Apanha-me se Puderes

O que fez correr os grandes mitómanos da História? Um desvio comportamental, uma aspiração ao poder e à fortuna ou simplesmente o gosto pelo jogo? 

Apanha-me se Puderes
06 de maio de 2014 às 06:00 Máxima

De Nixon a Lance Armstrong, passando por Alves dos Reis, há de tudo um pouco na galeria dos maiores mentirosos de sempre. Por Maria João Martins

 

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“Sou Anastasia, Grã-Duquesa da Rússia.” Esta declaração, proferida por uma vagabunda internada num asilo de Berlim, em 1922, obcecou, ao longo de décadas, milhares de pessoas em todo o mundo. Quatro anos antes, as tropas bolcheviques tinham executado sumariamente o czar Nicolau II, a czarina e os cinco filhos de ambos: Olga, Tatiana, Maria, Alexis e… Anastasia. Os seus cadáveres não foram levados para junto dos demais Romanov, nem se sabia ao certo onde paravam. Tal incerteza alimentava os rumores: teriam os soldados ousado assassinar as quatro lindas princesas que o mundo conhecia, imaculadas nos seus vestidos brancos, das páginas dos almanaques ilustrados?

 

Esta história começou na noite de 27 de fevereiro de 1920, em Berlim, quando um polícia salvou da morte por afogamento uma jovem de identidade desconhecida. Levada para um Hospital psiquiátrico, era designada por Fräulein Unbekannt (Miss Desconhecida), mostrando cicatrizes na cabeça e no corpo e falando alemão com um forte sotaque que o pessoal médico definia como “russo”. No princípio de 1922, Clara Peuthert, também ela paciente do Hospital, captou a atenção de milhões, ao afirmar que a sua misteriosa companheira não era outra senão a Grã-Duquesa, Tatiana Romanov. Seguiu-se um corrupio de visitas de refugiados russos e parentes europeus da família imperial que, de algum modo, tinham privado com a malograda princesa. Em breve se concluiu que a desconhecida não podia ser Tatiana. Foi então que veio a terreiro uma enfermeira, revelando que se tratava da filha mais nova do czar, Anastasia Nicolaevna, com 17 anos à data da tragédia. Não foi apenas uma moda. Durante décadas, Anna Anderson (nome oficial da desconhecida) foi apresentada ao mundo como a sobrevivente da tragédia que vitimara toda a família imperial russa, inspirando filmes (como Anastasia, com Ingrid Bergman no principal papel, e uma longa-metragem de animação da Disney), romances, artigos de jornal, séries de televisão e muitos sonhos. Este enigma só se resolveria, em plena década de 90, quando, no coração da Rússia, foram encontrados e identificados, por reconstituição óssea e análise de ADN, todos os membros da família imperial. O caso parecia, pois, encerrado. No entanto, quase 100 anos depois da tragédia, o historiador russo  Veniamin Alekseyev  acaba de publicar um livro, em que põe em causa estes resultados e considera que Anna Anderson e a Grã-Duquesa Anastasia podem ter sido, afinal, a mesma pessoa. Fundamenta-se na análise de documentos até aqui classificados do Arquivo Nacional Russo e na evidência de que ao novo poder soviético não convinha desagradar à Alemanha, com quem assinara uma paz separada. Ora, as filhas do czar eram, pelo lado materno, princesas de sangue alemão. A questão agora é saber quem realmente mentiu em todo este imbróglio apaixonante: Anna Anderson e demais candidatas à identidade de Anastasia ou as autoridades russas, que, na ressaca do desmantelamento da URSS, quiseram rapidamente encontrar mártires congregadores da identidade nacional?

 

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Ao longo dos séculos foram muitos os aventureiros que jogaram na roleta de se fazerem passar por figuras de nascimento real, quase sempre prematuramente desaparecidas em circunstâncias trágicas. Em Portugal, por exemplo, não foram poucos os casos de homens que, no rescaldo de Alcácer-Quibir e da perda da independência, angariaram fidelidades e algumas vantagens temporárias, ao declararem ser Dom Sebastião regressado de Marrocos. Natural de Madrigal, em Castela, um pasteleiro habilidoso e bem falante chegou mesmo a aproximar-se com sucesso de gente da Corte que conspirava contra os Filipes. Acabou condenado à morte e exposto na praça pública, para instrução de potenciais sediciosos.


Mentiras políticas

 

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A elaboração intelectual que distingue a mitomania da vulgar mentira pressupõe quase sempre a obtenção de uma vantagem política ou financeira. Já na nossa época, o Presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, sustentou uma complicada trama para afirmar que nada tinha a ver com a espionagem feita por Republicanos no edifício Watergate, sede do Partido Democrata, seu opositor, em Washington. Mas a investigação levada a cabo pelos jornalistas do Washington Post, Bob Woodward e Carl Bernstein, demonstraria não só o seu envolvimento direto neste escândalo como uma sucessão de abusos de poder nada recomendados pela Constituição dos Estados Unidos. Assim exposto, foi forçado a resignar às funções a 9 de agosto de 1974, tornando-se o único Presidente da História do país a sofrer tal humilhação.

