Meados de março, segunda-feira de manhã, primeiro dia de teletrabalho e isolamento social. Janela aberta, vista para o Tejo, despensa e frigorífico abastecidos, mesa da sala limpa, vazia e transformada em posto de redação improvisado, sala luminosa e casa em silêncio. Tudo a postos para uma sequência de semanas diferentes, mas promissoras. Sozinha. Ao fim da primeira semana o sucesso é uma realidade distante e muitas arestas precisam de ser limadas: trabalhar em casa exige disciplina e o trabalho, as lides domésticas e os momentos de lazer lutam por um espaço na agenda. Ao fim da segunda semana a gestão do tempo passa a ser uma realidade alcançável (mas ainda não concretizada) e o exercício físico revela-se uma agradável descoberta (para o corpo e para a mente). Ao fim da terceira semana já se conhecem os hábitos dos vizinhos, e o que antes eram desafios de paciência, como crianças a jogar futebol em casa e ouvir o telejornal da noite na casa ao lado através da parede, passam a ser rotinas. E até fazer aniversário nestas circunstâncias passa de tristeza a nova experiência, sem presentes, mas com um jantar de família à moda das novas tecnologias.
Por ordens governamentais, Portugal, tal como outros países, mergulhou num recolhimento obrigatório que assegura apenas o comércio de bens essenciais e saídas de casa para raras exceções. E as tecnologias apressaram-se a desenvolver respostas para as novas necessidades, tornando-se uma janela para o mundo e para o convívio fora de casa. Por isso mesmo, Conceição Nobre, psicóloga e psicoterapeuta da Ph+ Desenvolvimento de Potencial Humano, explica que este isolamento tem consequências tanto para quem está sozinho como acompanhado. A diferença está na capacidade e possibilidade de lidar com as tecnologias que nos permitem aproximar à distância e, neste caso, a idade avançada ou o local onde se vive podem ser fatores determinantes. Por mais agitado que seja o dia e se criem rotinas, a ideia de ver a situação de isolamento prolongar-se durante semanas causa, por vezes, momentos de pausa que requerem uma ida à janela para respirar bem fundo. Afinal somos seres sociais e a aprendizagem no crescimento é feita desde cedo para sabermos estar com os outros. Talvez por isso este isolamento pareça tão contranatura. Será que com companhia toda esta fase é mais fácil? Será possível coabitar um mesmo espaço sem atritos ou conflitos em excesso? E pode viver-se isso de um modo feliz? Com as medidas de isolamento e a aposta em teletrabalho muitos casais acabaram a passar as 24 horas do dia em casa, juntando a vida profissional à vida pessoal no mesmo espaço e sem possibilidade de escolha. Para quem prefere separar as duas esferas e tirar partido dessa separação, a mudança radical pode implicar um esforço de adaptação acrescido. Diz-nos a História que fases de recolhimento obrigatório se traduzem em baby booms cerca de nove meses mais tarde, assim como num aumento de casos de divórcio ou mesmo num agravamento de violência doméstica quando ela já existe. Para que a experiência não seja negativa, recomenda-se tirar partido da situação. É possível que se descubra uma faceta profissional com hábitos próprios na outra pessoa que, até aqui, era desconhecida e já que não se perde tempo nas deslocações porque não aproveitar a hora do almoço e o fim de tarde para namorar?
