É tentador dizer que Aurea e Marisa Liz são como água e azeite, tantas são as diferenças. Mas, depois, falamos com ambas e percebemos que é mais o que as une do que aquilo que as separa. A prova mais recente dessa sintonia chega em formato de álbum. Chama-se 9 e é o primeiro trabalho de Elas, a banda que, agora, as junta para a vida.
30 de janeiro de 2020 às 07:00 Rita Lúcio Martins
Combinámos tomar um café a meio de uma manhã diluviana, no resguardo, até certa altura silencioso, de um bar de hotel, mesmo no centro de Lisboa. Aurea e Marisa Liz chegaram um pouco depois da hora aprazada, mas não precisaram de se fazer anunciar. O burburinho sussurrado depressa deu lugar às vozes que todos reconhecemos da rádio e da televisão. Chegaram de braço dado e a trocar confidências, como quem atualiza o estado de uma conversa pendente. "Olá!", acenei, numa tentativa de resgatá-las daquele transe meio privado. E quando consegui chamar-lhes a atenção, já não houve espaço para hesitações. Braços estendidos e abraços dados, numa atitude sempre a meio caminho entre a descontração e a determinação.
Num ápice, os casacos, os sacos e as carteiras foram atirados para cima do sofá, esquecidos numa roda de conversa que depressa se desenhou com as cadeiras a fecharem um círculo intimista e com os telemóveis silenciados para deixar espaço para uma conversação que só teve ponto de partida. Perdemos as horas e o fio da conversa, tantos foram os assuntos que se atravessaram pelo meio. Mas, apesar dos vários desvios, voltámos sempre ao tema mais estruturante que, afinal, era também a razão que nos havia juntado: a amizade de ambas. Começámos por aí. Pelas muitas diferenças que se desenham entre as duas e que as juntam mais do que as separam. É tal e qual como na Televisão. Marisa, a faladora impulsiva, sempre com os nervos à flor da pele e as lágrimas a inundarem-lhe os olhos. Aurea, a mais calma e reservada, de olhar tranquilo e generoso, aquela que escuta mais do que fala e que está confortável com isso. Como num bom dueto, nenhuma tenta silenciar a outra. Limitam-se a mostrar quem são. E isso é bonito de se ver. "Até ter esta relação com a Aurea, eu não me apercebia da falta que ela me fazia [como amiga, mas também como parceira]. Eu creio que vamos fazer muito bem uma à outra", avisa Marisa, como se isso ainda não estivesse a acontecer…
Conheceram-se há 10 anos, no Templários, um então muito conhecido bar lisboeta de música ao vivo, onde ambas atuavam com as respetivas bandas. Marisa, a menina-mulher decidida que sempre quis ser cantora [participou em programas de televisão infantis como Bravo Bravíssimo e os Principais e integrou bandas juvenis como as Popeline e os Onda Choc], lembra-se desse período, entre os seus 17 e os 24 anos, e das noites de segunda-feira em que a mãe a levava ao bar e aguardava, pacientemente, pelo fim da sua atuação para a levar de volta a casa. "Eu já tinha saído dos Donna Maria [banda que integrou entre 2003 e 2009] quando me cruzei com a Aurea naquele bar e foi então que tivemos uma conversa bem curtinha… Só durou umas oito horas." Pausa para gargalhadas e para aquele abraço que só as melhores amigas conseguem replicar, para a cumplicidade que todos desejamos e que, tantas vezes, parece difícil de alcançar. "É impossível não ficar cativado pela energia dela, não é?", resume Aurea. "Eu lembro-me bem dos conselhos que me deu naquela noite. Teria sido fácil para ela, que já atuava há algum tempo, ter passado por mim sem me prestar atenção. Mas decidiu ter uma conversa séria comigo." Marisa explica porquê: "Eu já tinha conhecido muitas cantoras e muitos músicos nesse bar e em outros. Mas houve qualquer coisa especial na Aurea e eu andei anos a tentar perceber o quê… A verdade é que senti uma ligação quase maternal com ela. Ao vê-la naquela situação que para mim já era comum, revi-me e fiz aquilo que eu presumia que deveria fazer, ou seja, ‘abrir o livro’. Feita uma maluca, eu disse-lhe tudo o que achava importante dizer-lhe a nível profissional, mas não só. Quando se conversa com alguém que trabalha no mesmo meio, há sempre coisas que se guardam, até porque não queremos dar ‘parte de fraco’, mas isso nunca aconteceu entre nós. Entre nós não há filtros."
