em duas grandes cidades, em Lisboa e no Porto, e de carreiras profissionais mais sólidas e rentáveis, para assentar a sul, viver sobre as dunas, aproveitar cada dia, cada pôr-do-sol, cada mergulho.
A minha crise existencial dura há demasiado tempo para não me deixar beliscar por tudo isto. Queria saber como seria viver sobre o areal despojada de insignificâncias. Queria saber se o Universo me apresentava alguma hipótese que não tivera equacionado ainda. "E se eu acabasse na praia a vender águas de coco com o meu amor?". E esse "e se" fazia-me ir respondendo. Até que ele me disse que tinham desistido do aluguer da casa do cunhado e que esta estaria livre na altura das minhas férias. "Porque não vens? Eles pagaram o sinal de qualquer forma". E o sinal pago veio como um outro tipo de sinal para mim, não tinha como negar. Arranquei para o Algarve com uma mala cheia de biquínis e a cabeça cheia de ideias.
A minha cabana ficava na primeira linha da praia, completamente sobre as dunas. "Não te preocupes com os bichos da madeira que eu andei a tratar disso", assegurou-me assim que entrámos. Mas eu não estava propriamente preocupada. Tudo me parecia perfeito, de alguma forma. E tinha conhecido a casa da última vez que lá estivera, em maio, a propósito do meu aniversário, por isso, não fui às cegas. Fui à procura de saciar algo que tinha ficado por saciar desde então, mas queria ser cautelosa. Não queria deitar tudo a perder. Ser impulsiva. Queria fazê-lo durar. Queria conhecê-lo. Dar-me a conhecer. Percebi, depois, que queria pertencer. Mais do que viver tudo aquilo de forma intensa e rápida, queria conservá-lo. Queria saber se aquela poderia vir a ser a minha vida. "E se tudo o que anseio é somente por uma vida com mais propósito?". Pertencer era tudo o que eu queria, mas ainda não sabia bem. Achava que num momento de falha de identidade, saturada da minha vida na grande cidade, onde é cada vez mais difícil permanecer sem sentir que estamos a ser empurrados para fora, procurava por uma cabana na praia para preencher um qualquer vazio nietzschiano. Isso era apenas uma parte, o resto teria de vir com a cabana: as pessoas, um lar, um sentido.
Acordava de manhã e assim que abria a porta via o mar por detrás das dunas grandes. Tomava o meu café com os pés na areia grossa. Lia as revistas sentada no alpendre. Pegava na toalha, dava uns mergulhos. Nadava um pouco e voltava. Estendia-me ao sol em casa. Ele aparecia geralmente perto da hora de almoço. "O que queres comer? Vou assar um peixinho". Cozinhava ali, dava mais jeito. Trazia as coisas de casa dele. Todos os dias me surpreendia com algo, não sei muito bem como, mas as iguarias surgiam de algures. Ora ostras, ora percebes. Amêijoas ou caracóis. Arranjava sempre forma de termos algum delicioso petisco ao final da tarde. Passávamos o dia ali. Ele trabalhava um pouco de manhã e depois de almoço, remotamente, claro. O filho aparecia para almoçar. De resto, andava solto pela praia com os amiguinhos. Viviam descalços e de calções de banho. Eu vivia descalça e de biquíni. À noite, ficávamos a conversar no alpendre. Bebíamos vinho ou cerveja. Dávamos mergulhos noturnos. Jantávamos em casa de outros vizinhos – e só nessas alturas vestia algo mais. Conheci mais algumas pessoas da comunidade. Sentia-me bem.
Porém, todas as noites, quando me deitava, pensava que poderia não estar sozinha. Poderia estar nos seus braços. Sentir a brisa suave do oceano sobre o corpo de ambos e não apenas sobre o meu. Pensava que poderia ser a sua mão a levantar a base da minha camisa de noite e não apenas o vento. Noite após noite, pensei porque não cedia. Porque não deixava as coisas avançarem dessa forma. Ele mostrava sinais, mas ao mesmo tempo mantinha-se respeitoso. Beijou-me a primeira vez na minha terceira noite lá. Foi ralhar com o filho para que fosse para a cama e voltou. Beijou-me levemente nos lábios e disse que ele já dormia. Eu senti todo o corpo tremer. "Pois, eu também vou dormir!". Levantei-me, entrei e fechei a porta. Ele ficou a rir no alpendre. No dia seguinte trocámos mais uns beijos, entre a confeção do almoço e uns mergulhos fugidos no mar. Os dias foram passando, o clima foi aumentando, mas eu estava quase a ir embora. As hipóteses escasseavam.
Quando finalmente senti o impulso para agir e, desta vez, agia por algo mais do que um mero impulso sexual, lasquei um dente e abri o lábio. A realidade apanhou-me bem. Ele lá vestiu os calções. Ela teve a cortesia de se ir embora, percebendo que apesar de partilharem um filho e, alguns minutos antes, os fluídos corporais, se encontrava a mais. Eu esgueirei-me e fui-me sentar na praia, com as ondas a bater nos pés. "É o hábito, é apenas o hábito! Não penses que é outra coisa qualquer, porque não é! Maria, estava a gostar tanto de te ter aqui!". Disse, enquanto se sentava a meu lado na areia. Tentou abraçar-me, mas senti um arrepio. A imagem dos dois na cama trespassou-me logo. Já não havia nada de paradisíaco ou belo na nossa relação. A idealização terminara. Ele não esperou por mim. Talvez nunca tivesse esperado por mim e ela tivesse partilhado a sua cama todas aquelas noites. Talvez apenas partilhassem os corpos. Não sei, não perguntei. Não importava. "Está tudo bem, eu não pertenço aqui. Sou apenas mais uma miúda da cidade a passar as férias de verão. Este não é o meu lugar". Voltei para Lisboa de autocarro dois dias depois e marquei de imediato uma consulta no dentista. A aventura saiu cara e dolorosa. Felizmente, houve a garantia de um sinal, imagine-se se não tivesse existido nenhum.