Diz-me onde te sentas e eu digo-te quem és na hierarquia da moda
Nos desfiles, o lugar onde nos sentamos é uma declaração de estatuto, de ranking, de influência. E também de vaidade, de disputa, de inveja e nem sempre de mérito. Quanto mais importante se é, mais próximo se está da desejada linha da frente.

Um envelope de letra bem desenhada aterra na minha secretária. E num instante fico num êxtase quase religioso, para rapidamente ser atingida por um choque eléctrico e passar ao pânico: "Convite para a Semana da Moda de Nova Iorque" (que todos os insiders conhecem pela sigla NYFW). É o momento em que se começa a ver passar a vida em flashes. Haverá luz ao fundo do túnel?! Sobreviver à Fashion Week – sim, porque aquilo parece ser um verdadeiro campo de batalha – parece ser o título de toda a imprensa de moda e a lista de afazeres e de providências a tomar pelas celebridades para entrar no espírito do evento é quase infindável. Vai desde conseguir alinhavar um número obsceno de outfits, de sapatos e de carteiras até à marcação de maquilhadoras e de cabeleireiros e, se possível, a contratação de um motorista ex-militar treinado na Rússia que faça também as vezes de guarda-costas. E, claro, para rematar há que beber um copo de sumo verde detox. Parece que fica bem com qualquer indumentária… Para o comum dos mortais será bastante mais simples, mas, mesmo assim, é uma dor de cabeça. Há que chegar lá sem mácula e, proeza das proezas, ficar-se sentada na primeira fila. Na NYFW ou em qualquer outro evento do género. Além disso, o chamado front row explica quem é quem no mundo da moda. É a linha que separa dos demais mortais, os famosos, os ricos, os poderosos, os grandes compradores, os jornalistas, os verdadeiros influentes e, para mal dos nossos pecados, as "influencers" e os "influencers" e também o que resta das bloggers e dos bloggers de moda e do suposto lifestyle. Somos onde nos sentamos, por mais superficial que isto possa parecer. A hierarquia é bem clara e não tem nada que enganar: ela é proporcional e decresce à medida que aumenta o número da fila.
Como tudo começou

Mas nem sempre foi assim. Numa galáxia distante, num mundo em que se vivia sem telemóveis, sem redes sociais, sem socialites e, acima de tudo, sem Kardashians, o objetivo era meramente o de mostrar e de vender a mercadoria, por assim dizer. Nova Iorque foi a cidade pioneira a organizar os primeiros shows de moda sazonais. Segundo William Leach, no livro Land of Desire, o primeiro "desfile" teve lugar em 1903, na loja Ehrich Brothers. E, por volta de 1920, os shows já eram habituais em alguns grandes armazéns e hotéis. Eis senão quando, em 1943, Eleanor Lambert Berkson (Crawfordsville, EUA, 1903 - Nova Iorque, 2003), uma relações-públicas de moda tem uma ideia genial e decide agrupar todos estes shows num determinado período de tempo e chamar-lhe Fashion Press Weeks e Press Weeks. Nasceu, assim, a New York Fashion Week e Lambert não se fica por aí tendo ficado conhecida por ter sido a criadora da Lista dos Mais Bem-Vestidos. Com a semana da moda, o propósito era promover e impulsionar a moda dos EUA durante a ocupação nazi da França e, por arrastamento, de Paris, então o centro da Moda. Contudo, o conceito havia nascido do lado de cá do Oceano Atlântico e, sem surpresas, em França. Já no século XVII, os melhores artesãos de moda franceses faziam desfilar meninas bem-nascidas com as suas criações, perante as compradoras ricas que viviam em palácios e em castelos. A concepção moderna de moda, no sentido de luxo que necessita de regras constantes e de reinvenção, remonta a 1700 sob a batuta de Luís XIV e que culminou com Charles Frederick Worth que fundou a primeira verdadeira Casa de Alta-Costura, em Paris, em 1858. No final do século XIX, muitos Costureiros já empregavam modelos para mostrar as suas criações a