Adilia Lopes (1960-2024). A poetisa da liberdade e do desassombro

Durante muito tempo classificada na categoria de "poetisa pop" ou naïf, Adília Lopes foi, afinal, uma voz singular na poesia portuguesa. Aos 64 anos, deixa-nos uma obra cheia de ironia e inteligência.

Tinha 64 anos
31 de dezembro de 2024 às 12:53 Maria João Martins

A crítica literária, perplexa com o seu desassombro, começou por lhe chamar poeta-kitsch ou poeta pop, entre outros epítetos menos generosos, habitualmente atribuídos às mulheres que ousam subverter a ordem das coisas. Mas Adília Lopes, a poetisa, que morreu esta segunda-feira, em Lisboa, aos 64 anos, vítima de cancro, não se deu por vencida, seguiu em frente, construindo uma obra de enorme singularidade no âmbito da poesia portuguesa contemporânea.

Lembro-me que, em meados dos anos 1990, cheguei à poesia de Adília (há muito que ela tinha direito a ser definida apenas pelo nome próprio, que era, afinal, um pseudónimo) por recomendação do Ricardo Araújo Pereira, na altura estagiário do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, onde eu trabalhava. E o Ricardo estava cheio de razão: a Adília era um fenómeno raro e fulgurante, diferente de tudo o que conhecíamos. Alguém capaz de ser erudito e desconcertante, simplista só à superfície, alguém que se definia como "Eu sou 8 ou sou 80. É uma das coisas mais acertadas que há a dizer sobre mim" (no livro Manhã, publicado em 2015).

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Adília, na verdade, Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira nasceu em Lisboa, a 20 de abril de 1960. Era filha de uma bióloga assistente de Botânica na Faculdade de Ciências de Lisboa e de um professor do ensino secundário. Ela própria estudou Física, curso que não conclui, e depois Literatura e Linguística Portuguesa e Francesa, mas os estudos hão-se ser sempre perturbados por uma situação de psicose esquizo-afetiva, de que sempre falou abertamente, fosse na sua poesia, crónicas, conferências ou entrevistas, abandonou o curso por conselho médico.

Maria José tornou-se então Adília Lopes, a poetisa. Uma escolha de que falaria, anos depois, numa entrevista ao jornalista Carlos Vaz Marques, publicada no mítico suplemento do Diário de Notícias, DNA: "Precisava de um nome escolhido por mim e queria que tudo, na capa do meu livro, fosse escolha minha. É claro que é uma pretensão. Na vida não escolhemos tudo. Aliás, eu tenho ideia de que na vida escolhemos muito pouco."

A escrita é, desde cedo, presença diária na sua vida. Em 1983, concorre a um prémio de prosa da Associação Portuguesa de Escritores e envia poemas para a Assírio & Alvim, que inclui dois deles no seu Anuário de Poetas não Publicados de 1984. O primeiro livro, Um jogo bastante perigoso, sairá em 1985. Seguir-se-ão O Poeta de Pondichéry (1986), a sua obra mais traduzida, baseada numa enigmática personagem de Jacques le fataliste, de Diderot, e O decote da dama de espadas (1988), que compila poemas escritos entre1983 e 1987, já com grandes louvores da crítica. Terminada a licenciatura, foi bolseira do Instituto Nacional de Investigação Científica (1989-1992), tendo trabalhado no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Mais tarde, especializar-se-ia em Ciências Documentais na Faculdade de Letras de Lisboa, tendo trabalhado nos espólios literários de Fernando Pessoa e José Blanc de Portugal, que era seu padrinho de batismo.

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Por essa época, meados da década de 1990, já a obra de Adília dava que falar nos meios literários e jornalísticos. Quem era esta mulher, que até preferia ser apelidada de "poetisa", quando a academia e o jornalismo cultural denegriam o termo, preferindo dizer "a poeta", como várias vezes testemunhei enquanto jornalista do JL. Adília conquista o seu público, mas é um "objeto" não identificado que a crítica e a academia não conseguem arrumar. Permanece um mistério, como escreve, com prosa certeira, Carlos Vaz Marques, na já referida entrevista para o DNA: "Adília Lopes é um caso na poesia portuguesa. Há a poetisa (ela não quer que se diga poeta) e a personagem. Uma e outra desconcertantes. Encontro-me com ela nos jardins da Gulbenkian para tentar desvendar o mistério Adília; na expectativa de descobrir se entre a personagem, aparentemente ingénua, e os versos, frequentemente perversos, há coincidência possível."

Em 1999, trabalha para teatro, com a companhia de teatro Sensurround, de Lúcia Sigalho, um espectáculo baseado em textos seus, intitulado A Birra da Viva. No ano seguinte, acontece aquilo a que podemos chamar a consagração, com o livro Obra, que reúne poemas dos quinze livros de poesia publicados até então, com ilustrações de Paula Rego. Em declarações à imprensa, a pintora mostrou-se agradavelmente surpreendida com a poesia de Adília: «Fizeram-me logo lembrar a minha juventude, com as criadas, as bonecas, as mães ultraprotetoras. Adília Lopes é de um grande romantismo e ao mesmo tempo de um grotesco e de um cómico transbordantes.» Grata, Adília traduziu para português Nursery Rhymes, um álbum de gravuras de Paula Rego inspiradas nas tradicionais rimas infantis inglesas.

As afinidades entre as duas criadoras são notórias. No mundo ímpar de Adília (onde as principais influências literárias assumidas são Sophia de Mello Breyner Andresen, Ruy Belo, Nuno Bragança, mas também Enid Blyton, Roland Barthes ou Emily Brontë), como no de Paula Rego, não faltam os temas do quotidiano, principalmente femininos e domésticos, a crueldade do amor e do desamor, o desassombro, a candura, a ironia, a auto-ironia também, e o desalento. Católica praticante, Adília apresentava-se às vezes como uma «freira poetisa barroca».

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Com uma linguagem, só na aparência naïf e coloquial, Adília falou da depressão, que várias vezes a cercou: "E eu gostava de chorar a fio/e chorava/sem um desgosto sem uma dor sem um lenço/sem uma lágrima/fechada à chave na casa de banho/da casa da minha avó/onde além de mim só estava eu." Mas também do amor volátil e cruel como uma chama: "Os amantes fecham-se um no outro/ (como os punhos do bebé/ que dorme /no berço/ e no útero da mãe /como as caras /dos ícones/no escuro/das igrejas". Ou ainda: "Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia como era bonita./Quando era bonita, as pessoas diziam-lhe:- Eu amo-te./E iam com ela para a cama e para a mesa./Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:- Não gosto de ti."

Foto: DR

Num post de Facebook, o escritor e professor universitário Rui Zink reagiu desta forma à morte de Adília Lopes: "A minha geração está a dar o badagaio um bocadinho depressa de mais. A Adília era boa pessoa? Não estou seguro disso. Mobilava muito bem as nossas cabeças, isso sim. Era, em Portugal, a poeta do metapoema. Foi feliz? Também não estou seguro disso. Quantos amigos teria? Que vida era a sua? Gostava da vida que tinha? Quantos dos poemas, mesmo os autobiográficos de brincadeira, eram mesmo autobiográficos? E isso importa? Parece humor morrer nos 500 anos de Camões, pois talvez tenha sido ela (e não o Pessoa) o verdadeiro Super-Camões. E doravante com que gatos vão brincar as suas baratas?"

Adília acreditava, como diz num poema, "na ressurreição de livros/e que no Céu há bibliotecas onde e se possa ler e escrever." Que assim seja.

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