Do trabalho doméstico à passerelle: pode um avental ser um ato político?
A cozinha encerrou, mas a discussão sobre o papel da mulher na sociedade continua.
Durante séculos, o avental carregou a história silenciosa das mulheres. Protegia a roupa, servia para tirar tachos do forno, secar lágrimas, levar ovos ou legumes da horta. Cada dobra guardava a vida dura das que mantinham casas, famílias e rotinas sem reconhecimento. Hoje, a farda da minha avó Palmira renasce na passerelle. E a moda volta a lembrar-nos que também se protesta com tecido.
O avental como manifesto
Na primavera/verão 2026, a Miu Miu levou para a passerelle aquilo que ninguém esperava: um avental transformado em peça central de discurso político. Miuccia Prada reconfigurou-o como símbolo de trabalho visível, autonomia e força feminina.
“No mundo da moda falamos sempre de glamour ou de pessoas ricas, mas temos de reconhecer que a vida é também muito difícil. E, para mim, o avental contém a verdadeira vida difícil das mulheres ao longo da história, das fábricas ao lar”, esclareceu a criadora à Vogue Singapure.
A coleção joga com fragilidade e força: folhos, transparências, cabelos despenteados, padrões que lembram toalhas antigas. Aventais de pele sobre biquínis desafiam expectativas e questionam até que ponto o que vestimos é escolha pessoal ou reflexo social. A Miu Miu lembra-nos que o feminino pode ser múltiplo, contraditório - e sempre poderoso. A proposta é nova, a peça essa é antiga.
De peça doméstica a símbolo cultural
O avental nasceu na Idade Média como proteção prática, usado por homens e mulheres, e rapidamente se associou ao trabalho doméstico feminino. Em Portugal, entre os séculos XIX e XX, tornou-se presença constante - as únicas imagens que tenho da minha avó mostram-na com um avental, sempre essencial e tantas vezes invisível.
No folclore português, o avental ganhou estatuto decorativo e identitário: no Minho, em vermelho, azul ou verde, bordado com motivos locais; na Serra da Estrela, escuro, resistente, com bolsos grandes; no Algarve ou Alentejo, claro e delicado. Herdava-se. Guardava memórias.
Durante guerras, crises e racionamentos, tornou-se símbolo de engenho feminino: remendar, transformar, cuidar. A história de Portugal também se cose por aí.
Moda, memória e resistência
Hoje, designers portugueses como Maria Clara Pontes Leça, Joana Duarte (Béhen) e Constança Entrudo resgatam técnicas tradicionais e património têxtil, recuperando narrativas de trabalho feminino que ecoam o espírito do avental na coleção da Miu Miu. São criadoras que transformam o quotidiano, a costura e a memória em discurso contemporâneo.
Também a exposição virtual Os Ofícios das Nossas Mulheres, inspirada em As Mulheres de Maria Lamas (Gulbenkian, 2024), mostra como o Estado Novo idealizou a mulher como "fada do lar", enquanto a realidade era feita de trabalho árduo, desigualdade e silenciamento. A pergunta mantém-se urgente: quais são hoje os ofícios das mulheres portuguesas?
Num país onde o salário-base das mulheres continua 12,5% inferior ao dos homens e onde mais de 70% da diferença salarial não se explica por escolaridade, idade ou antiguidade, o corpo continua a ser também um lugar de luta.
Talvez a verdadeira força da moda como protesto esteja no facto de ser pessoal e pública ao mesmo tempo. Aquilo que vestimos diz algo sobre quem somos, mas também sobre o mundo onde queremos viver. Não é preciso estar numa passerelle ou numa manifestação para que a roupa ganhe significado: basta uma escolha que nos lembre que o corpo também é discurso.
Talvez por isso a moda continua a ser um terreno fértil para reivindicar espaço, autonomia e narrativa. Quando a Miu Miu transforma um avental – símbolo de trabalho invisível – num objeto de desejo, ou quando anónimas nas ruas usam peças carregadas de sentido, não é só sobre estilo: é afirmação. É um lembrete de que, mesmo num sistema imperfeito, a forma como nos apresentamos pode tornar visível aquilo que tantas vezes tentam apagar.
E se a moda é linguagem, vale a pena perguntar: o que queremos dizer com ela hoje? Podemos querer beleza, liberdade, irreverência (ou tudo junto). Podemos querer conforto, mas também impacto. Podemos querer simplesmente sermos nós mesmas. O importante é perceber que cada escolha tem o poder de desafiar normas, reescrever papéis e abrir espaço para novas narrativas femininas. No fundo, vestir-se pode ser um gesto íntimo, sim, mas, com ou sem avental, nunca deixa de ser um ato político.
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