Isabel Capeloa Gil, uma mulher (muito) singular
É reitora da Universidade Católica e mulher do mundo. Com uma presença e uma personalidade cativantes, Isabel Capeloa Gil é a nova presidente da prestigiada Federação Internacional das Universidades Católicas. É não apenas nessa condição que nos concedeu esta entrevista que a revela de corpo e alma.

É uma figura singular, envolvente, amável no sorriso que se abre em riso, no abraço de boas-vindas que acorda um bom sentimento em quem acaba de chegar. A sua presença nada tem de distante ou formal. A firmeza na fala, para contar, explicar, descrever o que diz, exprime solidez de pensamento, rigor de ideias, inteligência de gente e de mundo. Feminina na doçura das palavras, no gesto, na implícita vaidade pelo corpo, pela perfeição dos traços, pela harmonia criativa de um enfeite a rematar o todo.
Na sua sala de trabalho, duas fotografias têm significado e sentido simbólico. Com o Papa Francisco, em Roma, quando se celebravam os 50 anos da Universidade Católica Portuguesa, em 2017. Com Mary Robinson, a primeira mulher presidente na Irlanda, quando Isabel Capeloa Gil acabava de ser eleita presidente da Federação Internacional das Universidades Católicas, em 2018. Duas imagens a exprimir as faces da sua personalidade. A formação cristã, o papel das mulheres na sociedade, o compromisso público, a sólida estrutura da sua vida privada. Afirma "literatura na alma, razão de vida", a sua formação é de Letras, a Cultura é o tema de mestrado, doutoramento e também de investigação para centena e meia de artigos e livros publicados e traduzidos. A diversidade humana é o motivo da sua atenção, inteligência e pensamento.

Desde 28 outubro de 2016, é a sexta reitora da Universidade Católica Portuguesa. Proposta por D. Manuel Clemente, Magno Chanceler, avaliada e aprovada pela Santa Sé, pelos bispos, pelo Conselho Superior da Universidade. Em 20 de maio deste ano foi contemplada com o grau de doutor honoris causa pelo Boston College. Nesse dia e a um estádio com 30 mil pessoas, Isabel Capeloa Gil falou do desejo de felicidade, da liberdade religiosa, da liberdade de expressão, do respeito pelos outros, da universalidade dos direitos humanos. Falou das mulheres que estão presentes no Evangelho. Nas mulheres prontas às grandes mudanças, para cargos de responsabilidade, para a intervenção e ação, além das palavras pronunciadas.
Desde o princípio, quer contar a sua história?
Nasci em Ílhavo e fui registada em Mira. O meu pai era da Marinha, estava em comissão nos Açores, e quando eu nasci a minha mãe ficou com os meus avós que eram de Mira. Como, até hoje, existia aquela singularidade das rivalidades regionais ficou esta diferença entre o meu nascimento e o registo.

Em poucas palavras, o que diz de si própria? O que a define?
Pensar além dos limites. Ao longo da vida eu tenho tido amigos diferentes, tenho conhecido e convivido com linguagens, pessoas e maneiras de ser diferentes. Eu sempre tentei manter-me assim. Devido à profissão do meu pai, eu cresci em Macau. Estudei no Colégio de Santa Rosa de Lima, um colégio [privado] católico. Lá havia três secções com alunos chineses, portugueses e macaenses. No recreio, as três classes reuniam-se. Éramos poucos, os portugueses da Metrópole. Todos falávamos a mesma língua portuguesa. Desde cedo, percebi que ficar em grupo era uma perda de tempo. Ou nos protegemos ou nos arriscamos. Podia ficar protegida no meu grupo ou arriscar-me a mudar de língua para conviver com dois terços dos alunos. Quis conhecer os outros. Comecei a falar as três línguas desde os sete anos.
A família e a educação que recebeu?
