Ana Laíns: “a integridade é a coisa mais importante da minha vida e da qual eu não abdico”

Discreta nos gestos, majestosa na voz, Ana Laíns tem uma personalidade tão cativante quanto a sua música. A celebrar 20 anos de carreira – que se traduz em precisamente metade da sua idade a cantar – escolhe celebrar no palco onde se estreou, em 1999.

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20 de janeiro de 2020 às 07:00 Rita Silva Avelar

Minutos antes de começarmos a conversar, Ana Laíns (1979, Constância, Santarém) descobre que a lotação para o concerto que assinala as duas décadas do seu percurso musical encontra-se quase esgotada. Com uma inequívoca expressão de quem não esconde a alegria que a invade, precipitamo-nos numa agradável troca de palavras que não só revisita os momentos altos de uma carreira em constante ascensão como nos mostra qual é a identidade verdadeira desta artista ligada à música portuguesa e ao fado, mas que não se diz fadista. Dona de uma honestidade que desarma e de um humor contagiante, Ana Laíns fala sem filtros sobre as suas convicções no domínio da Música, do seu papel como artista na modernidade, dos seus sonhos e momentos marcantes. Com três discos editados – Sentidos, em 2006, Quatro Caminhos, em 2010, e Portucalis, em 2017 – Ana Laíns trabalhou quase sempre de forma independente e com determinação. A dia 31 de janeiro sobe ao palco do Salão Preto e Prata, no Casino do Estoril, o mesmo que pisou em 1999, com apenas 20 anos, no seu primeiro concerto.

Ana: são 20 anos de carreira. O que diria à jovem artista de há 20 anos, metade da sua vida, sabendo tudo aquilo que conseguiu até hoje?

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É mais fácil responder a essa pergunta do que à pergunta: "onde é que te vês daqui a 20 anos?" Que tem sido frequente. Há 20 anos não fazia a menor ideia do que ai viria, a única certeza cabal que tinha era que queria ser cantora profissional. Vim para Lisboa tentar a minha sorte aos 19 anos e felizmente passou apenas um mês até aparecer o primeiro trabalho. Não quero ser lamechas mas vou ser. Lembro-me de uma pergunta do meu pai, que surgiu quando lhe disse que não queria ir para a faculdade, que queria ser cantora e que eles tinham que me apoiar. O meu pai foi uma pessoa com grande capacidade de adaptação, considerando que os pais querem que os filhos sejam advogados e arquitetos. O meu pai disse-me: "filha, nós estamos contigo, fico um bocado preocupado mas apoio-te. Mas tu vês-te, daqui a 20 anos a pagar as tuas contas e a ser uma profissional honesta e com a tua vida organizada com essa profissão que estás a escolher?" E eu lembro-me que aquela consciência me fez pensar que não bastaria fazer palcos e ganhar cachês. Aquilo [que ele disse] foi muito importante para a responsabilização. Eu agora olhava para essa miúda e dizia: well done, Ana Laíns! Cumpri a grande preocupação do meu pai, que infelizmente já cá não está. Ele sabia que tinha uma filha trabalhadora mas também vaidosa.

A vaidade pode ser fatal na carreira de um artista?

Eu tenho muito orgulho em afirmar que a minha carreira tem sido bem-sucedida mas discreta, não estou no mainstream. Isso vem do meu trabalho. Sim, 10% é talento, 90% é empenho e criatividade, e também ter uma mensagem. A sorte constrói-se, mas temos de saber onde queremos ir e porque é que queremos ir. Cantar por cantar não chega.

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Nasceu em Constância, Tomar. Que memórias musicais tem da sua infância?

Sim, numa pequena aldeia chamada Montalvo. Não é um cliché, mas eu não me lembro de mim sem cantar. Devo ter falado primeiro (risos). A primeira atuação ao vivo aconteceu quando tinha seis anos, num festival da escolinha, e acabei por representar a minha escola durante três anos consecutivos. Tenho essa memória muito presente. Eu era insuportável, dizia às pessoas que passavam por mim que era a artista principal. Há um vizinho que me chamava a artista principal, até há bem pouco tempo. Com cerca de 11 ou 12 anos, fui chamada a integrar – com a autorização do meu pai – uma banda de música tradicional portuguesa da minha zona de residência, onde eu tocava ferrinhos e tocava nos coros. Foi a minha primeira ligação à música tradicional portuguesa. Aos 14 anos tive a minha primeira banda de garagem, aos 15 cantei o meu primero primeiro fado.

Esse primeiro fado foi o ponto de viragem?

