Começar a falar connosco próprias como se fossemos outra pessoa, quer seja em frente ao espelho, à secretária, dentro do carro ou a empurrar um carrinho de compras no supermercado, é capaz de dar direito a que um ente querido nos ofereça um voucher para consultas de psiquiatria – ou uma camisa de forças. Para o espectador desavisado, dar com uma pessoa a falar sozinha como se estivesse envolvida num diálogo pode causar um certo alarmismo. E, no entanto, em vez de um sinal de loucura temporária – ou permanente – é, isso sim, uma técnica psicológica que ajuda a enfrentar desafios, a atravessar adversidades e até a fugir da preguiça.
Num post de Instagram recente, Vasavi Kumar, autora do livro Say It Out Loud (sem edição em português), fala sobre o poder e a transformação que advêm de ouvirmos os nossos pensamentos mais profundos na nossa própria voz. Kumar diz que é possível “reprogramar o cérebro” quando falamos connosco em voz alta, endereçando-nos na segunda pessoa, usando o nosso nome próprio. Algo que, no campo da psicologia, é chamado de "distanced self-talk" ou auto-conversa distanciada.
A autora explica o que isto significa usando-se a si própria como exemplo: “Se eu disser ‘Vasavi, tu consegues fazer isto. Vasavi, tu consegues lidar com isto’ o cérebro processa a informação de forma diferente. Em vez de nos afogarmos em emoções [ansiedade, medo de falhar, hesitação, etc.], o córtex pré-frontal activa-se. Essa é a parte do cérebro que nos dá perspectiva, capacidade de resolver problemas e que nos acalma.” Kumar acrescenta ainda que investigações demonstram que usar esta técnica “reduz o stress, regula o sistema nervoso e ajuda-nos a tomar decisões melhores”.
E, de facto, um artigo publicado na Psychology Today, uma revista norte-americana dedicada a temas de psicologia, saúde mental, comportamento humano e desenvolvimento pessoal, refere uma investigação que corrobora esta ideia, acrescentando que o discurso tanto pode ser na segunda pessoa, de acordo com o exemplo de Vasavi, ou na terceira pessoa, como vemos, frequentemente, os futebolistas fazerem durante entrevistas: “O Ronaldo entrou bem em campo. O Ronaldo está num bom momento da sua carreira e, por isso, o Ronaldo vai fazer um bom campeonato”, diz o Ronaldo.
Num estudo colaborativo, que reuniu os investigadores Ethan Kross, do Laboratório de Emoção e Autocontrolo na Universidade do Michigan, e Jason Moser, diretor do Laboratório de Psicofisiologia Clínica da Universidade Estadual do Michigan, cada um destes laboratórios usou métodos diferentes para monitorizar a atividade cerebral durante o processo cognitivo de falar consigo próprio, usando o nome do participante no estudo ou o pronome de primeira pessoa – ”eu” –, enquanto este via imagens neutras e perturbadoras ou recordava uma memória autobiográfica negativa.
No resumo, os autores apresentaram o estudo e as conclusões a que esperavam chegar da seguinte forma: “Será que falar silenciosamente consigo próprio na terceira pessoa constitui uma forma relativamente fácil de autocontrolo? A nossa hipótese era que sim, partindo do princípio de que a auto-conversa sem ser na primeira pessoa leva as pessoas a pensarem em si mesmas de forma semelhante a como pensam nos outros, o que lhes proporciona a distância psicológica necessária para facilitar o autocontrolo.”
Na primeira experiência, que decorreu no Laboratório de Psicofisiologia Clínica, Moser e a sua equipa monitorizaram a atividade cerebral emocional usando eletroencefalografia e descobriram que a aflição emocional diminuía muito rapidamente (dentro de um segundo) quando alguém começava a referir-se a si próprio na segunda ou terceira pessoa.
Já na segunda experiência, que teve lugar no Laboratório de Emoção e Autocontrolo, a equipa pediu aos participantes que refletissem sobre memórias negativas usando linguagem na primeira pessoa ou na segunda pessoa. Ou seja, os participantes foram instruídos a usar “eu” ou a usar o nome próprio enquanto relatavam experiências emocionalmente dolorosas, ao mesmo tempo que a sua atividade cerebral era monitorizada por ressonância magnética funcional. Kross e os seus colegas descobriram que os participantes que usavam auto-conversa sem ser na primeira pessoa exibiam menos atividade cerebral na região de processamento autorreferencial (isto é, o córtex pré-frontal medial), que está normalmente associada à reflexão sobre experiências emocionais dolorosas e à ruminação.
Embora os investigadores considerem necessário fazer mais pesquisas sobre esta questão, Kross não deixa de sublinhar que estas duas experiências sugerem que a auto-conversa na segunda ou terceira pessoa constitui “uma forma relativamente fácil de regular as emoções”. E se Vasavi Kumar acredita que a auto-conversa deve decorrer em voz alta, já estes dois investigadores do Michigan consideram que o discurso pode ser silencioso, e existir apenas dentro da cabeça de cada um.
De uma forma ou de outra, difícil de pôr em prática, não é certamente. Vamos experimentar: “Madalena, eu sei que estás cansada, mas vá, tu consegues, acaba lá de escrever este texto.” Olha, e não é que resultou?