Eu tenho uma moldura familiar tradicional. Sou filha única, tive dois irmãos que morreram em pequenos, como acontecia naquela altura. O meu pai educou-me para eu ter opinião sobre tudo. Morreu há 20 anos, mas lembro-me dele todos os dias. Na minha família há uma dinastia de mulheres muito fortes. A minha mãe é forte. A minha avó geria negócios. A minha bisavó ficou viúva muito cedo e com sete filhos. A partir de agora, sou eu a gerir o processo.
E a adolescência em Macau?
Eu passei o 25 de Abril em Macau. Assisti à transformação da Ásia. Via as notícias na Pearl TV que era o canal de televisão de Hong Kong em inglês. Vi a Guerra do Vietname. A queda de Saigão. Na televisão mostravam os boat people a chegar a Hong Kong, a relação com a China era tensa. Vi a queda de Mao Tsé-Tung. Quando ele morreu mostraram um documentário sobre a vida dele que durou a noite toda.
Esses tempos deixaram marcas na formação da sua personalidade? No seu pensamento sobre o mundo?
Foram determinantes na minha relação com os outros. Foi determinante para mim eu ter nascido num ambiente multicultural. Sentir a língua cantonense já em pequena. Vou a Macau recorrentemente e encontro-me com amigas da escola.
O regresso e a adaptação?
Eu vim para Portugal, em 1981. O primeiro mês foi difícil. Andei perdida. Era adolescente, vinha de um modelo cultural anglo-saxónico e tudo aqui era diferente. Quando terminei o liceu, escolhi ir para a Faculdade de Letras. A decisão não era fácil. Eu tinha uma cabeça quantitativa, gostava de Física e de Matemática, mas adorava Literatura e tinha curiosidade pelas diferenças culturais. Nos verões eu lia muito. Passava os dias a ler. Íamos para Mira e eram dois meses de praia, de ar livre. Num verão eu li Eça, García Márquez, Somerset Maugham. A Literatura foi a minha escolha natural, mas contra a vontade do meu pai que queria que eu fosse para Economia. E, em 1983, iniciei na Faculdade de Letras a licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Ingleses e Alemães.
Continuou ligada à cultura alemã que foi tema do seu mestrado em Letras, em Munique e em Chicago, e do doutoramento na Universidade Católica. Com distinção e louvor! Porquê o alemão?
No 9.º ano comecei a aprender alemão porque era difícil, exótico. A ideia era a de conhecer um mundo maior. Eu sou assertiva e gosto de explorar o desconhecido. No 12.º ano fui três meses para Hanôver num programa da embaixada alemã.
Recordando a Faculdade, quer falar de um professor que tenha sido especial para si?
Sim. João de Almeida Flor, professor de Linguística Inglesa. No 4.º ano da Faculdade eu nunca mais esqueci o tema e a pergunta que nos fez no dia do teste final: "Qual é a sua visão para o campo do estudo do inglês?"
Quer falar dessa época? O que se passava?
O ambiente da Faculdade era uma loucura como estrutura, mas era fascinante como criatividade. O entusiasmo era tal que dormíamos à porta para nos inscrevermos. Foram quatro anos de confronto com o mundo real, um período de lutas, de grandes transformações. Discutia-se a profissionalização, a transformação dos currículos. Escolhia-se o ensino ou a investigação "via científica". A questão em causa era ter habilitação, ou não, para se ser professor. Ao mesmo tempo foi uma fase de desencanto contra a expectativa de muitos dos meus colegas. Quase todos queriam ser professores. Em centenas de alunos, só quatro não escolheram o ensino.
Também foi, durante sete anos, diretora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, coordenou as áreas de comunicação e de cultura. Muita entrega, muita disciplina e muito trabalho, desde sempre. E não renunciou à sua vida privada por lhe ter acontecido um percurso de compromisso público. O que não é comum na história de uma mulher de carreira, como a sua.
Eu conheci o João [Afonso Marques Coelho Gil] dois anos depois de acabar a Faculdade. Ele é oficial da Marinha [Capitão-de-mar-e-guerra]. Foi numa festa. Saímos, estivemos a falar de Kafka, começámos. Somos diferentes, muitas vezes estamos em desacordo e não queremos as mesmas coisas. Assim estamos sempre perto um do outro. "Matam-me" as pessoas que não me contrariam!
