"Durante boa parte dos anos 2000,
o passatempo preferido na cultura e no entretenimento era ver e observar mulheres: em reality shows, pornografia, videoclipes, revistas, filmes – tudo géneros que se misturavam, se fundiam e se influenciavam
mutuamente com uma facilidade desconcertante.” É assim que começa
o sétimo capítulo de Girl on Girl: How Pop Culture Turned a Generation of Woman Against Themselves, um dos que talvez mais ressoem nos leitores, tanto os que viveram in loco o escárnio coletivo em relação à vida
pública e privada das celebridades que caracterizou o início do milénio,
como os que apenas ouviram relatos desses tempos de desmedida dissecação sobre a (suposta) intimidade das estrelas. Como num tsunami
impossível de prever, tudo culminou em 2007, ano em que foi lançado
o iPhone e o Google Street View – e em que, de certa forma, começou a
crise financeira que viria a condicionar as décadas seguintes. “Em 2007,
as mulheres mais famosas do mundo estavam sob um escrutínio sem
precedentes, e muitas delas começaram a ceder à pressão. Em janeiro,
no mesmo mês em que Hillary Clinton anunciou a sua candidatura à presidência [dos Estados Unidos], a ex-estrela infantil Lindsay Lohan
internou-se numa clínica de reabilitação durante as filmagens de Eu
Sei Quem Me Matou, um thriller torture porn em que fazia o papel de
gémeas idênticas. Em fevereiro, Anna Nicole Smith sofreu uma overdose de medicamentos num hotel em Hollywood, na Flórida, o
que provocou um frenesim mediático que levou à gravação de um vídeo do seu cadáver, para a televisão, e à divulgação online do conteúdo do seu frigorífico (metadona
e SlimFast). Oito dias depois, Britney Spears, que por essa
altura era uma mãe de 25 anos com dois filhos pequenos,
rapou a cabeça à frente dos paparazzi num salão de cabeleireiro em San Fernando Valley. A cena foi ainda mais
chocante porque Spears estava a atacar aquilo que a tinha
tornado famosa: a sua própria representação de uma feminilidade desejável e cobiçada.” Diversos fait divers marcaram esse fatídico ano, como Sophie Gilbert relembra
– quase todos eles protagonizados por “mulheres à beira
de um ataque de nervos” –, mas a esta distância é fácil
concluir que, ao contrário do que diz o ditado, Britney não
sobreviveu a 2007.
Por coincidência, conversamos com Gilbert no dia em que
The Life of a Showgirl, o último álbum de Taylor Swift, é
lançado. Mais ousado do que o habitual, pelo menos em
termos estéticos e estilísticos, será ele uma declaração de
intenções ou um passo atrás na luta feminista? “Não acho
que seja nenhuma das duas coisas... Parece-me que é uma
espécie de álbum conceptual, talvez ela esteja a explorar a [digressão] Eras Tour e a estranheza de ser uma artista...
Mas não ouvi o álbum, por isso não sei se é mesmo esse
o tema. Para mim, ela é fascinante. Falo um pouco no livro sobre como ela entrou no mundo da música num momento em que tudo era muito objetificado. E [ainda assim] ela sempre expressou os seus sentimentos de uma forma
muito poderosa, ao escrever com o coração, sem receio
de mostrar toda a sua humanidade.” E o facto de aparecer
menos vestida do que o habitual? Será isso problemático
para o seu público? “Ainda não vi as imagens com atenção.
É um estilo à moda das dançarinas de Las Vegas, com lantejoulas por toda a parte. Não penso que isso seja... Estou
a tentar encontrar a melhor maneira de me expressar. Não
acho isso problemático, porque não se trata de como nos
vestimos, mas de como as pessoas reagem à forma como
nos vestimos. [...] A nudez, ou melhor, a ‘exposição’, não é
algo que me incomode. Tem mais que ver com o contexto.
Acho que uma das coisas que perturbaram [recentemente] as pessoas foi a capa do álbum da Sabrina Carpenter, em
que ela estava completamente vestida. Não se tratava tanto
da sua aparência, mas sim da dinâmica de poder da imagem.” Estará o nosso julgamento, a priori, condicionado
pelo que fomos habituados a entender como chocante ou
desconcertante? Pelas nossas próprias perguntas, a resposta só pode ser uma: sim.
