Aborto espontâneo: o que sente quem deixa de sentir o seu bebé?

A perda é real. Mas a dor, tantas vezes esquecida, de quem passa por esta fatalidade, também. No âmbito da notícia que comoveu a Internet — a perda do filho do casal de celebridades, Chrissy Teigen e John Legend —, a Máxima quis entender qual o nível de sofrimento que se esconde por detrás de um aborto espontâneo — e de como o ultrapassar.

Foto: Instagram de @chrissyteigen
02 de outubro de 2020 às 15:58 Pureza Fleming

Na passada quinta-feira, 1, a Internet comoveu-se com a devastadora notícia de que a modelo e autora do livro de cozinha, Cravings (2016), Chrissy Teigen e o seu marido, o músico John Legend, haviam perdido aquele que seria o terceiro filho do casal, devido a complicações no parto."Estamos chocados e a sentir o tipo de dor que só ouvimos falar, o tipo de dor que nunca sentimos antes", começou por escrever, na sua conta de Instagram e de Twitter, a modelo. Aos 34 anos, Teigen, junta-se a uma longa lista de celebridades que têm vindo, ao longo dos últimos anos, a quebrar o tabu social, que é falar-se acerca do (incómodo) tema que pode ser o aborto espontâneo.

Recordemos a antiga primeira-dama dos Estados Unidos, Michelle Obama, que desabafou, no seu livro autobiográfico, Becoming — A Minha História (2018), ter-se sentido "perdida e sozinha" quando, aos 35 anos, sofreu um aborto espontâneo. E onde mantinha: "Senti que tinha falhado, porque não sabia que os abortos espontâneos eram tão comuns, já que ninguém falava disso. Essa é uma das razões pelas quais acredito que é importante falar com as mães jovens acerca do motivo pelo qual ocorrem os abortos espontâneos". Um estudo levado a cabo, em 2018, revelou que a ocorrência de abortos espontâneos é mais comum do que, à partida, se poderia pensar – mesmo para as mulheres que os têm. Aquele estudo científico apurou que mais de metade das fertilizações resulta em aborto. A pesquisa, da autoria do geneticista, William Richard Rice, da Universidade da California, Santa Barbara, nos Estados Unidos, baseou-se em dezenas de estudos anteriores, mas também em dados hospitalares analisados ao longo de várias décadas. Pesquisas anteriores apuraram que algures entre 10 a 20%, ou tantas quanto uma em cada quatro gravidezes, acabam em aborto espontâneo.

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A aceitação como um dos caminhos a adotar