Reacender a paixão
Mi [Emília] e Tó [António] Romano partilham uma vida juntos, tanto na esfera pessoal como profissional. Casados há 22 anos, mas juntos há quase 40, pais de Afonso e de Gustavo, ambos jovens adultos, e ex-modelos, são os fundadores da agência Central Models, em 1989, a primeira agência de modelos a surgir no nosso país. Mi garante que há mais vantagens em viver e trabalhar juntos do que desvantagens e destaca o respeito mútuo como aspeto fundamental, bem como a devida separação entre a vida pessoal e a vida profissional, ainda que no seu caso nem sempre o consigam fazer. Mi Romano explica que "no aspeto profissional é uma forte vantagem a nossa partilha de ideais estéticos, de estratégia na abordagem dos mercados e o modo como nos revemos no que respeita a valores éticos, profissionais e humanos. Facilmente chegamos a consensos. Como já trabalhamos juntos na Central há 30 anos, não me consigo imaginar, agora, em empregos separados". Contudo, admite: "O peso da rotina rouba o protagonismo da paixão. É importante reacender a paixão com gestos simples que acentuam a qualidade do relacionamento." E explica que manter a satisfação no relacionamento requer um grande esforço de ambas as partes e aponta uma boa comunicação como a base do sucesso "e investir em comportamentos de afeto: carícias e atitudes empáticas". Explica: "Somos mais fortes em pequenos gestos no dia a dia do que em grandes manifestações ou declarações amorosas. A monotonia acontece só quando a pessoa é, por si só, alguém sem interesse e sem vontade. A nossa relação não é monótona porque individualmente também não o somos. Temos rotinas que adoramos fazer em conjunto e em separado, mas também é bom, por vezes, inventar, inovar, reinventar! E somos especialistas nesse capítulo." Nesta fase de isolamento social que mudou a vida a toda a gente, para Mi e Tó Romano o mesmo trouxe um novo momento na rotina que aconteceu espontaneamente e que consiste num longo abraço ao acordar. Para os casais que estão agora a experienciar uma vida em comum, 24 horas por dia, Mi garante que não deve ser fácil para quem não está habituado a isso e que cada casal terá de encontrar a sua ‘receita’. A regra deste casal é a seguinte: "Nunca alimentarmos discussões a ‘quente’! Considero que é preciso saber dar espaço ao outro, ter momentos e planos juntos, mas também cada um ter o seu espaço, os seus projetos…" Se numa situação de pandemia e isolamento todos os conselhos são bem-vindos, na vida do dia a dia normal todos eles também se podem tornar muito úteis. Quando a esta conjugação de acontecimentos improváveis se juntam as crianças e os adolescentes, o quadro fica muito mais colorido. Jimmy Kimmel, o popular apresentador norte-americano do talk show com o seu nome, está a gravar o que chama de "quarantine minilogues" diariamente a partir de sua casa. Tem dois filhos pequenos e num desses vídeos publicados no YouTube confessou já ter visto o filme Frozen 2 mais vezes do que os próprios animadores que fizeram a longa-metragem e deu graças pela existência da televisão. Mas na realidade da vasta maioria das famílias, o dia a dia não é simples e se já é difícil encontrar equilíbrio em condições normais, agora tudo se complica. Crianças e adolescentes estão a adaptar-se à realidade da escola à distância enquanto assimilam a realidade alarmante e a preocupação dos pais, e para os mais pequenos da família não há televisão e tablet que resistam a semanas a fio passadas em casa. Em resumo, todos precisam da atenção dos pais e agora com redobrada paciência. Anna Westerlund partilha a sua experiência. Tem com o ator Pedro Lima quatro filhos (Emma, de 15 anos, Mia, de nove, Max, de seis, e Clara, de três) e conta que, por estes dias, não está a ser difícil gerir uma família numerosa em isolamento, mas reconhece que a maior dificuldade é retirar tempo à tecnologia, assumindo que é também esta a forma de manter a relação com os amigos. "Temos a sorte de ter um pequeno jardim, o que ajuda, porque podemos fazer desporto, jogar à bola e às escondidas. Temos estado entretidos! Tem havido muito menos discussões entre irmãos, pois perceberam todos a necessidade de cuidarmos uns dos outros, de respeitarmos o espaço de cada um e da importância de estarmos em harmonia." A manutenção das rotinas é importante e mesmo quando são muitas as pessoas dentro da mesma casa, todos têm direito a um equilíbrio entre espaço privado e momentos de convívio, como as refeições e as atividades em família. Na casa de Anna Westerlund é assim o quotidiano: "De dia cada um tem a sua rotina, as aulas online com horários próprios, os trabalhos para entregar, etc. E a mais pequena vai brincando com quem está mais disponível." Por estes dias, a ceramista é a única que se desloca até ao seu ateliê para trabalhar, mas transforma a situação em algo positivo, como um momento de escape em que se isola com as suas cerâmicas. E confessa: "Tem até sabido bem ter o ateliê só para mim neste momento que tem sido de muita reflexão sobre a nova realidade que vamos ter de aprender a viver." De facto, que levante a mão quem ainda não deu por si a filosofar sobre a atual situação e colocando questões sobre o que virá depois?
