Marina Abramović e o culto da performance
Marina Abramovic joga roleta russa, atira-se para o meio de chamas ou, então, permanece imóvel durante três meses no MoMA, em Nova Iorque. Aos 70 anos, a xamã da arte conceptual é uma superestrela e a líder de uma obra tão radical como universal. Aqui, recorda o seu destino vivido ao gosto do absoluto numa autobiografia*.

Marina Abramovic [Belgrado, 1946] está imperialmente sentada no camarim do estúdio fotográfico, embrulhada num xaile em mohair preto, impassível sob os golpes de pincel de maquilhagem e do ferro de frisar. Uma hora e meia mais tarde, totalmente maquilhada, com a sua impressionante cabeleira meticulosamente desordenada e as unhas cobertas de verniz vermelho, beberica um café. Amanhã, a artista voltará a partir em viagem. "Não tenho mais do que 50 anos de vida! Não tenho tempo para estar cansada!" Aos 70 anos, Marina, a guerreira, a rebelde, a xamã, continua a revirar o mundo da Arte. Ela conta-nos o seu extraordinário percurso, de Belgrado a Nova Iorque, numa autobiografia concebida à sua imagem: radical, pura, repleta de coragem e de sede de liberdade. As performances underground, na Europa mutilada do pós-guerra, as noites na camioneta conduzida por Ulay, seu companheiro no amor e na arte, as aventuras espirituais vividas no Tibete, no interior da Austrália, no Brasil ou na Índia. Marina possui uma enorme sabedoria e alegria de viver e um humor lúgubre. A sua ascensão fulgurante no mundo da Arte cercou-a de um grande público aquando da sua extraordinária performance The Artist Is Present, em 2010, no MoMA, em Nova Iorque. Durante três meses, sentada frente a uma simples mesa de madeira, ela mergulhou o olhar em qualquer pessoa que se sentasse diante dela. Mais de mil pessoas, aguardando, pacientemente, horas pela sua vez, encararam a artista e partiram frequentemente em lágrimas.
Sob os projetores do estúdio, com um vestido camiseiro preto e sandálias em plástico Fuck Negativity, a artista liberta-se. Sacode o cabelo, prepara-se e lança olhares furiosos à objetiva. Segura na mão um cristal gigantesco para que o seu nariz pareça menos enorme, diz em tom de brincadeira. Entre dois cliques, a equipa ajusta-lhe uma mecha de cabelo, aplica-lhe mais um pouco de pó. Radiosa, ela profere uma palavra gentil. Uma piada maliciosa. Majestosa e dramática, esta diva da vida é a Callas da arte conceptual. Examinemos os seus pontos fortes.

A performance
"A performance nunca morre. Renasce sempre, sobretudo nos momentos de crise. Quando o mercado da arte sobe, a performance sofre, porque é uma arte viva. É por isso que tenho um público tão jovem: através da performance, eles sentem um intercâmbio de energia que não encontram em mais parte alguma, exceto na música. O materialismo da performance preserva, ainda, o aspeto vital do instante, porque não existe qualquer objeto entre o artista e o público: é uma energia direta. Numa sociedade em crise, a Arte é necessária. Se tudo estiver bem, não é. Na Natureza, por exemplo, tudo é perfeito. Mas na sociedade, a Arte é como o oxigénio. A Cultura é uma necessidade, não um luxo. Existe muita gente de tal forma materialista que se esqueceu da Cultura. Ou, então, abre-nos os espíritos e permite-nos compreender pontos de vista diferentes do nosso: a Arte muda as consciências. Hoje em dia, toda a gente deveria ler a bibliografia de Gandhi que promoveu, verdadeiramente, a não-violência e transformou as consciências. Vivemos no caos generalizado: há uma força na natureza humana, uma necessidade de destruir, de matar. A única forma de mudar o mundo é mudando-nos a nós próprios – depois poderemos mudar milhares. É isso que eu faço com o meu trabalho."
Transmitir

"De momento, ando pelos ateliês e dou conferências. Acho que eu sou boa ensinadora. Adoro ensinar a minha experiência e partilhá-la com a nova geração de artistas. Já faço arte há tanto tempo… Ninguém da minha idade durou tanto como eu. Os outros andam todos com dispositivos cardíacos ou estão mortos!"
A emoção
"Quero chegar às entranhas, não ao intelecto. Todo o meu trabalho é emocional. Preciso de ter uma grande motivação, uma grande força de vontade para fazer aquilo que faço. Quero transmitir uma mensagem e provocar um impacto emocional no público, de modo a sensibilizá-lo. Por que razão, em The Artist Is Present, as pessoas se sentiram expostas perante mim e choraram? Porque eu me mostrei vulnerável e isso permitiu-lhes sê-lo, também. Quando atuo, não estou em mais lado algum. Aprendi a importância da presença com os sábios. Existe apenas o presente e isso é um milagre. Este sentimento de temporalidade é muito poderoso."