Tinha 34 anos quando passou, não por um, mas por dois abortos espontâneos. Na realidade, e já iremos entender porquê, foram três: "Comecei por ter um desmanche, tinha a minha filha mais velha, Madalena, dez meses. Naquela altura, estava com cerca de dez semanas de gestação. Dois meses imediatamente após esse aborto espontâneo, voltei a engravidar. Dessa vez de gémeos", conta à Máxima, Inês Durão, 47 anos, Gestora Comercial. Explica que, na sua situação, a médica já havia apontado para a possibilidade de um desmanche: "A minha avó perdeu, por duas vezes, gémeos. A minha tia, também. Então, na minha geração, já havia uma tendência genética para gémeos — e para a devida possibilidade de os ‘perder‘, ainda na barriga". Embora os bebés estivessem, aparentemente, "ótimos", a médica aconselhou repouso, uma vez que "tinha pouco espaço dentro de mim para que ambos se desenvolvessem ‘direito’". Foi, nesse instante, que a falta de humanidade — ou, digamos antes, a total ausência de sensibilidade — por parte do seu patrão, se revelou crucial para que tudo corresse mal: "Ele [o patrão] disse-me que, se eu ficasse em casa, seria melhor começar a pensar em ficar em casa de vez. Entrei em pânico [com aquela ameaça] mas, uma vez que estava a trabalhar em vendas, arrisquei fazer aquelas vendas até ao fim". Recorda-se de ir trabalhar com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto, uma vez que começava a sentir certas contrações, numa altura em que ainda não era suposto. No último dia de vendas — que seria o dia exato em que encerraria a porta do escritório para, enfim, se dedicar à tranquilidade necessária para uma gravidez bem sucedida — começa a sentir umas dores fora do normal. Inês, seguiu para casa, e ligou à sua médica — que a aconselhou repouso absoluto até ao dia seguinte, altura em que a médica já a veria, no seu consultório. E foi, durante essa noite, que o temido aconteceu: "Já estava de cinco meses. Acordei com uma sensação estranha e percebi que as águas tinham rebentado. Fui até à casa de banho fazer xixi e comecei, naquele exato momento, a fazer o parto do primeiro bebéolhei para a retrete e vi o bebé", narra com força suficiente na sua voz. E continua: "O meu marido começou a vomitar, de nervos, e pretendia puxar o autoclismo para eu não ver o bebé que, no entanto, estava preso a mim pelo cordão umbilical. Ligámos para o 112 e apareceram-me oito médicos em casa. Os enfermeiros puseram o bebé numa maca ao pé de mim, pois não podiam cortar cordão umbilical, e dali seguimos para o hospital para que nascesse o segundo". Questiono, mais uma vez e tal como perguntei logo no início desta conversa, se lhe era possível falar acerca deste tema com alguma tranquilidade — ainda que o tom da sua voz me fosse confirmando que sim. Inês mantém, assim, a conversa, com a mesma serenidade a ecoar de dentro de si: "[Naquele dia, no hospital], tive de acalmar (também) a minha mãe, que não parava de chorar. Tive a frieza para lhe pedir que tivesse calma. Dizia-lhe: ‘Pode ser que o segundo [gémeo] sobreviva; que tudo corra bem com o segundo’". E não correu. Flashback para aquele dia, naquele hospital situado na cidade do Porto, com todo o tipo de dores que pode caber dentro de um ser humano, e ainda sem os bebés nos braços, a pergunta que lhe faço é: "Qual é a sensação desse vazio que é, em simultâneo, físico e emocional?". Relata uma "mistura de sentimentos". E relembra a frase que uma grande amiga, mais velha e, talvez por isso, com maior sabedoria, lhe transmitiu naquele penoso momento: "Que, provavelmente, Deus me tinha escolhido, e ao [meu marido] Afonso, para ser pais de dois bebés que só tinham precisado daqueles escassos momentos na terra, para se transformarem em anjinhos. E que, esses anjinhos, iriam ser os nossos protetores, para sempre. Hoje, sinto que tenho essa proteção, esse anjinhos que olham pela nossa família". Para Inês, a fé foi a sua grande bengala: "Na altura, quis acreditar que aquilo não tinha acontecido por acaso. Que, talvez, naquele momento da minha vida, eu não tivesse a capacidade de ter dois bebés ao mesmo tempo. Que nada era por acaso, que tinha de ser", expõe com extrema placidez. Já para o seu marido, Afonso, o desgosto não foi tão bem digerido: "Ele é mais frágil do que eu, nestas coisas. Durante três ou quatro anos, sempre que se falava neste tópico, ele começava a chorar. Mesmo hoje, se o tema vem à superfície, ele prefere mudar de assunto".

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Dois anos depois , a vida deu a este casal uma nova oportunidade de conceber uma nova vida — passe a redundância. A Constança, que acabaria por nascer com 31 semanas e com um quilo e 590 gramas, nasceria prematura, porém sem mazela nenhuma. Recorda Inês que, apesar da recém-nascida, Constança, ter tido de ser internada por precaução, tudo acabaria por correr bem — "hoje com nove anos é uma criança mais do que saudável", assegura. E, atribui aos gémeos, "os anjos protetores lá de casa", essa ventura. No seu testemunho, Inês Durão demonstra, por mais de uma vez, a pujança feminina. Comprova também que o dito popular que defende que "por detrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher" não poderia ser mais justo. Na realidade, e feminismos à parte, até podia. Bastava dizermos que, por detrás de uma bem digerida fatalidade, está sempre uma mulher de armas — dúvidas ainda as houvesse.

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