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Foi. Até ai, o fado era para mim uma canção para velhotes. Que horrível preconceito. Chamo ao João Chora o meu padrinho do fado, é um fadista ribatejano, que dizia ao meu pai que eu teria muito jeito para cantar fado. Até que um dia o meu pai me levou aos fados. Na altura eu já era fã da Dulce Pontes, que me tinha deixado completamente impactada com o seu talento quando a ouvi num concerto, tinha eu 14 anos. Foi com a Dulce Pontes que eu fiz a primeira aproximação ao repertório fadista, então decidi aprender o Zanguei-me com o Meu Amor e a Lágrima [ambos da Amália Rodrigues]. Não dá para explicar como é que estas coisas acontecem dentro de nós, foi uma alquimia instantânea. Adorei a sensação de estar acompanhada por uma guitarra e uma viola. Comecei a fazer os circuitos das noites de fado na zona do Ribatejo.

O que é que significou ganhar a Grande Noite do Fado?

Marcou, ao nível pessoal. Foi bonito e especial, mas em termos profissionais… bem, eu já cantava. A minha primeira atuação foi no dia 1 de março de 1999, no Casino do Estoril. Como concorri a um concurso amador, a banda onde eu tocava não achou muita graça, pois não queriam que eu concorresse e eu concorri à revelia deles e acabei por ser despedida (risos) três meses depois de começar. Não tenho mágoa nenhuma, hoje em dia compreendo, mas eu ainda tinha um espírito muito "empreendedor" no que diz respeito ao "mostrar-me". Estava até longe de imaginar que ganhava e que ia ser primeira página de jornal no dia seguinte.

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Daí ao primeiro álbum, Sentidos, em 2006, como é que tudo aconteceu?

Quando surge o convite para gravar, em 2003, eu não tinha grande coisa para dizer, não tinha repertório. Cantava tudo o que aparecia, é um percurso que eu acho que é natural para a maior parte dos músicos. Sem expectativas. Fiz musicais, fiz cruzeiros… Só quando surge o convite é que pensei que tinha de tomar uma decisão: não podia gravar um disco com o Corcovado do Tom Jobim e com o I Will Always Love You da Whitney Houston. É ai que começo a ganhar consciência da minha paixão pela língua portuguesa, e começo a perceber que se tivesse que gravar um disco e ter uma mensagem, essa seria a minha identidade. Mas todo esse percurso serviu para me fazer crescer como intérprete e como cantora de palco.

Entre várias colaborações, em 2009, a convite de Boy George, cantou o tema Amazing Grace. Pode contar essa experiência?

Foi inusitada, digamos. Recordo-me que quando a minha editora me ligou, e me disse que o Boy George queria gravar comigo, pensei que estava a brincar. Era uma figura que tinha um grande impacto na música pop, nos anos oitenta e noventa. Quando regressou, após um período de afastamento, as cantoras étnicas e a worldmusic estavam a começar a estar na moda, e era recorrente este tipo de colaboração. O que aconteceu, com certeza, foi que ele fez uma pequena pesquisa: começou no A (risos). Ao telefone, recordo-me de ele dizer que me escolheu "porque a minha voz era sublime, parecia um anjo." Na altura retive essas palavras, para compor a minha parte da letra na música Amazing Grace.

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Como é que o fado era visto há 20 anos lá fora, e o que é que mudou entretanto, para além do reconhecimento por parte da UNESCO?

Eu não me considero fadista. Um dos motivos que me faz afirmar que não sou fadista é ter o maior respeito por quem é, e porque compreendo o modus operandis e sei como funciona aquela doutrina. Cantar fado e viver do fado é muito mais do que fazer música, é uma forma de estar na vida, é uma condição com a qual eu me identifico e gosto, e que faz parte da minha matriz, mas eu nunca o pratiquei só na sua vertente tradicional. Para mim, o fado foi sempre uma das ramificações da minha música. Para mim nunca foi tradicional nem nunca foi normal. E fui muito criticada precisamente por ter esta abordagem. Eu acho que ninguém pode não ter respeito pelas circunstâncias de cada um. Cada um tem a sua vida, o seu crescimento, os seus caminhos, e se for preciso resumi-los num disco, todos temos essa legitimidade.

Que nomes vieram, então, transformar o fado?

