Adriana Calcanhotto: "Vejo as mulheres a falar o que têm a falar, do jeito que têm que falar. Sinto que valeu a pena"
Em conversa com a 'Máxima' , Adriana Calcanhotto recorda a sua infância musical, o amor pelo fado e o contexto político no Brasil, entre outras coisas.
Foto: Murilo Alvesso31 de maio de 2019 às 16:51 Rita Silva Avelar
Adriana Calcanhotto é detentora de uma das mais doces vozes do Brasil e é também uma das autoras com as composições mais bonitas, em si carregadas de significado. Filha de pai músico e mãe bailarina, Adriana cresceu rodeada de sons que vinham de vários cantos da casa, de géneros muito distintos. Com uma ligação forte a Portugal e a dar aulas em Coimbra, a artista acaba de fechar uma trilogia dedicada ao mar que se iniciou em Marítimo (1998) seguiu para Maré (2008) e que agora encerra com o disco de originais Margem. O novo álbum é apresentado ao vivo em Portugal a 16 de novembro no Tivoli BBVA, em Lisboa, e a 19 de novembro na Casa da Música, no Porto. Conversámos com a artista num fim de tarde em Lisboa, na recém-inaugurada Livraria da Travessa, no número 48 da rua da Escola Politécnica, em Lisboa.
Todas as coisas normais, desde veterinária a arquitecta, designer, tenista ou astronauta.
Houve algum dia em que não se ouvisse música, em sua casa?
Na minha casa sempre tinha música. O meu pai já era músico, a minha mãe já era bailarina,e eu não tenho memória de ter tido uma reacção impactante com a música, de dizer "oh, que é isso, que é a música?". Eu achava, até, que em todas as casas era assim, que havia uma bateria e todos esses instrumentos. Havia música que se produzia em minha casa (o meu pai tocava em dois conjuntos), a música que se ouvia em vinil, de reggae à música erudita, e a música que as babás e as empregadas ouviam na rádio popular. E tenho também a memória de ouvir a rádio, no carro. Na adolescência descobri os autores brasileiros mais ligados à palavra, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, o Luís Melodia. Fiquei com um espectro bastante aberto. E foi por causa desses autores que a minha relação com a música mudou um pouco. Aos seis anos ganhei um violão de presente de aniversário da minha avó e foi a primeira vez que senti a música da perspectiva de tocar - e não ouvir. Antes, sentava-me no chão da garagem a ouvir as bandas do meu pai mas não tinha o ímpeto de tocar. Quando ganhei esse violão, o pacote era o violão e as aulas, por isso aprendi a fazer acordes.
Daí até à fase de compor, como é que tudo aconteceu?
Até começar a compor, isso foi algo que ia e vinha. Ia inventando umas canções que podia cantar… Até que chegou um momento em que tive um surto de ficar tocando, e tocando… então, no meu aniversário de 15 anos, pedi um violão maior. Fiz uma safra grande de canções, compunha sem parar.
Como sentiu a mudança na indústria da música brasileira, ao longo dos anos?
Acho que se ganhou a possibilidade de produzir música com mais facilidade. Hoje fazem-se discos no laptop, no quarto. Antes era tudo muito mitificado, os estudos eram muito caros e era uma atividade extremamente masculina. Eram os homens que tocavam, que produziam, que assistiam, que eram diretores das gravadoras. Hoje as meninas são engenheiras, tocam percussão, compositoras. Isso aconteceu muito devagar. Foi mais o que se ganhou do que se perdeu.
Num mundo masculinizado, sentiu dificuldade em ganhar um lugar ao sol?
Foi difícil porque às vezes eles viram "clube do bolinha" [programa de auditório brasileiro onde eram revelados novos talentos na música]. Eu fui aprendendo a mexer com softwares de música, observando. Hoje não é assim, mas antes, quando pedíamos uma explicação, diziam: "Mas você é uma mulher, como assim você quer saber?" Eu fui observando, aprendendo sozinha. Era difícil porque, por exemplo, eu era uma mulher a fazer um disco no meio de 35 homens. Uma mulher muito importante que abriu caminhos foi a Marisa Monte. Era compositora, era dona dos próprios sonogramas e abriu caminhos para a nossa geração.