uma elite endinheirada em eventos privados, num registo que durou até aos finais dos anos de 1960. As "manequins", como eram chamadas, ziguezagueavam por entre as senhoras da melhor sociedade, os compradores e as directoras das mais influentes revistas de moda, segurando um número correspondente à roupa que vestiam, enquanto aqueles bebiam chá e anotavam o que queriam comprar, numa coreografia e cerimonial silenciosos (só interrompido por uma voz feminina de bastidor que descrevia cada um dos coordenados) que chegavam a durar três horas de inevitável tédio. Contudo, é Paul Poiret geralmente reconhecido como o responsável por dar início aos desfiles tal como hoje os conhecemos. Além das suas criações geniais, Poiret era conhecido pelas montras extravagantes e pelas festas feéricas que organizava para promover a sua Maison (criada em 1903). Além dele, Lady Lucy Duff Gordon foi uma pioneira ao transformar o modo como comunicava a moda, enviando convites para as suas clientes fiéis e transformando uma simples venda de um vestido num acontecimento social com música e com modelos profissionais. Paris transforma-se na cidade que acolhe um número cada vez maior de compradores estrangeiros que sonham com nomes grandes como os de Chanel, Balenciaga, Dior, Schiaparelli, por exemplo, e essas Maisons vêem nisso a oportunidade para não só responder a essa procura, como para lançar as bases do que são hoje as Semanas de Moda, marcando desfiles duas vezes por ano. Chegamos aos anos 90 com um desfile memorável que ficou para os anais da história da Moda: Gianni Versace junta no mesmo catwalk as que viriam a ser apelidadas de supermodelos e o mundo enlouqueceu. E ninguém queria olhar para as roupas e só queriam vê-las. Nada voltaria a ser como antes. Cenários monumentais, multidões em êxtase, batalhões de cabeleireiros, maquilhadores, VIP, celebridades, tudo se conjuga para que as Semanas de Moda atraiam não só os profissionais desejosos de mostrar as suas técnicas, mas também curiosos e apaixonados pela Moda. Assim se explica tamanha agitação. Mas como transformar um amador num profissional? Tal como num campo de batalha, aqui há regras a adoptar. Uma etiqueta a seguir. Ora vamos lá!
Conselhos para uma debutante
Como dizia a minha avó, "a casamentos e baptizados não se vai sem se ser convidado" e, por isso, não tente entrar em shows para o qual não tem convite. Os seguranças e os relações-públicas de cada marca têm incorporado um detector à prova de intrusão e um sexto sentido apuradíssimo. Não é a primeira vez que cumprem essa função e são completamente imunes aos avanços de qualquer pessoa que tente entrar à socapa com a tal desculpa "Vou só ali dizer uma coisa a uma amiga e volto já, sim?". Depois, na remota eventualidade de alguém lhe dirigir a palavra e de lhe perguntar "De quem é esse vestido, querida?", não deverá responder "É meu". Deixe para a outra pessoa a meditação sobre a marca famosa que está a usar, mesmo que o seu vestido seja um bonito low-cost. Outra sugestão: controle a excitação. Nunca grite "Olha a Anna Wintour! É mesmo a Anna Wintour! Annaaaa! Annaaa!" porque a probabilidade de ser notada por um segurança e arrastada até aos detectores de metais é elevadíssima. Não, não deve usar óculos escuros. Mesmo que ache que os flashes dos fotógrafos lhe vão afectar a retina. A não ser que seja algum dos VIP ou que tenha encarnado momentaneamente na Kim Kardashian. Por isso, guarde os óculos. Caso contrário, será vista como uma recém-chegada ao mundo da moda e dará um enorme faux pas. Só Anna Wintour é que tem licença para os usar. Mesmo que nunca os tire, como fez na presença da rainha Isabel II. Os norte-americanos são pouco dados a protocolos como se vê por aquele senhor com a pele alaranjada e o cabelo lacado de amarelo que está na Casa Branca. Mantenha a distância das celebridades, não