Há muito que, sempre que posso, relembro publicamente que os direitos adquiridos são como o próprio nome indica: algo que é conquistado e que nos pode ser retirado a qualquer momento. Em relação ao tema do aborto, temos visto em vários países esta lei avançar e recuar, como um navio ao sabor das marés, infelizmente levando ao leme algum macho alfa que pouco ou nada sabe efectivamente sobre este assunto.
No mais recente debate promovido pela Federação Portuguesa Pela Vida, e em plena campanha eleitoral, Paulo Núncio, vice-presidente do CDS-PP (um dos três partidos da Aliança Democrática/AD), defendeu que deve ser feito um novo referendo ao aborto. No mesmo debate participou o vice-presidente do Chega, Pedro Frazão. Ora bem, se um reaccionário incomoda muita gente, dois reaccionários incomodam muito mais. Núncio mostrou-se a favor de iniciativas que possam "limitar o acesso ao aborto", tais como taxas moderadoras. É uma tentativa clara de inversão de marcha no tema do aborto, mas nada inovadora, uma vez que esta medida chegou a ser implementada pelo governo PSD/CDS-PP em 2015, mas acabou por ser revogada pela maioria parlamentar de esquerda. Núncio alega esta questão como defesa da "dignidade humana no centro e na prioridade da actividade política". Um dos velhos chavões eleitorais da direita que melindra sobretudo os eleitores, sejam de esquerda ou de direita, que ainda têm medo de um Estado ou de um Deus punidor, quando há muito que Nietzsche anunciou a morte de Deus e os líderes políticos estão claramente moribundos. Só não sabe quem não quer.
A direita continua a fazer do tema do aborto agenda política para conquistar pessoas assustadiças, juntando-se a grupos que fazem da superioridade moral uma bandeira, como por exemplo a Federação Portuguesa Pela Vida, que vai promover uma Caminhada Pela Vida em treze cidades do país. A velha ignomínia que divide os que são a favor da vida e os vampiros imorais que defendem a lei do aborto, como se se alimentassem de alguma forma dessa questão. Um maniqueísmo absurdo, rente à ignorância dos que içam tal estandarte da moral. Uma coisa é certa, seja sobre a lei do aborto, sobre as leis da imigração, da educação ou outras: a direita está cheiinha de energia para enterrar a cabeça dos portugueses e das portuguesas em pântanos do passado. Embora Luís Montenegro tenha vindo dizer que o PSD não pretende mexer na lei do aborto e que a questão do referendo sobre o mesmo é uma opinião apenas veiculada por Núncio, a verdade é que se trata de uma coligação. A verdade é que não sabemos o que pode acontecer depois das eleições (caso a AD seja eleita) entre duas comadres que discordam durante o período eleitoral. A verdade é que as certezas políticas que se fazem durante a campanha eleitoral são tão estáveis como as juras de amor eterno durante a época de acasalamento.
*A cronista escreve de acordo com o Acordo Ortográfico de 1990.