É também a autora, jornalista da The Atlantic e finalista do
prémio Pulitzer em 2022 na categoria de crítica, quem o
garante. “As coisas que vemos, ouvimos, lemos, vestimos,
escrevemos e partilhamos ditam, em grande parte, a forma como interiorizamos e projetamos o nosso valor.” O
seu livro – que será lançado em Portugal pela Penguin Random House em 2026 – está a ser um êxito. Sophie multiplica-se em entrevistas e encontros um pouco por todo
o mundo, porque quer partilhar esta sua reflexão sobre
um tempo em que o conformismo se camuflava de assédio, e o silêncio se comprava com promessas de sucesso.
Voltamos a 2007. Foi isso que esse annus horribilis deu às
mulheres, uma forma enviesada de pensarem sobre elas
mesmas? “Sim, concordo a cem por cento. Foi uma mudança cultural e 2007 foi o ponto alto do fascínio dos tabloides pelas mulheres mais novas. Também foi o ano em
que Hillary Clinton anunciou que concorria à presidência pela primeira vez, e a pergunta que me veio à cabeça
foi: como é que podemos acreditar que uma mulher é capaz de ocupar o cargo mais poderoso do mundo quando
tudo o que vemos, cada vez que abrimos o computador ou
olhamos para um jornal, são mulheres a tropeçar, ou mulheres a mostrar as suas vaginas, ou mulheres a conduzir
bêbadas ou a ser presas... Era assim para onde quer que
olhássemos, havia esse bombardeamento de notícias sobre mulheres que pareciam estar a falhar na vida e na sua
relação com a fama, a entrar em colapso e a ter recaídas,
e não acho que esse fosse um ambiente que nos fizesse
pensar de forma muito favorável em relação às mulheres.
O discurso era maioritariamente marcado pelo nojo.” Sophie passa a limpo várias formas de media, dos polémicos
anúncios da American Apparel a filmes como American
Beauty (1999) e Hostel (2005), não esquecendo chamadas de
capa que seriam impossíveis atualmente (em 2003 a Vanity
Fair escrevia “It’s totally raining teenagers!”), reality showsde caráter sexista (The Bachelor) ou bloggers que publicavam informações insidiosas sobre celebridades (Perez
Hilton). É um quadro sombrio, mas é real. Foi como se o
movimento feminista underground do início dos anos 1990 tivesse sido engolido por uma nova versão da submissão
feminina dos anos 1950.
O papel de embrulho que adornava este jogo de luz e sombras? O termo “empoderamento”, no qual Sophie Gilbert
não confia. “Devo dizer que não é a palavra. Não é culpa da palavra. (risos) A palavra em si é ótima, é a forma
como é usada – quando surgia na minha pesquisa, era
quase sempre para exemplificar algo que não tem absolutamente nada que ver com dar poder às mulheres. Acho
que um dos exemplos que tenho no livro é o Wonderbra
[famoso soutien push-up]. Quando as pessoas reclamaram
dos anúncios com a Eva Herzigová, nos anos 1990, a empresa disse que as imagens eram empoderadoras. E sim,
as mulheres podem-se sentir poderosas ao usar o Wonderbra, mas na verdade não se trata de conferir poder às
mulheres. Trata-se de ter, ou tentar ter, um certo tipo de
poder sexual que visa agradar aos homens. E isso apareceu [na minha pesquisa] repetidamente. Como o cartaz de um filme de torture porn chamado Captivity, com a Elisha
Cuthbert, em que ela aparecia amarrada e em sofrimento.
No filme, ela era raptada e torturada. Quando as pessoas
se queixaram do cartaz, os produtores disseram: “Oh, é
empoderador, ela foge no final!” Esse paradigma fez com
que o poder sexual fosse o tipo de poder a atingir. E esse,
sublinha Sophie, “é um tipo de poder muito limitado. O
meu interesse pelo poder não é num contexto sexual. E
acho que as mulheres, de uma forma geral, são encorajadas a pensar no poder num contexto sexual muito mais do
que em qualquer outro contexto. Se pudéssemos expandir
a nossa capacidade de pensar sobre o que o poder pode
ser, para nós, e como ele pode parecer, seria ótimo.” Por
esse motivo, garante, escrever este livro foi catártico: “Aos
16 anos, convenci-me de que a única coisa que importava
era o quanto era sexy e como poderia usar essa sexualidade. Parecia que isso era a minha única moeda de troca.” Depois desta longa investigação, entendeu que o voyeurismo desenfreado dos anos 1990 e 2000 foi, também,
uma consequência do medo e da ansiedade provocados
pela trágica crise de sida da década anterior. Havia muita
angústia em relação ao sexo –angústia que se pensava ter
desaparecido nos anos 1970 –, e isso pode ter sido o catalisador de algumas mensagens sexuais mais agressivas
para “tentar reivindicar o sexo.” Isso implicava, conscientemente ou não, abafar tudo o que o feminismo defendia.