A causa
"O Comunismo e o Socialismo que conheci durante a minha infância, na antiga Jugoslávia, ensinaram-me a importância da participação social. Para nós, a causa e a mensagem são mais importantes do que a vida privada e o conforto. Crescer na Jugoslávia foi como viver numa ponte entre o Oriente e o Ocidente, onde havia sempre imenso vento. Era preciso aprender a encontrar a calma no meio dos tornados e desenvolver um ponto de vista claro. Na minha vida, eu vou sempre para o Oriente para aprender com os monges e os xamãs, para aprender a controlar o meu corpo e o meu espírito. E depois partilho as lições que aprendi com o Ocidente."
A paixão

"Estou constantemente desapontada e desiludida, mas tenho sempre confiança na vida. Confio nos outros. Amo a vida como uma criança. Vivo a cem por cento, sem me preservar. Isso faz mal. Adoro a loucura, sofrer com a loucura. Viver sem emoções não é viver. Sou muito dramática. Adoro sensações fortes. Sinto orgulho nas cicatrizes que trago no corpo. Quando criei a obra Balkan baroque, mostrei uma cultura onde todas as emoções convivem, em simultâneo. O sexo, a morte, a sorte, a tragédia, a tristeza. É essa a alma dos Balcãs. Nós sofremos constantemente, não pelo nosso destino mas pelo do universo inteiro."
A verdade
"Cresci numa família onde tudo era segredo. Escolhi dizer sempre a verdade e fazer as minhas escolhas – como, por exemplo, não ter filhos. É por isso que muitas mulheres me criticam. O meu trabalho é a verdade. Nós temos apenas uma energia no nosso corpo, a energia sexual, que podemos transformar em ódio, em amor, em criação total. Sou agora mais feliz do que nunca. Sofri tanto durante a minha juventude… Tenho sabedoria e uma boa saúde. Trabalhei, arduamente, para conquistar a minha liberdade. Fugi da Jugoslávia com uma única ideia de performance. Era muito orgulhosa. Na década de 1970, o meu público resumia-se a dez pessoas. Hoje, são milhares. Os outros artistas da minha geração deixaram de fazer as suas performances, na década de 1980. Eu continuei."
A sua autobiografia
"Eu quis escrever para alcançar um público mais vasto do que o mundo da arte. A minha vida é como um filme – até para mim – cheio de misticismo e de humor. Eu quis libertar essas memórias e inspirar outras pessoas. Se eu tive sucesso na vida, os outros também podem tê-lo. Dediquei este livro aos meus amigos e inimigos, porque muitos dos meus amigos tornaram-se meus inimigos e vice-versa. Agora que compreendem que o meu trabalho é sincero, os meus inimigos mudam. Podemos fingir durante um minuto, mas não durante três meses."
O sofrimento
"Enceno momentos dolorosos, com sangue, feridas abertas e armas, para expor os limites do corpo e mostrar que podemos livrar-nos do medo de sofrer. O sofrimento é a porta da consciência. A dor faz parte dos rituais xamânicos da Indonésia. É uma passagem para compreender que estamos libertos da dor. A dor, a temporalidade e o sofrimento são os três elementos que os seres humanos temem. Atualmente, eu já não uso o meu corpo em cena porque já me sinto liberta. Testar os limites do corpo é um ato simples. Agora, eu quero transformar o espírito, o que é muito mais complicado – é por isso que as minhas novas obras são estáticas. O essencial é alcançar o estado de não-pensamento, o estado mais elevado da meditação."
A solidão
"Existe uma grande diferença entre a solidão e o isolamento. Eu adoro a solidão – quando faço um retiro, na Índia, ou num mosteiro, por exemplo. É muito importante estarmos sós para progredirmos no conhecimento de nós próprios. Mas o isolamento é como estarmos sozinhos num quarto de hotel, sem amor. Quando estamos apaixonados, o isolamento não existe. Eu estou apaixonada pelo meu público, mas preciso do amor de um homem. Agora, eu estou novamente apaixonada: caiu-me do céu. No entanto, criei as minhas melhores obras [Rhythm 0, Balkan baroque, The Artist Is Present, Great Wall of China] quando estava infeliz. O artista cria sempre a partir de um estado de infelicidade. Repare na história da Arte…"
*Traverser les murs (edições Fayard), de Marina Abramovic, com James Kaplan. Traduzido por Odile Demange. Disponível, na versão original, em bertrand.pt