Depois dessa primeira conversa, intensa e sincera, como a lembram hoje, vieram outras. Sempre marcantes, mas igualmente pontuais. "Era por isso que a Marisa não me considerava uma verdadeira amiga…", esclarece Aurea, logo interrompida pelo "furacão" Marisa. "Eu não posso ceder o meu coração, o meu tempo ou a minha energia a toda a gente. Isso não seria justo para as pessoas que eu amo... Para mim, uma amiga é alguém que está sempre lá e a Aurea era aquela pessoa fechada… Era a pessoa a quem eu mandava mensagens e que só me respondia passadas semanas. Isso fazia-me pensar que talvez a minha disposição para com ela fosse diferente da que ela tinha comigo." Aurea sorri, justifica-se e admite que, na verdade, tem algumas dificuldades em "ler" as pessoas e que, por isso, resguarda-se por parecer-lhe quase sempre a estratégia mais segura. "Ela tinha dificuldade em confiar, mas tanto a chateei que um dia isso mudou…", brinca Marisa.
Foi enquanto juradas do programa The Voice que encontraram palco para uma amizade assim. Aos poucos tiveram tempo para descobrir afinidades e para aceitar as diferenças que gostam de enumerar, nem que seja só para se rirem com elas, como duas crianças ao despique: "A Marisa tem uma identidade muito própria e eu aceito-a como ela é, mesmo que isso me faça alguma confusão..." [risos]. E então surge uma longa e divertida descrição dos vestidos mais extravagantes que Marisa usou naquele programa e que abre espaço para as comparações mais inusitadas onde cabem personagens infantis como o Poupas da Rua Sésamo. Admitem que têm gostos diferentes ("São precisamente as nossas diferenças que nos unem", assegura Marisa), mas preferem assumi-lo, mais agora a bordo de um projeto comum. "Nós tínhamos a ideia de gravar um disco juntas, há muito, mas precisámos de tempo. Afinal, esta é uma decisão que muda muita coisa. Vamos andar na estrada juntas e vamos partilhar camarins, programas, entrevistas, tudo. Tem de haver uma base forte de sustentação, caso contrário é só business e o ‘problema’ é que nenhuma das duas se limita a fazer isso. Não sabemos o dia de amanhã e eu quero é ser feliz a fazer coisas que me encham de orgulho e que possa mostrar aos meus filhos. Não abraço projetos só com o intuito de fazer dinheiro..." Marisa dixit. Assim, sem outro propósito que não seja o de celebrar a amizade e o enorme amor que têm pela música chegaram ao 9, o primeiro disco d’Elas, produzido por Tiago Pais Dias [o marido de Marisa que é guitarrista e seu colega na banda Amor Electro]. Nove, o número que a numerologia associa ao amor universal, ao altruísmo, à espiritualidade e à fraternidade, mas também à sabedoria, ao poder do espírito, às pessoas solidárias, artísticas e criativas. Nove também porque são esses os temas do alinhamento, cinco originais [assinados por Afonso Cabral, Jorge Cruz, Márcio Silva e Tiago Machado] e quatro versões de músicas bem conhecidas. Depois de mergulharem numa banda sonora comum, Aurea escolheu interpretar Natural Woman, de Aretha Franklin, e Ouvi Dizer, dos Ornatos Violeta, enquanto Marisa optou por Glory Box, dos Portishead, e Inquietação, de José Mário Branco. As escolhas foram naturais, fáceis e descomplicadas. Como ambas aparentam ser uma com a outra. "Quando se faz um dueto, não podemos limitar-nos a ouvir a outra voz. Temos de sentir o que estamos a fazer. E acontecia-me muito, principalmente quando cantava com outras mulheres, sentir que a música não era o mais importante. E isso não faz sentido para mim. Se a pessoa que está ao meu lado [a cantar] estiver apenas a debitar notas e técnica, eu rapidamente ‘desligo’ e começo a cantar de uma forma mecanizada que não me deixa feliz. Com a Aurea eu sei que isso não vai acontecer." Juntas prometem ser uma rede de segurança, mas também aquele empurrão extra que as vai tirar da zona de conforto. "A minha vida resume-se à minha família, aos meus amigos, aos Amor Electro, à [agência] Nação Valente e ao Elas. Eu não saio à noite, não estou nas redes sociais. Rodeio-me das pessoas em quem confio. É natural que eu pareça sempre segura porque, quando se é amado, está-se confortável", confidencia Marisa. Ainda assim, a vulnerabilidade permanece. A grande diferença é que, com o passar do tempo, Marisa passa a ser assumida de outra forma, eventualmente com a naturalidade que só chega com a maturidade. "Um artista atravessa vários momentos, por vezes num só dia. Do palco cheio com as pessoas de quem gostamos, à plateia que nos faz sentir acompanhados, ao quarto do hotel onde não há nada, nem ninguém. É preciso lidar com esses contrastes porque eles fazem parte. E nós crescemos com eles", analisa Aurea.