À beira de um novo século, “toda a gente estava exausta, as pessoas só se queriam divertir e sentir a alegria da celebração novamente. E penso que havia a sensação, com o pós-feminismo e os media, de que as pessoas já não queriam fazer o que a geração anterior tinha feito. A geração de mulheres antes dos anos 1990 tinha intenções feministas, tinha crenças feministas, tinha militância, tinha coisas que procurava alcançar. Nos anos 1990 chega-se a um ponto em que parece que a maioria das batalhas foram vencidas: as mulheres estão no mercado de trabalho, podem ir para a faculdade, podem ter uma conta bancária... Muitas das grandes batalhas do feminismo foram ganhas, e houve uma reação contra o que era visto como a natureza enfadonha e repressiva do feminismo – que é como ele sempre foi caricaturado nos media. E houve um desejo de encontrar algo novo. Há sempre um desejo de encontrar algo novo, e ali, com a aproximação do milénio, havia a ideia de que não precisávamos de nos preocupar, que podíamos deitar fora as regras do passado e ser livres, ser desinibidas, ser tão sexuais quanto quiséssemos.” Foi também essa a razão pela qual passámos de ter mulheres do rock que gritavam pelos seus direitos a adolescentes que dançavam ao som de melodias pop sobre rapazes do liceu? “Acho que aconteceram tantas coisas na música dos anos 1990 que falam sobre mudança, feminismo e empoderamento das mulheres... Além de Tori Amos e Madonna, havia várias mulheres que faziam música rock interessante, eram empoderadas, falavam sobre as coisas que lhes tinham acontecido, contavam as suas experiências... Mas, olhando para trás, a verdade é que elas nunca foram realmente aceites na indústria musical. Havia sempre um certo ceticismo em relação a elas, eram sempre mantidas à distância, como se nunca fossem levadas a sério como artistas.” Mais: “Nos anos 1990 havia um grande estigma contra ‘vender-se’, essa ideia de que, se fosses um artista de verdade, não te vendias...” E de repente surgiu outro tipo de artistas, aquele que podia ser usado para vender coisas. Exemplo: as Spice Girls. “Não tenho nada de mau a dizer sobre as Spice Girls, adoro a música delas, significou muito para mim quando tinha 13 anos. [...] Mas elas, de certa forma, ‘venderam-se’, puseram o nome e a imagem em tudo, e assim que as pessoas da indústria musical perceberam quanto dinheiro poderia ser ganho [com os artistas], e em particular quanto dinheiro se podia ganhar a vender coisas para adolescentes, simplesmente deixaram de se importar com qualquer outro tipo de música.”
Girl on Girl – um trocadilho com o género pornográfico
em que duas ou mais mulheres fazem sexo – não é um
título em forma de provocação. Era “o único possível”,
diz Sophie, porque junta tudo o que queria explorar, do
interminável conflito intrafeminino à influência massiva
da pornografia. “Eu diria que a maior surpresa, enquanto
investigava, foi o quão influente a pornografia foi em toda
a cultura dos anos 2000 – arte, moda, cinema, televisão.
Pensamos na pornografia como algo que as pessoas fazem
em privado, mas ela teve uma influência pública e cultural
fortíssima.” No final da introdução de Girl on Girl, a autora deixa um apelo. Vamos examinar o que foi menos bom
para não voltarmos a cair no mesmo erro. “Analisar a história coletiva é, acima de tudo, uma demonstração de esperança: tentamos perceber de que forma é que as coisas
correram mal, para podermos conceber um caminho mais
poderoso para o futuro.” Vamos a isso. Em 2025, como fica
o feminismo no meio de tudo isto? Será que o conseguimos definir? “Acho que o feminismo é o que sempre foi. A
crença de que as mulheres são seres humanos iguais aos
homens, que merecem igualdade de direitos e igualdade
de oportunidades. E julgo que a maioria das pessoas acredita nisso, honestamente. Penso que a palavra ‘feminismo’
tem essa conotação negativa associada, essa ideia de que
as feministas odeiam os homens, e nada disso é verdade,
não é assim que nos sentimos. [...] É necessário um tipo
de feminismo que reafirme estes valores: as mulheres são
iguais, as mulheres merecem segurança, as mulheres merecem igualdade de direitos e oportunidades. Mas a palavra em si, não sei, pergunto-me se talvez seja preciso
uma palavra diferente, porque as pessoas sentem-se tão
repelidas pelo feminismo, há tanto ódio associado a este
termo, talvez uma nova palavra possa ajudar. Só não sei
qual será essa palavra.”