Olhar melhor uns pelos outros
Além da família e da limitação do espaço, saber lidar com a ansiedade e as alterações de humor também é uma perícia que se aperfeiçoa por estes dias. O nosso humor segue a orientação das notícias: quando estas são positivas o humor das pessoas também o é e vice-versa. A psicóloga Conceição Nobre alerta para o cansaço e exaustão que os primeiros tempos de adaptação causaram e explica: "Com várias semanas de estado de emergência já temos novas rotinas e hábitos, já nos pacificámos com alguma desordem nas nossas casas, já aceitamos que há momentos em que naturalmente temos de decidir se nos dedicamos aos filhos ou ao trabalho e que é perfeitamente aceitável que algumas tarefas não sejam realizadas na perfeição... Já sentimos alguns dos aspetos positivos da situação de isolamento social." Contudo, alerta que o passar do tempo potenciará a vontade de sair e de socializar. Diz a sabedoria popular que tudo na vida tem um lado bom e um lado mau. A diferença entre situações está nas proporções que ambos os lados assumem. Explica a psicóloga que o afastamento que impede as pessoas de acompanhar quem está doente, conhecer quem acaba de nascer e despedir-se de quem parte deste mundo torna difícil ver a situação com um olhar otimista. Mas acrescenta alguns exemplos de aspetos positivos a retirar desta situação de crise, começando com o marido que, finalmente, aprendeu a usar a máquina de lavar roupa, e continua: "Alguém que nos diz com emoção ‘Finalmente, depois de muito cozinhar, fiz um arroz de frango delicioso’, um adolescente que partilha ‘Aprender no zoom até é fixe!’, uma avó que nos confessa emocionada como foi bonito ver toda a família em videoconferência a festejar o aniversário de um dos netos, a família que não se reunia há muito no sofá para ver um filme e que o fez num destes fins de semana, com risos, satisfação e pipocas." E deste balanço conclui: "Esta crise poderá ajudar-nos a olhar melhor uns pelos outros, sim. Só a poderemos vencer juntos, sim. Com custos elevados, também." E uma das partes da sociedade que tem pagado um preço elevado são os mais idosos. O facto de representarem o grupo de maior risco colocou-os em isolamento dentro do isolamento social (ver caixa Um problema transversal à sociedade) em contraste com uma necessidade de especial cuidado. Repensar na importância dos mais avançados na idade está a ser uma das grandes questões desta situação. Outra é a saturação de condições extremas que chegaram quase sem aviso. E as notícias avisam que a seguir a esta crise virá outra, mas diferente. O primeiro objetivo é sair do isolamento. Como será? A disponibilidade para o contacto físico com os outros não será certamente a mesma e requererá alguma adaptação. Tal como o regresso às rotinas e, em especial, ao local de trabalho porque muitas pessoas terão descoberto inúmeras vantagens no teletrabalho. Com uma data de regresso à normalidade ainda incerta, resta-nos continuar a garantir a melhor qualidade de vida possível em isolamento, sem deixar, claro, de fazer planos para o futuro, seja ele quando for. E se esse futuro for mais risonho, tanto melhor.
A vida superficial ressurgirá?
Júlio Machado Vaz continua a dar consultas através do Skype. Admite: "O que me mantém os neurónios longe de uma ‘contemplação bovina’ do ecrã televisivo." Confessa que viver sozinho há décadas lhe facilita a vida durante a semana, mas ao fim de semana a situação complica-se. "Sinto falta das tertúlias e dos abraços, da minha casa de Cantelães, onde repousam meus pais. Pelo menos para mim, os afetos perdem muita cor na tecnologia por preciosa que nos esteja a ser." O médico psiquiatra e sexólogo elucida que, mesmo que passageira, a atual situação afeta as gerações de diferentes formas, mas talvez não tiremos dela as lições necessárias.
Esta situação de isolamento é nova e, apesar de nos afetar a todos, a ansiedade será diferente em cada geração?
Do que tenho ouvido (por Skype...), os jovens estão atrapalhados para gerir uma situação completamente nova e quando há filhos e teletrabalho as dificuldades são imensas. Sem surpresa, sobretudo para as mulheres... Mas o futuro paira, ameaçador ? há trabalho ou não? Em que condições? Se não, até quando aguentamos? Ou seja: predominam sintomas ansiosos, mas não nos iludamos. Em muitos casos o stress pós-traumático ou a depressão espreitam ao virar dos meses. Os mais velhos resistem a modificar as suas rotinas e alguns já passaram por tanta coisa que experimentam um vago sentimento de impunidade. E sofrem mais com a impossibilidade de se reunirem com amigos, filhos e netos, sobretudo os que não dominam as novas tecnologias.