Pode dizer-se que os dois mantêm um fértil diálogo? Diálogo amoroso?
Sim, pode dizer-se. O João é, hoje, Capitão da Capitania do Porto de Lisboa, tem uma vida muito intensa e de muita responsabilidade. Somos casados há 30 anos. Temos duas filhas, uma com 27 anos e outra com 23 anos. A mais velha é advogada e está em Nova Iorque. A mais nova trabalha em marketing.
Pela sua clareza na maneira de falar, pela sua segurança e pelo seu entusiasmo, pode dizer-se que é uma mulher estruturada, no mais fundo de si? Que valores são estes que exprime?
Eu acredito na casa como estrutura simbólica, como orientação para o mundo, para a educação que queremos dar às nossas filhas. Quisemos dar-lhes a casa como espaço seguro.
Acabou de dizer que gosta de ser contrariada para contestar, não é? Estar contra a corrente faz parte da sua especial maneira de ser?
Na Faculdade passou-se um episódio que pode revelar como eu sou. No último ano de instalação da Faculdade de Psicologia que, na altura, ainda funcionava em Letras, estava eu nas instalações e andavam por lá estudantes de Psicologia a arregimentar nos corredores da Faculdade. "Fazes uma experiência?", perguntaram-me. Aceitei. "Vês duas imagens e respondes a umas perguntas sobre dimensão e espaço." As perguntas eram básicas. Eu respondi A e eles responderam todos B. Mostraram outras imagens, inverteram as respostas. Eles responderam todos uma coisa diferente do que eu estava a ver. Na terceira pergunta aconteceu o mesmo. E outra vez, na quinta. Foram oito vezes, eles os primeiros a responder e eu a última. Sempre a responder de forma divergente. Foram umas 10 perguntas. Eram todos alunos de Psicologia.
É especialista em literatura comparada, fala fluentemente várias línguas, tem sido convidada para aulas e conferências em universidades nas maiores cidades europeias, nos Estados Unidos, em Macau, no Brasil. Cultura Visual é a sua área de investigação e conhecimento. Como descrever?
Tenho trabalhado a relação da literatura com as artes visuais, as fronteiras entre texto e imagem, a cultura e o conflito. A procura e a inquietude das imagens.
Com os seus cargos atuais e as relações internacionais que implicam, faz muitas viagens?
Eu viajo duas vezes por mês, pelo menos, e especialmente agora com a investigação ou a gestão da Universidade. Por uma razão ou por outra. Também porque, desde 2018, sou presidente da Federação Internacional das Universidades Católicas que tem a sede em Paris. A Federação vai fazer 100 anos em 2024 e é a mais antiga do mundo.
Quantos membros tem a Federação?
São 250 universidades católicas de todo o mundo.
Na assembleia-geral quem são os representantes das universidades?
A maioria é de eclesiásticos, apesar da tendência de haver leigos em lugares de poder. Ou mulheres, como a Ana Jorge, diretora da Faculdade de Teologia na Universidade Católica.
Nesse universo de poder masculino é a primeira presidente mulher. Como aconteceu?
Na assembleia-geral elege-se o presidente, assim fui eleita. Há uma candidatura e a minha foi individual.
Como decidiu arriscar? Poderia ser uma escolha política?
Talvez por eu ser mulher. Mas eu fui a candidata das universidades europeias, onde as pessoas me conheciam. Houve três candidatos. Era eu e mais dois candidatos da América Latina. Um deles era eclesiástico e o outro tinha sido embaixador no Vaticano.
Como se sentiu a dirigir a primeira reunião, sendo a única mulher sentada à volta da mesa?
Passou-se na Irlanda. Eu já tinha sido eleita, mas nesse momento senti que havia expectativa relativamente ao meu modelo de liderança. "Como vai ser?", pensavam. Era uma reunião muito colegial, estariam umas vinte pessoas, e no conselho de administração quase todos eram eclesiásticos. E eu à cabeceira da mesa.
