Crianças sujas, crianças felizes e saudáveis? O que dizem os médicos
São várias as razões por que deve deixar os miúdos rebolar na terra e não se preocupar tanto com a sua higiene. A mais importante? Estamos a expô-los aos micróbios, processo essencial para a manutenção de um sistema imunitário equilibrado.

Micróbios. Surgiram muito antes das plantas e dos animais (que evoluíram a partir das bactérias) e todas as formas de vida na Terra estão cobertas por eles, incluindo, obviamente, o nosso corpo. Sabe-se que, por cada célula humana do nosso organismo, existem dez células bacterianas a habitar-nos (ou será que somos nós a habitá-las?). São tantas que, segundo Raphael Kellman, um conceituado médico internista norte-americano e autor de A Cura dos Intestinos – A Dieta do Microbioma, chegam a representar cerca de seis quilos do nosso peso. No seu livro, Kellman diz que estão por todo o lado, ocupando a boca, as fossas nasais, os pulmões, a pele e o cérebro, mas é no interior dos intestinos que se encontra a maior parte, mais precisamente três quartos.
Durante anos, sempre que pensávamos em micróbios – especialmente em relação a bebés e crianças –, estes eram considerados perigosas ameaças exclusivamente determinadas a infetar-nos com doenças mortais e a principal preocupação era exterminá-los. É claro que há motivos para ter medo, já que alguns são verdadeiramente nocivos. Antibióticos, antivirais, vacinas, técnicas de esterilização e o hábito de lavar tudo com antimicrobianos (do corpo à comida, passando pela roupa) fizeram parte dos avanços médicos que reduziram significativamente a quantidade e o grau de infeções que sofremos ao longo da vida. Uma guerra que valeu a pena: antes dos antibióticos, 90% das crianças morriam quando contraíam meningite; hoje em dia morrer de uma infeção microbiana é um acontecimento muito raro nos países desenvolvidos.

Mas será que todo este ódio é justificado? É importante referir que apenas cerca de uma centena de espécies de micróbios são conhecidas por serem, de facto, patogénicas, ou seja, provocarem doenças nos seres humanos. A maioria dos milhares de espécies que nos habita não causa problemas; pelo contrário, trazem até benefícios, podendo ser a resposta para diversas condições de saúde. E essa relação com os micróbios ainda é mais importante quando somos crianças. É isso que defendem os microbiologistas Brett Finlay e Marie-Claire Arrieta no livro Deixe-os Comer Terra.
O órgão esquecido
Após a conclusão do Projeto do Genoma Humano em 2003, o passo seguinte foi sequenciar o ADN das nossas bactérias, muito mais desafiante devido ao seu número, em muito superior ao primeiro. O estudo do microbioma (comunidade residente de microrganismos num ecossistema, neste caso, do corpo humano) resultou num projeto que revelou quão diferentes são as bactérias de distintas partes do nosso organismo. Descobriu-se também que cada indivíduo tem o seu próprio conjunto de micróbios (gémeos idênticos, por exemplo, têm microbiomas individuais) e que estes podem ser ainda mais importantes do que cada gene que carregamos no nosso genoma (daí chamar-se ao microbioma o "órgão esquecido").

A constatação de que estes bichinhos têm realmente impacto na nossa saúde passou a ser óbvia, mas o que mais surpreendeu os especialistas foi o quão cedo isso se verifica – os primeiros cem dias de vida são críticos. Especialmente o dia do nascimento. No seu livro, Brett Finlay e Marie-Claire Arrieta explicam como, no momento em que vimos ao mundo, passamos de seres maioritariamente estéreis (ainda no útero) a recetores de uma grande carga de micróbios, principalmente por parte da mãe. Um bebé nascido de parto natural vai encontrar bactérias vaginais e fecais, o que faz com que o seu microbioma se assemelhe muito ao da mãe.
Por outro lado, os que nascem por cesariana não terão direito a este belo presente de aniversário. É por isso que os EUA estão cada vez mais familiarizados com um tratamento cujo objetivo é transmitir as bactérias do canal vaginal através de um pedaço de gaze inserido na vagina uma hora antes do parto e que é depois utilizado para esfregar o interior da boca, os olhos e a pele do bebé imediatamente após o nascimento.