O que eu sinto é que há um antes e um depois de três cantoras, essencialmente na era moderna. A Dulce Pontes, na minha geração, que traz muita gente para o fado e que leva muita gente a fazer experiências fora da guitarra e da viola. Depois a Mariza, que transformou o fado numa "cena" pop, que pula em palco como se estivesse num concerto de rock. A Mariza tem uma postura pop na abordagem ao fado, e que trouxe muita gente nova ao fado, e muito público mais jovem para o fado, arriscando largo. Depois a Ana Moura, que veio com o Desfado, em que ela desconstrói completamente o fado tradicional transportando-o para o pop e para aquilo que era as suas raízes (afinal, ela teve bandas de rock antes de cantar só fado). Estes três momentos são essenciais para catapultar o fado para o mainstream e para torna-lo mais universal, mais global.

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No último disco, Portucalis, em 2017, reforça a ligação às suas raízes. É possível cantar o fado sem sentir-se portuguesa? Como é que se sente, ao ser fiel a esta identidade, ao longo de 20 anos?

O que eu sinto, e às vezes gostava de não sentir, é que estou presa a esta missão. Isto é, as minhas convicções como portuguesa e que definem o meu caminho – todos os meus objetivos passam por fazer música cantada em português, por revisitar as nossas raízes etnográficas, transportá-las para o século XXI, com uma abordagem mais moderna – levam-me a perguntar muitas vezes se isto em que eu acredito fará assim tanto sentido. Questiono-me, mas não consigo fugir disto. É muito mais forte do que eu. Já existiram situações em que tomei consciência de que perdi grandes oportunidades comercialmente falando, por não conseguir abdicar disto.

Isso aconteceu muitas vezes?

Nunca falei disto, mas vou contar. Em 2006, quando o primeiro disco saiu, eu fui a Inglaterra a uma reunião com a Sony Music internacional. Eles queriam falar comigo sobre uma possibilidade colaboração num projeto em que precisavam de uma cantora pop, mas tudo teria de ser cantado em inglês. Eu já tinha gravado um disco. Pensei muito, sobretudo sobre se estava a deixar passar uma oportunidade de vida (se calhar perdi, comercialmente falando) mas não consegui. E desde então, esse peso carrego-o comigo. Se eu abdiquei talvez da grande oportunidade da minha vida por causa das minhas convicções, agora vou ter que defende-las de verdade.

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Isso é muito bonito…

Essa integridade é a coisa mais importante da minha vida, da qual eu não abdico. Mesmo que isso me custe o tal lugar, o tal "spot", e 300 concertos por ano. Tenho realmente fé, e a prova – 20 anos depois – é que muito lentamente as coisas vão acontecendo. Tenho imenso orgulho nisso (...) e tenho sempre presente esta máxima, talvez por que venho do campo: há sempre couves para plantar. Não vou um dia chegar à minha velhice e pensar que me vendi por fama, por visibilidade, isso sempre esteve fora de questão. Vinte anos depois e aos 40 anos, penso já ter alguma legitimidade em afirmar isso.

Celebra, no concerto de dia 31 de janeiro, essas conquistas. Quis juntar nomes como Mafalda Arnauth, Luís Represas ou Ivan Lins. Que peso tiveram estes artistas no seu percurso?

Custa-me muito não ter outros, ainda. Escolhi, com muita dificuldade, estes oito nomes porque fazem parte de momentos muito especiais da minha vida. O Ivan Lins era o meu maior sonho desde sempre. Em 2005, fui ver um concerto dele e pensei que seria o máximo cantar com aquele homem mas que isso nunca iria acontecer. Lembro-me que nessa altura consegui o seu e-mail, escrevi-lhe a pedir uma canção para o meu primeiro disco. Obviamente respondeu-me meses depois a pedir desculpa, por causa das imensas solicitações. Quis o destino que dez anos depois, o próprio, depois de ter colaborado comigo em 2015, me oferecesse uma canção sem imaginar que eu era aquela miúda a quem ele respondeu que não tinha tempo. A Mafalda Arnauth é uma das minhas melhores amigas, e eu costumo dizer que ela me conhece por dentro e por fora, por todos os prismas, e é uma mulher que, na minha opinião, faz muita falta à cultura portuguesa. O Silvestre Fonseca é guitarrista de música clássica, e eu queria ter pessoas fora da caixa. O Fernando Pereira, "o imitador", talvez seja a escolha mais inusitada de todos. O outro Fernando Pereira (trovador), porque há dois, é, talvez, a pessoa mais importante dos últimos dez anos, pois foi com ele – na Taverna dos Trovadores – que eu fiz muito "laboratório" na minha música. As Adufeiras da Idanha-A-Nova e o Grupo de Cantares de Évora são a representação da etnografia, são a ruralidade do campo versus o glamour do Casino, todos no mesmo sítio.

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*O concerto tem uma vertente solidária e de retribuição à comunidade, pelo que 10% do valor de bilheteira reverte diretamente para a Re-food de Cascais.

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