Vamos olhar com mais atenção e respeito para os mais velhos?
Ao nível individual, espero bem que sim. Em termos de políticas de apoio, tenho as maiores dúvidas. A desvalorização dos mais velhos tem sido uma constante das últimas décadas. Repare-se na visão que deles é apresentada ? "os idosos", como se se tratasse de um grupo homogéneo apenas definido pelos números no cartão de cidadão. Pelo contrário, os mais velhos têm trajetos de vida longos e diversos, merecem ser tratados com enorme respeito e não serem desleixados ou infantilizados. Mas o idadismo é uma realidade inegável, apoiada numa visão simplista dos custos económicos para a sociedade "provocados" pelos mais velhos.
Enquanto sociedade, o que vamos aprender com esta experiência?
Infelizmente as sociedades têm a memória curta. Veja-se o que aconteceu depois da crise financeira. Espero enganar-me. A esta situação-limite seguir-se-á outra e só não sabemos quando. Para esta não estávamos devidamente preparados e fomos lentos a reagir. Era bom que aprendêssemos com as suas terríveis consequências. Mas tenho muitas dúvidas e receio que o viver superficial que nos caracteriza reapareça de boa saúde.
Pare, respire e leia
Guia prático para manter uma vida saudável e positiva durante um recolhimento obrigatório em casa, segundo Filipa Jardim da Silva, psicóloga especialista em Psicologia Clínica e da Saúde e coach.
Connosco próprios
- Cuidar da forma como iniciamos o nosso dia, procurando reservar um momento para nos conectarmos connosco (exercícios de respiração, meditação, yoga), nutrirmos com qualidade o nosso corpo e perspetivarmos o nosso dia de modo consciente.
- Planear logo de manhã o que é prioritário e mais impactante dá-nos uma sensação de poder e de controlo.
- Manter rotinas diárias de cuidado com o rosto e o corpo, bem como nos vestirmos como se pudéssemos sair de casa, contribui para mantermos a nossa autoconfiança e autoestima.
Com o parceiro/parceira
- Sendo a convivência forçada sempre desafiante, vale a pena o casal definir momentos do dia para terem a sua privacidade, bem como poderem ocupar espaços diferentes da casa enquanto trabalham.
- Enquanto casal é uma boa prática perspetivarem o dia em conjunto, assegurando momentos para atividades profissionais, momentos individuais e momentos para lazer a dois.
- Os conflitos que já estiverem presentes naturalmente que se farão sentir. Importa recordar as circunstâncias externas e procurar tornar este tempo produtivo para melhorar a relação.
Com os filhos
- Garantir que as crianças e jovens são envolvidos num planeamento diário é importante, criando momentos de estudo, momentos de brincadeira, momentos de socialização à distância com amigos e momentos em família, sem equipamentos eletrónicos.
- Envolver as crianças desde pequeninas na distribuição das tarefas domésticas é importante. As crianças não gostam de se sentir forçadas a cumprir com ordens muitas vezes imprevistas, mas se forem envolvidas num planeamento doméstico com possibilidade de escolha, tenderão a aderir mais.
- Nesta fase desafiante para miúdos e graúdos, vale a pena assegurar momentos diários em que se possa falar sobre emoções e pensamentos, clarificar dúvidas e inquietações presentes, perspetivar com confiança o futuro.
Com amigos e família
- Isolamento não implica distanciamento, nem isolamento emocional. Este é um momento para se dar o melhor uso à tecnologia e mantermos partilhas e contactos com a nossa rede de suporte através de chamadas [telefónicas] e videoconferências.
- É possível manter refeições partilhadas com amigos e família através de um ecrã.
Com o trabalho
- Organizar o dia é fundamental, perspetivando blocos de tempo dedicados ao trabalho, bem como uma segmentação de tarefas por prioridade e impacto.
- Criar uma cadência em que a cada hora é feita uma breve pausa gera eficácia e produtividade.
- Criar um pequeno espaço de trabalho é organizador e potencia maiores níveis de concentração.