 

Contemporânea das mentiras de Nixon é a verdadeira saga de Frank Abagnale Jr, que Steven Spielberg e Leonardo DiCaprio imortalizaram no filme Apanha-me se Puderes. Génio da falsificação e do jogo que esta pressupõe, o rapaz ganhou milhões de dólares antes de chegar aos 19 anos de idade, alegando ser um médico, advogado e piloto da PAN AM. A sua especialidade era a falsificação de cheques e, uma vez na prisão, acabou por se tornar consultor do FBI nesta área tão delicada. Hoje é uma das maiores autoridades mundiais mais respeitadas na deteção de falsificações.

 

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De final bem menos benigno foi o caso do português Alves dos Reis que, nos loucos anos 20, se tornou uma celebridade mundial graças à argúcia com que ludibriou as autoridades financeiras e policiais. A sua carreira como falsificador iniciou-se quando, para emigrar para Angola, falsificou um diploma de Oxford que garantia ser dono de estudos de Engenharia, Geologia, Geometria, Física, Matemática e mais uma série de disciplinas técnicas da maior complexidade. Ante o sucesso da operação, tornou-se mais ousado. Com um cheque sem cobertura, comprou a maioria das ações da companhia dos Caminhos de Ferro Transafricanos de Angola, em Moçâmedes Tornou-se rico e ganhou prestígio.

 

De volta a Lisboa, em 1922, adquiriu uma empresa de revenda de automóveis americanos. Depois tentou apoderar-se da Companhia Ambaca. Para o conseguir, passou cheques sem cobertura e usou depois o dinheiro da própria Ambaca para cobrir os cheques sobre a sua conta pessoal. Ao longo de 1925 começaram a surgir rumores de notas falsas, mas os especialistas de contrafação dos bancos não detetaram nenhuma irregularidade. A partir de 23 de novembro  de 1925, Alves dos Reis e os negócios pouco transparentes do Banco de Angola e Metrópole começam a atrair a curiosidade dos jornalistas de O Século, o mais importante diário português de então. O que os jornalistas tentavam perceber era como era possível que o Banco de Angola e Metrópole concedesse empréstimos a taxas de juro baixas, sem precisar de receber depósitos. Inicialmente pensou-se que se tratava de uma tática alemã para perturbar o país e obter vantagens junto da colónia angolana.

 

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A burla é publicamente revelada em 5 de dezembro de 1925 nas páginas de O Século. O património do Banco de Angola e Metrópole foi confiscado e obtidas provas junto da Waterlow & Sons Limited. Alves dos Reis, de 28 anos, é preso a 6 de dezembro, quando se encontrava a bordo do Adolph Woerman ao regressar de Angola

 

Foi finalmente julgado em Lisboa, no Tribunal de Santa Clara, em maio de 1930, e condenado a 20 anos: oito de prisão e 12 de degredo ou, em alternativa, 25 anos de degredo. Durante o julgamento, alegou que o seu objetivo era simplesmente desenvolver Angola.

 

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A exorbitância do preço a pagar por estas mitomanias que, uma vez desvendadas, se tornaram crimes públicos é o outro lado da moeda. Que o diga o ciclista norte-americano Lance Armstrong, obrigado a admitir publicamente que as suas sete vitórias na Volta à França se tinham devido ao uso de substâncias ilícitas durante as provas. À suprema glória sucede a mais irreversível e implacável das condenações: o descrédito e o isolamento.


Uma mentira mil vezes repetida…

 

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Sabia que…

 

  • Walt Disney não sabia desenhar e nunca desenhou nenhuma das suas personagens. Durante muitos anos foi dito que Mickey Mouse tinha sido criado por ele, mas atualmente sabemos que foi obra exclusiva do desenhista Ub Wickers que deixou Disney compartilhar a autoria para lhe devolver um favor.

 

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  • À data da sua tomada pelos revoltosos, a Bastilha não tinha presos políticos. Os parisienses só encontraram ali sete presos, todos aristocratas (entre eles o marquês de Sade), encarcerados pelos chamados “delitos de nome”: não pagar dívidas, matar um rival num duelo...

 

  • Os míticos cemitérios de elefantes não existem. O aparecimento de um grande número de ossadas de paquidermes num mesmo lugar fez crer que existiam locais a que elefantes se dirigiam voluntariamente para morrer. O mistério foi explicado pelo biólogo Rupert Sheldrake, para quem os exemplares idosos ou doentes de uma mesma manada passavam a viver próximos das fontes de água e morriam ali.
    • O imperador Nero não lançou fogo a Roma a 19 de julho de 64. Na realidade, encontrava-se na sua villa de Anzio, a mais de 50 quilómetros do local, e não se inteirou do sucedido senão umas horas depois. Nero foi responsável, sim, por uma grande operação de salvamento e auxílio, que passou pela rápida montagem de hospitais de campanha.

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