Prazeres

Ana Moura, chef: "Muitas vezes nem respeito as receitas tradicionais, mas sim os sabores"

Cresceu em Lisboa e passou parte das férias de infância em Porto Covo, onde fez da cozinha alentejana a sua especialidade com a abertura do restaurante Lamelas, uma referência sofisticada nestas bandas. Fomos até lá.

Ana Moura, chef e proprietária do Lamelas, em Porto Covo.
Ana Moura, chef e proprietária do Lamelas, em Porto Covo. Foto: Gonçalo F. Santos
25 de agosto de 2023 Ana Filipa Damião

"Uma senhora daqui disse-me que o restaurante não ia sobreviver se não mantivesse a grelha e o peixe grelhado", conta Ana Moura, chef e proprietária do Lamelas, em Porto Covo, por ocasião da nossa visita. Depois de um almoço imerso em sabores do Alentejo, conversávamos sobre as mudanças que o restaurante tinha sofrido antes da sua abertura, por conta do equipamento inadequado, e como a grelha na varanda agora servia, exclusivamente, de elemento decorativo. 

Porto Covo insere-se, embora cada vez menos, no grupo de típicas povoações de pescadores que emergem do seu sono e brotam de vida nos meses mais quentes do ano, testemunhando as férias dos visitantes. Era ali que a chef de 38 anos passava as suas, em criança, de pé descalço e a brincar na rua. Era a terra do seu avô materno, este pedaço do litoral alentejano, e que serviu de inspiração para o nome do seu primeiro restaurante em nome próprio: Lamelas, o apelido materno. O projeto surgiu um pouco por acaso, explica Ana Moura, que estava, mais uma vez, ali de férias quando os donos de um estabelecimento lhe perguntaram se ela estava interessada num espaço. "Gostei principalmente da cozinha aberta." 

Chef Ana Moura.
Chef Ana Moura. Foto: Gonçalo F. Santos

Antes de tomar o novo cargo, aperfeiçoou o seu know how de alta cozinha em Portugal e Espanha, em nomes como Eleven e Arzak, tendo deixado a sua marca em outros tantos em Lisboa, a Cave 23 e a Bacalhoaria Moderna, onde aplicou uma cozinha mais descomplicada. 

Reinventar a cozinha alentejana 

Percorremos a paisagem da varanda do Lamelas, uma bonita pintura da baía de Porto Covo com barcos a ondular ao ritmo da maré, que no início da tarde ainda se mostrava tímida, a encher. É na esplanada exterior que a maior parte dos clientes se concentra, a aproveitar a paz e o sossego tanto quanto nós. Isto até chegarem as entradas - que tal como os restantes pratos da carta refletem o sabor do Alentejo de Ana Moura, mas que quase nunca seguem o receituário tradicional -, aconselhadas conforme o prato principal escolhido.

O Lamelas está aberto o ano inteiro.
O Lamelas está aberto o ano inteiro. Foto: Gonçalo F. Santos

Não pode faltar o pão alentejano com manteiga de porco e toucinho frito e muito menos as saladinhas - há de polvo, de ovas -, o gaspacho ou o paté de fígado de abrótea, as lulas fritas com maionese de limão e o almece com peixe curado, este último uma agradável surpresa. Trata-se do estado natural do requeijão e resulta do soro de coalhada do queijo

Leque diverso de entradas.
Leque diverso de entradas. Foto: Gonçalo F. Santos

De seguida, chega-nos uma iguaria que exemplifica muito bem a cozinha da chef: abrótea com amêijoas em molho verde, que é uma variação da sopa de cação, mas com o peixe e salsa em vez de coentros. "A abrótea representa muito o que eu quero: é um peixe daqui, o que em termos de sustentabilidade é importante, não é daqueles peixes super explorados, e tem alguma elegância." Embora os pratos tenham uma apresentação mais cuidada, algo que os locais estranharam no início, "quando se come o sabor é o tradicional, tem o sabor a Alentejo e faz-nos lembrar coisas que já comemos e as nossas memórias."