Qual foi o grande momento da sua vida? O doutoramento honoris causa no Boston College, em maio passado, com 30 mil pessoas a assisti-la?
O grande momento da minha vida foram as breves palavras que troquei com o Papa Francisco, em 2017, no ano anterior a ser reitora da Universidade Católica, quando o Papa esteve em Fátima. Eu queria dizer-lhe como estávamos gratos por ele estar disponível para a transformação interior da Igreja e, também, para as coisas da Universidade em prol da Igreja. "Tienes que trabajar lo concreto", disse-me. Trabalhar no concreto, ou seja, ter de trabalhar para afirmar a verdade e agir na vida concreta das pessoas.
Esse trabalho está a ser feito?
A Universidade Católica tem um fundo de apoio a carenciados, imigrantes e refugiados [Fundo de Apoio Social Papa Francisco]. Em 2017 foram 3 milhões de euros atribuídos a apoio social.
Além do seu trabalho de investigação, tem sido reconhecido o seu empenho na internacionalização, na comunicação, na divulgação da cultura em todas as áreas da sociedade. Como consegue gerir tal imensidão?
Eu tenho um cargo absorvente. Devo ocupar-me de três ordens de questões. Macro é a gestão e a política académica nacional, e também manter a projeção externa, internacional, da Universidade Católica. Médio é o desenvolvimento da Universidade. São 1.500 funcionários, 1.000 professores, 18 mil alunos, em Lisboa, Porto, Braga e Viseu. As questões micro são o cuidado e a atenção aos outros, o que nem sempre consigo cumprir devido à realidade da organização de cada dia.
Qual é o seu conceito de Cultura?
Cultura é tudo aquilo que aprendemos ao longo dos anos e que nos ajuda a criar uma relação com aqueles que existem à nossa volta. É aceitar a dimensão crítica, é estabelecer uma relação com o outro na diversidade. A diversidade é um desafio constante. É essencial no Cristianismo. É a visão cristã do mundo.
Tem um sentido cristão na sua vida?
Sim. Eu tenho uma fé que é reafirmada diariamente. Diariamente eu rezo. Hoje em dia, é um anátema alguém afirmar uma crença religiosa menos materialista. Muita gente evita dizer que é católica. Acho que isso é uma covardia.
Uma razão de esperança?
A geração das minhas filhas que não abdica de ter uma palavra a dizer. De estar empenhada no futuro, de tentar resolver a confusão que a minha geração e as outras criaram.
Um objetivo absoluto?
O trabalho ou a tarefa da minha vida é um plano radical para a igualdade de oportunidades e liderança das mulheres num mundo onde elas só ocupam 5% dos cargos de chefe de Estado e de chefe de Governo, onde só dirigem 12% das universidades na Europa e na América do Norte. Tomei esta decisão quando li o livro Um Teto Todo Seu, de Virginia Woolf. Logo nas primeiras páginas, ela conta que estava em Oxbridge, ia fazer uma palestra e andava naturalmente pelo relvado. De repente, apareceu-lhe um homem muito indignado, vestido de fraque e de camisa engomada. Era o bedel da Universidade a expulsá-la daquele caminho, a mandá-la ir pela gravilha. "Fora do relvado! Pela gravilha!", dizia ele. Isto porque Virginia Woolf era mulher e só os homens, os fellows, estudantes graduados e os membros da Faculdade podiam andar sobre a relva. Logo que ela mudou de caminho, o bedel acalmou-se e houve paz. [No dia 20 de maio deste ano, Isabel Capeloa Gil foi a primeira mulher não americana a receber o grau de doutor honoris causa pelo Boston College, uma das mais antigas e prestigiadas universidades dos Estados Unidos. Na cerimónia de Graduação foi a oradora convidada para o Commitment Speach, o discurso aos novos diplomados. Com um imenso aplauso, ficaram registadas as suas palavras de apelo e conclusão: "Não desperdicem o talento. Mulheres do Boston College, convido-vos a caminhar sobre a relva! Lembrem-se: nós somos as histórias que contamos!"]