Mas porque é que tudo isto é necessário? Segundo os autores, "a natureza garante que os micróbios inicialmente encontrados pelos bebés nascidos de parto normal são do tipo que ajuda a digerir o leite, ao mesmo tempo que contribuem para o desenvolvimento do sistema imunitário imaturo do bebé e até protegem contra infeções". Como disse o biólogo neozelandês Rob Knigh numa conferência TED em 2014, o modo como nascemos tem um grande efeito nos micróbios que possuímos inicialmente, mas e depois?

O que acontece nos primeiros tempos, quando o microbioma muda tão rapidamente, tem realmente importância. Cada vez mais estudos defendem que a falta de exposição às bactérias e parasitas, especificamente durante a infância, poderá ser a causa para o desenvolvimento de inúmeras doenças e distúrbios não infecciosos crónicos, incluindo a diabetes, as alergias, a asma, as doenças inflamatórias do intestino, as doenças autoimunes, o autismo, certos tipos de cancro e até mesmo a obesidade. Mas a estimulação positiva do sistema imunitário é apenas uma parte do que os micróbios fazem por nós.
A relação entre o microbioma, o metabolismo e o peso foi o que nos últimos tempos provocou maior burburinho, o que talvez possa explicar a publicação de tantos livros sobre o intestino, que é considerado a nave-mãe das bactérias existentes em todo o nosso organismo. É lá que estes bichinhos microscópicos digerem os alimentos, regulam o modo como as calorias são extraídas e produzem nutrientes essenciais. É por isso que é tão importante equilibrar o microbioma.
Missão: defender!
Um equilíbrio que, asseguram os especialistas, é conseguido sobretudo lá fora. Muitos (como a pediatra neurologista Maya Shetreat-Klein, autora do livro Healthy Food, Healthy Gut, Happy Child) dizem que o melhor para prevenir problemas de saúde precoces é deixarmos os nossos filhos rebolarem literalmente na terra. Em termos concretos, recomendam um estilo de vida centrado em torno do contacto com os micróbios presentes no solo. Pelo menos, não sermos tão exagerada e obcecadamente higiénicos e alarmistas já seria um bom começo. E isso inclui comer alimentos cultivados e colhidos diretamente de solos organicamente ricos (e não, não é dramático comer um morango não lavado, por exemplo), bem como incentivar as crianças a passar tanto tempo quanto possível na rua.
No entanto, para o pediatra Mário Cordeiro, é preciso não "confundir sujidade com poluição, contaminação por microrganismos ou ‘porcaria’". Distingue do que é normal e desmitifica: "Quando as crianças brincam em elementos naturais – como relva, terra, areia – obviamente que não ficam com a roupa exatamente como tinham (amarrota-se, fica de cor diferente e com pó, etc.), mas ao mesmo tempo contactam com a Natureza." Também ele corrobora a importância dos micróbios (não patogénicos) para o correto desenvolvimento do sistema imunitário. E nada disto é difícil para a maioria das crianças, que têm uma tendência natural para ficar sujas e meter coisas na boca.
Em Deixe-os Comer Terra, Brett Finlay e Marie-Claire Arrieta sugerem que este comportamento inato poderá servir para treinar o seu organismo a reagir em conformidade. Da mesma forma que o sistema imunitário deteta, reage e tenta lembrar-se dos micróbios causadores de doenças para conseguir defender-se deles numa próxima vez, quando aquele encontra um agente inofensivo decide ignorá-lo ou tolerá-lo. Se o estilo de vida da criança implicar uma exposição limitada a estes eventos de treino, o sistema imunitário não vai saber como responder, podendo desencadear inflamações em vários órgãos do corpo, o que contribui para o surgimento de algumas das doenças que já referimos.
É por isso que os cientistas pensam que o local onde crescemos terá muita influência. Vários estudos demonstram que crianças criadas em espaços rurais têm vantagem imunológica sobre as que foram criadas na cidade. Isto porque as quintas, por exemplo, proporcionam um ambiente rico em micróbios, semelhante à forma como costumávamos viver no passado. E quanto maior a biodiversidade de bactérias, melhor, pois só assim os microrganismos bons terão a capacidade para combater os maus.