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No ano passado revisitou um espectáculo que tinha feito a primeira vez com 19 anos. Porquê voltar ao A Mulher do Pau Brasil?
Eu quis revisitar esse espectáculo porque quando ele foi feito em Portalegre, antes de eu ir para o Rio de Janeiro, antes de me tornar uma artista conhecida nacionalmente, antes da minha discografia. Mas ele representa uma coisa essencial na minha trajetória, na minha matriz artística. Quando eu cheguei a Coimbra, eu achei uma pena que só 300 pessoas tivessem visto aquilo que era tão revelador daquilo que eu fazia.
O que é que a maturidade enquanto artista lhe deu neste novo disco, Margem?
Eu não sabia, quando eu estabeleci a trilogia, se eu faria um terceiro disco. Ainda pensei deixar incompleta, talvez ficasse mais misterioso. Quando eu finalizei o Maré, o segundo, este disco começou a brotar. Veio esse nome, e a partir do momento que tem um nome, ele existe. Começou dessa forma com o privilégio de não ter pressão ou compromisso, não ter prazo, não ter nada. A canção Margem demorou a fazer. O Lá lá lá a mesma coisa. Não é sempre que se tem esse privilégio. Esse é o grande lance do Margem.
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Sente a pressão para produzir discos?
Nunca. Até tenho medo de falar (risos). Esse privilégio do esvaziamento é muito importante para mim. Um disco significa um disco mais a tournée, é todo um ciclo. Se eu não pudesse "esvaziar" daquele ciclo, a minha sensação é de que eu estaria sempre a repetir-me.
Que momentos, em palco, recorda com carinho?
É difícil dizer. Mas no Brasil, a digressão A Mulher do Pau-Brasil calhou, por acaso, na mesma altura que a campanha da eleição à presidência. Cada show que fazíamos era de uma comoção como nunca vi. O show modificava-se a cada noite (embora o alinhamento fosse sempre o mesmo) por causa das circunstâncias. A emoção era grande, dava-se uma catarse, olhava para os músicos e caiam-lhes as lágrimas. Isso foi muito marcante e irrepetível.
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O que é que mais gosta de fazer além da música?
Dar aulas em Coimbra, é uma coisa maravilhosa.
Chico Buarque ganhou o Prémio Camões. Quão importante é esse reconhecimento?
Ele já podia ter ganho há muito tempo. Mas há um detalhe muito importante que é justamente este momento em que ele ganha este prémio. Pelo momento político no Brasil.
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O que é que mais gosta na cultura portuguesa?
O fado, que é uma coisa, e a Amália - que é algo extra-fado. Existe um género musical que é o fado, e existe um género musical chamado Amália Rodrigues. É de uma coragem, cantar a tristeza, e eu gosto tanto do som da guitarra portuguesa que na minha gravação original da música Esquadros tem uma guitarra portuguesa tocada por um músico brasileiro, agora eu tenho esse instrumento tocado por um português. Já não tem nada que eu faça que não tenha Portugal contido, dado o meu diálogo com Portugal.
Há cada vez mais ativismo também na música?
Tanto em Portugal como no Brasil, devido aos tempos sombrios, havia um pouco medo. Depois de muita censura, de repente podia-se falar e as pessoas não sabiam o que fazer com isso. Acho que o rap e o hip hop estão tomando conta desses espaços de uma maneira extraordinária, porque não têm essa preocupação de ser sintéticos, dizem o que têm muito a dizer. Assim têm sido produzidas coisas muito importantes. Não há malabarismos melódicos.
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Quem são as suas referências musicais, hoje em dia, no sentido da palavra?
Os Racionais MC's são uma banda que me toca. Quando eu comecei, que não foi assim há tanto tempo, estava em estúdio no meio de um bando de homens que achavam que eram donos de tudo. E agora vejo as mulheres a falar o que têm a falar, do jeito que têm que falar. Isso dá-me um sossego, até uma sensação de que valeu a pena. Isso é muito bom.
Estamos numa livraria [a Travessa] que é que está a ler agora?
A Odisseia de Homero, traduzida por Frederico Lourenço e com notas.