fique embasbacada a olhar para elas e, muito menos, peça para tirar selfies. É taky, como dirão os ingleses. Estar num desfile (se conseguiu entrar), essa é a grande oportunidade de observar as celebridades no seu habitat natural. Mas stay away. Outro conselho: não empurre! Não está a fazer uma maratona e a vida não acaba se entrar dois milésimos de segundo depois. De repente, tudo o que se aprendeu no jardim de infância varre-se da memória? Empurrar é mau! E na hora da verdade quando lhe perguntarem "Qual é a sua fila", fuja! Esta pergunta faz tremer até as mais habituées, é a que todas as fashionistas temem, a que põe a nu toda a vulnerabilidade e a que provoca o tal "arrepio na espinha" só comparado ao questionário feito pelos seguranças do serviço de fronteiras no aeroporto JFK. Até porque não se trata bem de uma pergunta porque é uma declaração de importância que traduzida à letra quer dizer "Quão importante é que tu és?". A não ser que se possa responder alto e bom som "Estou na primeira fila, entre a Wintour e a rainha Isabel II", seja evasiva! O resto é um "buraco negro"! Só que um simples lugar depois da segunda fila é a morte social! Sente-se, por fim, no seu legítimo lugar. É fácil saber qual é, pois está marcado com o seu nome. Se lá estiver um cartão a dizer Alexa Chung, Pixie Geldof ou Carine Roitfeld, temo que não lhe seja destinado.

Numa remota eventualidade dos deuses terem intercedido a seu favor ou se houver um alinhamento de planetas e descobrir que vai ficar sentada na primeira fila, não diga adeus aos que estão sentados defronte. Volte a controlar os níveis de excitação e, regra muito importante, não cruze as pernas. Isso vai dificultar a vida dos fotógrafos que não vão querer que, repetidamente, lhes apareça um pé esticado com um par de sandálias a invadir a foto. Tem uma celebridade ao seu lado? Saiba que, tal como nos aviões, o facto de estar sentada e bastante apertada (será por isso que as mulheres na primeira fila têm de ser tão magras?), a ombrear com alguém famoso, isso não quer dizer que queiram falar consigo. Por isso, é cumprimentar e andar. Se não quer ser fulminada e reduzida a pó, o silêncio é o melhor amigo. A carteira deve ser posta de lado para não impedir passagem, para, mais uma vez, não ser um ruído visual para os fotógrafos. Por isso esqueça o saco XXL da Balenciaga. Esqueça também tudo o que possa dificultar a vista de quem está sentado nas filas atrás de si, como por exemplo chapéus e demais acessórios para os cabelos. Lembre-se: vai assistir a um desfile, não vai participar nele. Mais uma regra: contenha a excitação, uma vez começado o espectáculo. O vestido que acaba de aparecer na passerelle é a coisa mais magnífica em que alguma vez pôs a vista? Contenha as mãos. As palminhas estão reservadas para o final. Os Oh! e os Ah! estão absolutamente proibidos. Last but not least, desligue o telemóvel. Sim, todos estão agarrados aos seus telefones portáteis a filmar o desfile, mas desligar significa silenciar. E largue o iPad, por favor. Parece que segura uma tábua de passar a ferro. Afinal, foi só um desfile de moda que durou muito menos de uma hora. Tanta angústia para quê? Tudo acabou bem. Seguem-se as festas pós-desfile, igualmente concorridas, igualmente stressantes, mas isso é outra história. A não ser que queira repetir tudo. Mas quando tudo acaba e nos perguntamos se vale a pena tudo isso, nem hesitamos na resposta: sim! Porque, contas feitas, moda é magia e divertimento (… mesmo que tenhamos de viver um pequeno "calvário" para sobreviver a um desfile).

Os ténis mais (o)usados da estação
Polémicas ou estratégias de marketing à parte, diferentes marcas de luxo continuam a apresentar ténis em modelos old school, com aspecto usado e sujo, e a preços elevados. Um sério caso de amor/ ódio que deixa no ar a questão: sim ou não?