Issey Miyake. O designer japonês que quis acabar com a 'ditadura do corpo' na Moda

Privilegiou a ergonomia e a sustentabilidade num mundo ainda fascinado pelo consumo rápido. Issey Miyake, que morreu exatamente 77 anos depois de ter sobrevivido à bomba de Hiroshima, deixa um legado cheio de futuro na História da Moda.

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09 de agosto de 2022 às 14:51 Maria João Martins

Com uma lógica feita de dois ou três símbolos, os obituários de Issey Mikaye, cuja morte a 5 de agosto só hoje foi comunicada ao mundo, fixam-se nas golas altas de Steve Jobs, de que foi criador, e no facto dramático de, menino pequeno, o criador japonês ter sobrevivido à bomba de Hiroshima, cidade onde nasceu em 1938. No entanto, o legado extremamente moderno que deixa na História da Moda é muito mais profundo do que os elementos agora sublinhados pelas agências noticiosas.

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No Japão do pós-guerra, o jovem Issey estudou design gráfico em Tóquio, mas decidido já a dedicar-se à Moda, rumou a Paris, onde trabalhou primeiro com Guy Laroche e depois com Hubert de Givenchy, essenciais para a sua introdução no savoir faire da Alta Costura, da silhueta ao marketing. Esta introdução ao luxo não o impediria, porém, de desenvolver a sua própria visão da Moda. Em 1970, abriu um estúdio em nome próprio, tornando-se um dos primeiros desenhadores japoneses a desfilar em França, colocando o Japão no mapa internacional da Moda de uma forma que não era exótica ou folclórica. Apostou na experimentação e no estudo em simultâneo do corpo humano e do modo como este se relaciona com os tecidos, um conceito hoje abordado por muitos, mas totalmente pioneiro na década de 1970 em que as fibras sintéticas e o prêt-a-porter conquistavam o público.

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Com um gosto particular pelos plissados impecáveis do designer espanhol Mariano Fortuny, lançou em 1988 a marca Pleats Please, que demonstrava já uma preocupação pela sustentabilidade ambiental, muito antes desta ser uma prioridade da indústria. Com efeito, ao contrário do que fizera Fortuny no princípio do século XX, o seu processo de fabrico não passava pelo recurso a litros e litros de água, mas por um tecido que ia ao forno envolto em papel, como se fora pão ou um suculento assado, depois de cortado e cosido. No seu Miyake Design Center criou ainda peças emblemáticas como me Issey Miyake, uma camisa de tamanho único e dobrada em forma de couve-flor, a linha A-POC ("A Piece of Cloth"), uma série de peças cortadas de uma só vez por meio de uma complexa maquinaria guiada por computador e ainda a referida Pleats Please. Para além disso, lançou uma muito bem sucedida gama de perfumariaL'Eau d'Issey Miyake é uma de suas fragâncias mais emblemáticas e um best-seller de Beleza.

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Os desenhos de Miyake têm como principal característica o facto de se adaptarem ao corpo de quem os usa e não o contrário, subvertendo a proverbial "ditadura" da Moda sobre os seus "pobres" consumidores.  Ao longo de duas décadas, as investigações do criador com tecidos visavam atingir um grau tão alto de adequação e ergonomia que conduzissem à eliminação de peças não orgânicas como fechos ou botões. A influência da cultura japonesa (em que o origami desempenha papel fulcral) tornaram-no único. Issey Miyake chegou a ser considerado, mais que um desenhador, como um autêntico arquiteto do corpo humano, já que nos seus desenhos o papel principal é entregue aos materiais, sendo o modo como caem no corpo decisivo para a forma que o criador lhes dava.

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A sua visão vanguardista, bem como a de outros criadores japoneses que entretanto se fixaram em Paris (como Kenzo ou a marca Comme des Garçons, de Rei Kawakubo) revolucionou a Moda europeia, não apenas nas referidas formas, mas também nos processos de fabrico muito mais próximos dos padrões de hoje do que dos dos anos 60 e 70. A Moda desconstruída que vem do Japão implicou um antes e um depois numa indústria ocidental, que, pelo menos desde os anos 1910 com Paul Poiret, encarava as culturas exóticas como um dos seus motores criativos. No  caso de Issey Miyake, a prioridade foi dada ao torso feminino, como por exemplo, na série de corsets rígidos, quase esculturas, que criou. O primeiro, Plastic Body, foi usado em palco pela cantora Grace Jones, seguindo-se Rattan Body, em vime e vinil (primavera de 1982) ou Silicon Body (1985), um corset em silicone que se destacaria na etapa Bodyworks, que também deu nome a uma exposição itinerante do seu trabalho que correu mundo entre 1983 e 1985.

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No princípio do século XXI, foi-se retirando gradualmente do mercado para privilegiar a investigação têxtil, em nome da ergonomia e da sustentabilidade. Na nota de imprensa em que a sua casa de Moda anunciou a morte do fundador, pode ler-se "O espírito dinâmico de Miyake, que nunca foi um criador que segue as tendências, foi impulsionado por uma curiosidade incessante e o desejo de transmitir alegria através do design. Sempre pioneiro, Miyake abraçou as artes tradicionais, mas também buscou a seguinte solução: a tecnologia mais nova impulsionada pela investigação e pelo desenvolvimento. Nunca se afastou do seu amor, o processo de fazer coisas."

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