Conversa de escritores

Leonor Xavier conversa com Possidónio Cachapa sobre o seu mais recente livro, A Vida Sonhada das Boas Esposas.

31 de março de 2020 às 07:00 Leonor Xavier

Possidónio Cachapa é professor no Departamento de Cinema e Artes dos Media, do seu livro "O Nylon da Minha Aldeia," fez um filme, e "Adeus à Brisa" foi o seu documentário sobre Urbano Tavares Rodrigues. Como escritor, depois do êxito de "Materna Doçura, " finalista do Prémio Saramago, tem mais uma dezena de livros de ficção publicados. A Vida Sonhadas das Boas Esposas, a sua mais recente obra, faz rir e comove. Texto envolvente na vivacidade do estilo, na sonoridade da prosa, no exercício prazeroso da linguagem. Nele seguem-se as palavras derramadas em diálogo, ou em reflexão interior, ou em descrição de paisagem, de gente, de um pormenor, uma inquietação, um súbito pensamento. Sabe quem sabe o exercício da escrita e sabe-o bem Possidónio Cachapa, o autor que estudou, leu, procurou o sentido sagrado do texto literário. Desde a primeira juventude terá sido esta a sua vocação. Não há criação ou fição sem texto. Daí o gosto de saborear este autor, de cada vez retomado.

Este seu mais recente título já é uma tentação, "A Vida Sonhada das Boas Esposas", a dar que pensar. Pode ser surpreendido por uma situação, por uma pessoa que venha a tornar-se personagem em um novo livro?

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Sim, eu penso em surpresa. Não tenho preconceitos. Cada vez me interessam mais as pessoas pelo que podem dar ou pelas minhas surpresas.

Acredita que o escritor tem responsabilidade neste mundo a que assistimos, todos os dias?

Tem responsabilidade involuntária. A intervenção deriva da literatura, não é intencional. Se é atento, reflete sobre a sociedade do ponto de vista crítico.

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Este ponto de vista, nos seus livros, pode ser um modo de refletir sobre situações que merecem crítica, denúncia. Os leitores acompanham-no, então, no que está a acontecer ali, naquele contexto, naquele cenário, com aquelas pessoas. Acha que a sociedade portuguesa é hipócrita?

É intrinsecamente hipócrita em todas as classes sociais. Uma pessoa pode ser alguma coisa, mas não pode dizer que é.

Existe o medo. A submissão, o julgamento dos vizinhos e parentes…

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Há uma sociedade de comadres. Vivemos como se fossemos uma gigantesca aldeia.

É verdade que neste ambiente de competição nem sempre se admiram aqueles que ganham ou se afirmam?

Tudo o que sai do pré estabelecido provoca a falta de autoestima, de amor próprio. Sempre que alguém é bom em alguma coisa há destruição. Primeiro, há uma valorização, mas que não dura, é efémera. Depois, as pessoas desconfiam daquelas qualidades.

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A expressão da alegria é motivo de censura?

O estar de bem com a vida não é comum. Achamos que para isso acontecer, existe alguma vida secreta. "Há uma vida secreta," pensam. Alguma há de ter. Mas que não a vemos e, apesar disso, as pessoas acham que ela deve existir.

Livro pícaro, é diferente dos seus outros no estilo, mas como nos outros, há uma mensagem. Foi difícil?

Para o conseguir escrever afastei-me do país, fui um tempo para a Indonésia. Tentei uma bolsa, mas não consegui. Depois, falei com o diretor da Faculdade, Manuel José Damásio, perguntei-lhe "Queres um escritor que dê aulas?" e ele foi maravilhoso. Mostrou um espírito aberto, incomum, deu-me um tempo para trabalhar o livro.

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Porquê a Ásia? Há uma sedução?

Gosto muito. Pela gentileza das pessoas que ajudam sem lhes pedirmos nada. E porque tem paisagens que me tocam.

Voltando à mensagem do livro ou à denúncia de erros graves na sociedade…

Esta violência ao nível da negação de existir, de viver plenamente, isto faz- me confusão. As pessoas levaram uma vida inteira e deixaram de ser elas próprias.

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Aconteceu com Madalena. O que foi a vida inteira de renúncia e submissão, o que têm sido os filhos. A imagem ideal da família não existe. A história tem cenas terríveis, entre o riso e o lamento, na indignação que leva o leitor a pensar: Como é possível?  

A Madalena é uma sobrevivente, sobretudo é alguém que tem uma espécie de revelação do que era para a família. Os membros da família são cruéis, insultam-se, o que interessa é a velocidade do dinheiro, é o consumo, é o que gera como ter mais.

Porque o humor pode tocar a tragédia, ela sofre injustiças, insultos,  perseguição. Sente que há um sofrimento, um vazio em muitas vidas?

Algumas pessoas, de alguma idade, diziam "Quando eu era criança, eu gostava de dançar, de cantar." E diziam: "Fazia–me confusão olhar para trás e não ver nada do que eu tinha gostado de fazer."

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Há a ficção ou a saudade de um passado feliz.

Na primeira infância está-se mais em liberdade.

A solidariedade entre as três mulheres, todas diferentes nas histórias de vida que vão contando, é uma compensação para os males da idade adulta? Bonita a ideia de que cada uma seguirá o seu caminho, mas que se tornaram amigas, em face das tantas adversidades por que passaram…

No final do livro eu nunca vejo nenhuma personagem como má. Gosto da ideia de redenção, creio na bondade humana. Não sou cético.

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Podemos dizer que este é um romance de esperança?

No fim, a Madalena está sozinha no aeroporto. Ela está sozinha, mas descobriu outra vida.

Por que razão nos comove?

Há um bálsamo sobre os que sofrem, há um gesto de piedade.

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E mais?

Escrever é liberdade.

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