Marisa Liz admite que a vida nem sempre é uma festa e que não foram assim tão poucos os momentos em que lhe apeteceu virar costas ao palco. "Ainda recentemente, em agosto, com a morte do Rex [Rui Rechena, baixista dos Amor Electro]… Mas é nessas alturas em que precisamos de ir ao nosso íntimo. ‘Se a música sempre te ajudou por que razão é que, agora, te iria abandonar?’, perguntava-me. E foi assim que ultrapassei todos os meus lutos e todos os meus segredos. Porque no palco eu sinto-me intocável." E é essa entrega que se revela uma essência comum. "Para mim", diz Aurea, "a música sempre foi uma coisa natural, como comer ou beber." E confessa: "Ainda assim, eu andei a enganar-me durante anos. Fui estudar linguística e teatro e andei perdida uma série de anos até perceber que era este o meu destino. E a sensação que tenho, hoje, é que a vida se encarregou de me trazer até aqui. Conduziu-me. A música, para mim, é algo de realmente terapêutico porque nunca se sai do palco pior do que se entrou."
Em uníssono, ambas falam da música como alimento, como remédio, como religião, como profissão de fé. Lembram as vozes que as deixam a levitar dentro de uma bolha, as canções que as fazem sentir em casa, independentemente do lugar ou do estado de espírito, aquelas canções que as põem a viajar no tempo. E dizem que pensar, hoje, que a música de ambas pode fazer o mesmo por outros é a melhor das sensações, mas que também é a ordem natural das coisas. É o ciclo a fechar-se. "Não há ninguém que não precise de ajuda", diz Marisa, praticante convicta e militante diária dessa grande missão que é a empatia: "Para onde quer que nós olhemos, seja na rua, na Internet ou nas televisões, vemos pessoas a falar mal com outras pessoas e o problema é que isso transforma-se numa ‘bola de neve’… Mas é possível fazer o contrário! Elogiar não nos tira nenhum bocadinho. Esta música [Eu Gosto de Ti, o single de avanço do novo disco] é sobre isso mesmo."
Eu não sei se ambas se deram conta disso, mas, ao longo da conversa, entre os cafés e os descafeinados, os sumos de laranja coados e os torrões de açúcar trincados sem vergonha, para lá das piadas e das pequenas provocações que elas insistem em trocar, reparei em Marisa e em Aurea várias vezes a entrelaçarem os dedos. Entusiasmadas como crianças, felizes por estarem nisto juntas e com aquele brilhozinho nos olhos que já cantava Sérgio Godinho: "É que hoje fiz um amigo e coisa mais preciosa no mundo não há."
É reitora da Universidade Católica e mulher do mundo. Com uma presença e uma personalidade cativantes, Isabel Capeloa Gil é a nova presidente da prestigiada Federação Internacional das Universidades Católicas. É não apenas nessa condição que nos concedeu esta entrevista que a revela de corpo e alma.