Abrótea com ameijoas em molho verde.
Abrótea com ameijoas em molho verde. Foto: Gonçalo F. Santos

O processo criativo não costuma ser linear. Às vezes, o difícil é manter o foco no seu tipo de cozinha, conta Ana Moura. "Por exemplo, o prato da lula, eu sabia que queria o sabor da lula grelhada. O processo passa por provar primeiro o ingrediente principal do prato, e depois ver ‘ok, isto vai bem com o quê?’. Comecei a andar às voltas acabei por chegar às migas de grelos com o paté de ovas de pescada e doce de abóbora, e assim ficou", diz. Devemos confessar que foi um dos nossos momentos preferidos, pela mistura de texturas e pelo toque doce. 

Lula recheada com migas de grelos e paté de ovas de pescada.
Lula recheada com migas de grelos e paté de ovas de pescada. Foto: Gonçalo F. Santos

O peixe porco à alentejana também tem uma história curiosa. "É como se fosse carne de porco à alentejana mas com peixe", explica. "Estava realmente a tentar fazer carne de porco à alentejana, e experimentei várias vezes, com a carne a baixa temperatura, no forno, e nunca estava feliz com aquele prato, então houve um dia que decidi fazer com peixe", conta, durante esta nossa visita. 

Canelones de sapateira.
Canelones de sapateira. Foto: Gonçalo F. Santos

Ainda provámos os canelones de sapateira com salada de funcho e molho do seu coral, que se desfaziam na boca a cada dentada, e o cremoso arroz de robalo, peixe galo e camarão, um dos top 3 dos clientes, e percebemos bem o porquê. Este é um prato que nunca vai sair da carta: "É uma coisa super portuguesa. Em Portugal há muitos pratos com arroz." Além disso, para uma nova delicia entrar, esta tem de ser melhor do que a antiga. 

Arroz cremoso de peixe e camarão.
Arroz cremoso de peixe e camarão. Foto: Gonçalo F. Santos

O almoço termina com três sobremesas: tarte de queijo com espuma de caramelo e abacaxi, e pistácios caramelizados; mousse de chocolate com crumble de amendoim e laranja caramelizada; e migas doces, cuja forma indicada de saborear é alterná-las com um shot de medronho de mel e que fazem lembrar os bolos de aniversário com gema de ovo.

Mousse de Chocolate com crumble de amendoim.
Mousse de Chocolate com crumble de amendoim. Foto: Gonçalo F. Santos

Sustentabilidade e desafios 

Sobre os desafios que superou nestes dois anos de portas abertas, Ana Moura enumera a dificuldade em ter uma equipa estável, algo que ela diz ser impossível na área, o facto de se tratar de um restaurante mais sazonal, pela localização onde se insere, mas que mesmo assim tem público o ano inteiro, e a estranheza inicial dos residentes de Porto Covo, pois pensavam que a chef iria servir uma cozinha gourmet e hiper elaborada.

Equipa do Lamelas, em Porto Covo.
Equipa do Lamelas, em Porto Covo. Foto: Gonçalo F. Santos

"Não sinto responsabilidade [de dar a conhecer a gastronomia alentejana], mas faço-o porque quero. Acho que alguém que venha aqui comer tem de saber ao que vem. Mas não sinto a responsabilidade de ter de fazer o tradicional, até porque muitas vezes nem respeito as receitas tradicionais, respeito sim os sabores tradicionais, para mim é o mais importante."

Em termos de sustentabilidade, afirma que "mais do que trabalhar só produtores locais e pequenos produtores, gosto de trabalhar economia local, porque acho que é importante comprar aqui o pão na padaria, o legumes no mercado, o peixe na Lota de Sines e a carne também aqui no talho. É importante dinamizar a economia local para ela também crescer."

Ana Moura passa férias em Porto Covo desde criança.
Ana Moura passa férias em Porto Covo desde criança. Foto: Gonçalo F. Santos

Destaque ainda para a carta de vinhos escolhida ao pormenor, não tivesse Ana Moura formação em enologia, privilegiando vinhos de terroir e de baixa intervenção, com grande parte dos produtores situados a 50 km de distância do estabelecimento, como a Herdade do Cebolal, Monte da Carochinha, A Serenada, Vicentino e Cortes de Cima. No que toca ao medronho, um ícone que não podia faltar, destacam-se a Junior Jacques, a Zorra, Brejinho da Costa e o Monte da Carochinha. Também há vinhos de produtores mais distantes, como Niepoort, Anselmo Mendes, ou Quinta Nova, sem esquecer o Vinho do Porto, Madeira e Moscatel.

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