Mário Cordeiro reforça: "Como em todos os ecossistemas, quando predomina uma espécie as outras têm tendência a diminuir." Mas não só numa quinta este ambiente pode ser recriado e os estudos também apontam a socialização como fator-chave. Talvez por isso muitos especialistas, incluindo o pediatra português, aconselhem a convivência com animais de estimação, com especial enfoque nos cães. O livro Deixe-os Comer Terra tem um capítulo dedicado a eles: "Parece que, ao trazerem o exterior para dentro de casa e lambendo tudo e todos, os cães agem como sistemas de entrega de micróbios que equalizam a flora microbiana de toda a casa."
Limpos q.b.
Claro que isto não é assim tão linear e não devemos deixar os nossos filhos brincar com tudo o que encontram à frente, sob pena de ficarem mesmo doentes. Não é, de todo, isso que Brett Finlay e Marie-Claire Arrieta defendem. Mas constatam que o crescente aumento das novas epidemias dos países desenvolvidos não pode ser explicado apenas pelos genes (que dificilmente mudaram assim tanto em duas gerações); o que mudou foram, isso sim, os estilos de vida e o ambiente que nos rodeia, levando a esta falta de exposição microbiana.
As sociedades modernas e, em particular, a infância nunca foram tão limpas. Mas porquê? Os autores citam um epidemiologista londrino, que aponta "a redução do tamanho da família, as melhorias nas instalações domésticas e os padrões mais elevados de higiene pessoal", mas há mais. Mário Cordeiro afirma que pode ter a ver "com algum novo-riquismo relacionado com as roupas caras que se compram e que não se querem ver sujas. As crianças são, para muitos pais, um ‘cartão de visita’ e vistas como um sinal dos ‘ótimos pais que somos’".
Também a utilização desmesurada de produtos antibacterianos está a tornar o mundo demasiado higienizado. O pediatra condena a tendência, argumentando que "lavar as mãos continua a ser o melhor método preventivo de transmissão de doenças" e que até "vivemos num país que tem das melhores águas da torneira do mundo e alimentos de excelente qualidade". Em suma, "tudo o que seja excesso de zelo acaba por se tornar contraproducente".
Uma máxima que se aplica igualmente ao mau uso e abuso de antibióticos, especialmente durante a infância, que várias investigações associaram ao risco aumentado de desenvolver asma, alergias e obesidade. O problema é que os antibióticos matam não só as bactérias que nos põem doentes como as que nos mantêm saudáveis. Em Inglaterra, já foi lançado um apelo dirigido aos pais para que deixassem de administrar estes medicamentos durante tosses e constipações comuns. É importante frisar a sua ineficácia contra as infeções virais, pois são desenvolvidos para matar bactérias e não vírus. Teme-se, portanto, um cenário em que as primeiras criem resistências e os fármacos deixem de funcionar.
Cada caso é um caso e nem todas as crianças podem ser criadas no meio de uma quinta cheia de lama. A prevenção de doenças graves deve continuar a ser uma prioridade, mas há que saber distinguir entre uma intervenção necessária e uma prática dispensável. Mário Cordeiro aconselha a "fazer vacinas, saber esperar face a uma situação de doença leve ou moderada e não usar antibióticos para baixar a febre ou por ‘dá cá aquela palha’".
O livro e os autores
Brett Finlay e Marie-Claire Arrieta são ambos pais e a maioria dos seus amigos, também com filhos, mostrava-se interessada em saber mais sobre micróbios e o modo como estes podiam afetar a saúde das crianças. Os microbiologistas já tinham constatado a importância destes bichinhos através de estudos feitos no laboratório onde trabalhavam e, percebendo que a informação sobre o tema não era clara nem acessível a leigos, decidiram adaptá-la no livro Deixe-os Comer Terra (Matéria-Prima Edições). Ao longo de 16 capítulos, apresentam-nos aos micróbios, explicam o seu papel durante o processo da gravidez, do parto, da amamentação e dos primeiros anos de vida, respondem a questões do estilo de vida (Devo arranjar um animal de estimação? O que fazer quando a chucha cai ao chão?) e abordam doenças específicas.
*Artigo originalmente publicado na edição 337 da Máxima.
