Afeição enganosa: quando expressamos mais amor do que aquele que sentimos
Novas pesquisas sugerem que a falsa afeição pode manter os relacionamentos fortes.
O início de uma amizade é como o início de uma relação amorosa: mostramos o melhor de nós. No entanto, e com o tempo, vamos mostrando outras caraterísticas nossas e a outra pessoa vai-se revelando também. O pior é quando a amizade que temos começa a trazer negativismo para a nossa vida e, em vez de nos sentirmos felizes, seguras e de ser uma relação de potenciação mútua, acontece o contrário.
"Quando o amigo nos critica de forma destrutiva com frequência, fazendo comentários depreciativos que nos fazem sentir inseguras, inferiores e vulneráveis, é um dos sinais tradutores de que podemos estar numa relação de amizade tóxica", explica Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica e coach profissional. A este segue-se o "receio de nos expressarmos livremente, medindo as palavras e a informação transmitida, por medo da reação crítica do outro", ou até quando somos "alvo de gozo constante por parte do nosso dito amigo". De forma menos evidente, "quando parece existir uma competição e comparação permanentes" é também sinal de que está a viver uma amizade pouco saudável.
Definindo o conceito, está perante uma amizade tóxica, quando "não existe o respeito necessário pela individualidade do outro, predominando a crítica, o julgamento, a manipulação, o ciúme e/ou o poder", clarifica Filipa Jardim da Silva, acrescentando que "ao invés de nos sentirmos apoiados e confiantes, vamo-nos sentindo progressivamente mais tensos, inseguros e com uma auto-estima mais frágil".
Sharon Livingston também viveu uma amizade tóxica. Durante um episódio das conhecidas TEDx Talks, Sharon contou que viveu uma amizade em que no início tudo corria bem e até se tornaram melhores amigas, até que, de repente, a amiga começou "a criticar-me e a dizer ‘devias mesmo mudar isso’". "A minha auto-estima estava alta quando ela estava de bom humor e descia quando ela estava de mau humor", acrescenta, mencionado ainda que passavam muito tempo ao telefone, "e eu ouvia-a, e então, quando ela acabava de falar de tudo o que a estava a incomodar, ela dizia ‘ok, tenho de ir’, e ali estava eu, já não lhe dizendo quem eu era". Sharon Livingston comparou a vivência de uma amizade tóxica com o "ter uma bala alojada na cabeça". E, se julga que os comentários depreciativos e a aproximação do "amigo" apenas afetam o sistema psicológico, já devia saber que corpo e mente andam lado a lado, pelo que, fisicamente, é normal notar ansiedade e mal-estar quando está com a pessoa em questão, algo que se pode traduzir em "alterações gastro-intestinais, aperto no peito, alterações no apetite ou no humor e diminuição de energia", esclarece a psicóloga clínica.
Preste atenção aos sinais e perceba se esta situação também faz parte da sua realidade. E acredite: não é tão fácil como aparenta, já que é possível estar numa amizade tóxica sem se aperceber disso. Tal acontece, sobretudo, quando "muitas das relações desenvolvidas ao longo da vida [pela vítima] tenderam a ser assimétricas, numa base de autoanulação permanente e, de alguma forma, aquela é a realidade que se conhece, pelo que será mais difícil ter consciência do quão tóxica é a dinâmica relacional", justifica Filipa Jardim da Silva. Também é mais difícil ter essa perceção para pessoas inseguras e com baixa autoestima, pois "os amigos tóxicos podem ser encarados como amigos honestos, que dizem verdades duras, e os limites de respeito e autonomia perdem-se", explica a psicóloga clínica.
Como diz o provérbio, "não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe" e, assim, é possível terminar uma amizade tóxica. Em primeiro lugar, é importante desenvolvermos a capacidade da auto-observação, pois "quanto mais conscientes estivermos de nós, quanto mais treinarmos a habilidade de identificar os nossos pensamentos, nomearmos as nossas emoções e descrever as sensações físicas experienciadas, mais conseguiremos dar um sentido a várias experiências do momento presente", aconselha Filipa Jardim da Silva, referindo ainda que "esta capacidade de reflexão será decisiva para nos apropriamos do impacto que pessoas e contextos à nossa volta nos causam".
Depois, deve procurar ter respeito por si própria e desenvolver práticas de autocuidado. Nesse sentido, preste atenção à forma como os outros a tratam e lembre-se que, "independentemente do nosso comportamento e de fragilidades que possamos ter, não temos o direito de nos julgar superiores a ninguém, nem de permitirmos que alguém nos julgue", refere a psicóloga. "À medida que alinhamos a maneira como nos tratamos e a relação que temos com os outros, fomentando respeito e companheirismo, vamos começar a triar as relações que já não nos servem e aquelas que nos potenciam", remata.
O fim de uma amizade pode "partir" tanto o coração como o fim de uma relação amorosa. Para ultrapassar a dor, dê legitimidade a tudo o que sentir e pensar, ao mesmo tempo que se mantém junto dos amigos bons, pois "é da observação do que sentimos com amizades saudáveis comparativamente ao que notamos junto de amizades tóxicas, que vamos reforçando serenamente a escolha de nos distanciarmos de um amigo que não nos fazia bem", recomenda a psicóloga clínica e coach profissional, apontando ainda que "estas situações de perda de amizades constituem oportunidades de aprendizagem e crescimentos e que há algumas questões que nos podemos colocar, para transformar a dor da perda numa dar produtiva", tais como: "O que é que esta relação me trouxe? O que é que esta situação me está a dar oportunidade de aprender sobre mim? Que recursos pude reforçar com este desafio?"
Por último, mas não menos importante, Filipa Jardim explica que "as nossas crenças, preferências, até a clareza dos nossos valores, altera-se ao longo da nossa vida, pelo que é fundamental darmo-nos legitimidade para reconhecer que algo que nos fez sentido em determinado momento, noutro pode-se ter tornado tóxico" e relembra que "independentemente do que façamos, nunca vamos conseguir agradar a toda a gente e que ao longo da nossa vida, por vezes, existirão alguns conflitos e desencontros, que são naturais e parte integrante do nosso crescimento. Nesse sentido, por mais que nos custe afastar de algumas pessoas, que nos permitamos a essa escolha".