Alain Delon. Da imagem de sex symbol à aproximação à extrema-direita

Um ícone do cinema francês e de um tempo que já não existe. Nos últimos anos, tornou-se admirador das políticas de extrema-direita da Frente Nacional e fez algumas observações recrimináveis sobre esbofetear mulheres.

Foto: Getty Images
19 de agosto de 2024 às 18:32 Madalena Haderer

Em 2018, quando fez 60 anos de carreira, Alain Delon deu uma entrevista à Paris Match durante a qual disse o seguinte: "A vida não me interessa grande coisa. Conheci de tudo, vi de tudo. Odeio a época atual, dá-me vontade de vomitar. Há gente detestável. É tudo falso. Já não há respeito, a palavra dada já não tem valor. O dinheiro é tudo o que interessa. Só ouvimos falar de crimes. Deixarei este mundo sem pena." Um ano depois, em 2019, teve um AVC e ficou muito debilitado. Morreu ontem, 18 de agosto, aos 88 anos.

O ator francês tinha qualquer coisa de felino, de enigmático, de perigoso. Foi talvez o primeiro ator de cinema bonito, de uma beleza mais delicada, menos marcadamente masculina que Paul Newman ou Robert Redford. Há uma fotografia da atriz Marianne Faithfull, sentada num sofá entre ele e Mick Jagger – possivelmente o mais felino e sensual dos homens – e a atenção dela está toda virada para Delon. A sua figura delgada e profundos olhos azuis enchiam qualquer sala e não davam hipótese a qualquer outro homem, fosse ele quem fosse.

PUB
Foto: Getty Images

Representou os seus papéis mais memoráveis nas décadas de 60 e 70, quase sempre personagens frios ou assassinos calculistas. O rosto angular e desconcertante prestava-se bem a isso. As suas feições impassíveis eram como uma folha em branco onde os realizadores podiam construir as suas personagens, plenas de paixão e perversidade. Nunca foi uma estrela de Hollywood, mas foi o ator fetiche de alguns dos realizadores mais famosos daquele tempo, como Luchino Visconti, Louis Malle, Joseph Losey, Jean-Pierre Melville e Michelangelo Antonioni.

Como tantas vezes acontece, o seu início de vida foi pouco promissor. Os pais divorciaram-se quando ele tinha quatro anos. Na sequência disso, foi viver com uns pais adotivos até à morte destes, num acidente de automóvel. Volta, então, a viver com a mãe e com um padrasto talhante de quem se tornou (relutantemente) aprendiz, aos 14 anos. Foi expulso de várias escolas por mau comportamento e o seu percurso académico foi caótico – a escapatória a uma vida que não desejava não viria por aí.

PUB
Foto: Getty Images

Aos 17 anos alistou-se na Marinha e serviu na Indochina, como paraquedista. Dos seus quatro anos de serviço militar, passou 11 meses preso por ser indisciplinado. A hierarquia e a estrutura rígida da vida militar também não era para ele: em 1956 foi afastado com dispensa desonrosa. Regressou à vida civil e fez um pouco de tudo para sobreviver. Um ano depois, foi ao Festival de Cinema de Cannes com uns amigos atores e a sua imagem chamou a atenção de um caçador de talentos, mas foi por intermédio de um desses seus amigos que conseguiu o seu primeiro papel no filme Quand la Femme s’en Mêle, de 1957, realizado por Yves Allégret. 

Em 1958, participou no filme Christine, uma história de amor passada em Viena – o seu primeiro grande papel num filme romântico –, onde contracenou com a famosa atriz Romy Schneider. Os dois apaixonaram-se durante as filmagens e a relação durou quatro anos, mas Delon e Schneider permaneceram próximos até à morte desta em 1982.

PUB
Foto: Getty Images

A fama internacional chegou a interpretação de Tom Ripley, a famosa personagem criada pela escritora Patricia Highsmith, no filme Plain Soleil, de 1960. O charme e frieza ambíguos da personagem – que fazia esquemas para roubar a roupa, o iate e a namorada do seu amigo – assentavam-lhe como uma luva. Outro grande sucesso chegou em 1963, com o papel do jovem revolucionário cínico Tancredi, no famoso filme italiano O Leopardo, de Visconti. La Piscine, um thriller psicológico de 1969, realizado por Jacques Deray, onde contracenou com Romy Schneider e com uma jovem Jane Birkin, é também um dos pontos altos da sua carreira.

Nos últimos anos, Alain Delon tornou-se admirador das políticas de extrema-direita da Frente Nacional – era amigo próximo de Jean-Marie Le Pen, pai de Marine Le Pen, do partido Reagrupamento Nacional (RN), que perdeu as eleições parlamentares em França em julho passado, para a esquerda francesa. Delon também fez algumas observações recrimináveis sobre esbofetear mulheres – tal como Sean Connery, de resto. Em 2019, o Festival de Cannes esteve debaixo de fogo por ter decidido avançar com a atribuição do prémio honorário Palma d'Ouro, apesar destes seus comentários misóginos, e de outros que fez, contra a adoção de crianças por casais do mesmo sexo.

PUB

Foi, até ao fim, um ícone dum tempo que já não existe. Para o bem e para o mal.

leia também
PUB
PUB