Nós, os que outros chamam de sonhadores, pensámos ingénuos que a pandemia, a guerra e a vida a complicar-se na antecipação de uma crise acordariam em nós algum existencialismo e humildade - talvez ficássemos mais conscientes da insignificância que ocupamos no universo. E, quem sabe, ganhássemos um maior sentido do humano, do outro, que o salto tecnológico complicou na sua falsa ideia de proximidade, tornando o sentido de comunidade numa noção mais filosófica do que real. Mas sem a comunidade somos e fazemos pouco. Só que ninguém se transforma no que não é. E agora parecemos acordar de um longo sono tão virados do avesso, e com tantas horas de derrota enfiadas dentro de calças de fato de treino, que não conseguimos evitar a nossa própria evidência imperfeita. Mas também não conseguimos evitar a esperança.
A superficialização da sociedade, ajudada pela pressa em que vivemos e por esta cultura vazia do consumo e do império do efémero, como lhe chamou Gilles Lipovetsky, deixa pouco espaço para o diálogo inteligente. Até nas coisas pequenas: vemos, sozinhos, séries em série em vez de irmos ao cinema e depois partilhar as ideias do filme; comentamos um post de aniversário em vez de ligarmos a dar os parabéns. Nem se sabem de cor as datas de aniversário dos amigos, quanto mais os números de telefone. Viva a maquilhagem das redes sociais que foi inventada para todos parecermos óptimos e felizes, melhores do que somos, e mais perto do que gostávamos de ser, só que a artificialidade revela-se um dia. Se o postiço e o show off nunca fizeram mal a ninguém, haja público, os wanna be someone, o que quer que isso signifique, até são esforçados e isso é uma forma de amor, mesmo que seja apenas próprio – o grande problema é a altivez imediatista e intolerante que facilmente se torna amarga, vulgar, primária. O que mais assusta é a irracionalidade das massas, que levam tudo à frente, indistintamente, por isso é varrer à bruta, pisar e queimar sem dó nem piedade, como só as multidões.
Depois existem os gremlins que saem de dentro de alguns de nós quando comentam no Facebook, o espaço dos velhos do Restelo e dos zangados. É como no trânsito, aqueles momentos de ensimesmamento protegido, ainda que rodeado de outros, que é quando nos armamos em espertos, sem medir o tamanho das emoções, e das ilusões que aquelas espelham, sem medir o enlevo, nem a boçalidade, nem as consequências. Freud explicaria isto. Em alguns casos, o Facebook tornou-se numa arena de maldade pura, gratuita, rasteira, um lugar onde se despeja a solidão, a frustração, a raiva e a vingançazinha, a inveja e o ressentimento, umas vezes mais contra a própria vida, que não se contenta, outras apontadas certeiramente ao desgraçado em que se resolve bater. E foi o que aconteceu, nas últimas semanas, com um amigo jornalista enredado numa acusação de plágio, que se veio a provar, mas que se amplificou de uma forma absurda e delirante. O Vítor sempre foi dos bons, dos que têm sentido de missão, ajudam a pensar e a perceber. Para um jornalista, que será sempre um autor e uma voz, ainda mais quando assina crónicas, o plágio é o maior dos pecados, uma trave mestra do código deontológico. A falta de umas aspas pode crucificar uma reputação. É caso para dizer: se no melhor pano cai a nódoa, quem não tem telhados de vidro? Mas por muito bom e dedicado que sejas, e ele é, por muito que estejas anos do lado certo da vida e a passar a mensagem do humano e da modernidade, um erro parece querer destruir tudo. "Find what you love and let it kill you", dizia o Bukowski. Foi repreendido pelo jornal depois da denúncia de uma leitora (nem por acaso uma antiga jornalista), abandonou a sua crónica e pediu desculpas, inclusive ao autor das frases que usou, um cronista de um jornal espanhol que até gracejou: agora é que passaria a ser conhecido em Portugal. Mas não chegou para os sanguinários do Facebook, desertos para serem ouvidos só descansam na execução pública. Sim, como antes da civilização e antes da carta dos Direitos Humanos.
Nada contra a intensidade e as reacções apaixonadas, que até escasseiam na passiva sociedade portuguesa, sempre com medo do que os outros vão pensar e dizer, tão afastada da frontalidade e do debate público mais profundo e abrangente. O que me faz confusão é nunca ter ouvido estas vozes antes sobre o que realmente interessa: o estado do jornalismo. Nunca os ouvi ou li revoltados, e se é um tema que me é caro desde que acabei o curso de Comunicação Social. Todos têm opiniões sobre os jornalistas, até nas bravatas de café e com o dedo apontado à televisão: os males do mundo? A culpa é dos jornalistas que estão a criar toda esta situação. É como se fossemos uma espécie de celebridades (bom, se trabalharmos nas áreas da moda e das artes e do lifestyle, então, somos o alvo da maior cobiça), mas das que trabalham muito.
Ninguém comenta o trabalho dos porteiros, dos professores ou dos gestores (bom, a menos que enriqueçam ilicitamente, mas mesmo assim), nem dos engenheiros, dos juristas, dos designers ou dos biólogos. Agora os jornalistas são como os políticos, um alvo fácil: todos uns malandros. Não oiço ninguém reparar no seu trabalho exigente, desgastante, tão mal pago, apesar de intelectual e elaborado, tão inglório nos dias que correm, onde todos parecem ter uma opinião, mesmo que esta ainda não esteja formada, neste tempo onde se multiplicam os profetas da desgraça e as fake news. Não, a opinião desta gente é para matar um jornalista com quem se embirra, não para discutir de forma leal um sistema perverso, que esvaziou as redacções e baixou os ordenados, por isso escorraçou as gerações experientes resultando em ligeireza e fraca memória histórica e cultura geral. O jornalismo de secretária, sem pesquisa nem mundo, mal pago na subserviência dos recibos verdes, sem vida pessoal, nem meritocracia. Contra isso nunca há falatório ou indignação generalizada. E podíamos falar de outras profissões de vocação e abnegação como os médicos mal tratados pelo SNS ou os professores que mandam menos do que os alunos. Profissões fundamentais para o conhecimento, para a saúde, para a democracia, para a liberdade.
Não, vamos "fulanizar", uma coisa tão nacional, culpar um pelos males de todos, em vez de construir. O plágio é grave? É. Merecia uma chacina? Não. A velha expressão "bestial a besta" encaixa na perfeição na cobardia da internet, onde tudo parece valer o mesmo e onde quem copia quem? Num mundo que se abre e contagia feito de transversalidades, encontros culturais e identitários - quem copia quem? E seremos todos perfeitos nas nossas profissões invisíveis, nas nossas vidas?
Neste mundo, que parece andar para trás, o melhor que temos a fazer é discutir uns com os outros em vez de construir? Na base deste retrocesso, do regresso das ditaduras ocidentais, ao regresso dos taliban do Afeganistão, vamos continuar a acelerar na faixa da intolerância? Vamos voltar à praça do pelourinho onde se penduravam os desgraçados, culpados ou não, por muito ou por nada? É maldade gratuita a latejar numas redes sociais que se vão esvaziando até restar apenas um um scroll entediado nos tempos mortos do dia. O Facebook está como aquelas festas onde já não se aprende nada, onde sobram apenas os protagonistas e os lunáticos, os inebriados e os sós.