"Vamos assistir à personalização extrema, com perfumes criados através de inteligência artificial"

Este perfumista formado em Paris é o único português membro da Société Française des Parfumeurs, uma associação profissional francesa dedicada à arte e à ciência da perfumaria. A Máxima falou com ele a propósito da sua nova criação, a fragrância Esperança, e aproveitou para lhe perguntar tudo sobre como fazer um perfume.

Lourenço Lucena, perfumista português, defende abolição de categorias de género em perfumarias Foto: @lourenco.lucena
19 de setembro de 2025 às 12:16 Madalena Haderer

Com um percurso profissional que começou na Comunicação Empresarial, desde criança que Lourenço Lucena se sente fascinado com cheiros e aromas. E nunca esqueceu os verões passados em casa dos avós, no Monte Estoril. “Recordo-me das flores de todas as cores e aromas frescos e florais, do grande pinheiro verde e resinoso e da aromática lúcia-lima, do estrume no picadeiro onde aprendi a montar a cavalo, das madeiras húmidas dos estábulos e do cheiro dos fardos de palha, entre tantas outras boas memórias”, conta à Máxima, numa entrevista por escrito. 

Essas memórias olfativas da infância cresceram e ganharam raízes e, hoje, Lucena é um dos profissionais que colocaram Portugal no mapa da alta perfumaria. O perfumista é um verdadeiro mestre na arte de traduzir conceitos e atmosferas em moléculas, razão pela qual tem sido muito procurado para criar fragrâncias exclusivas para marcas e espaços icónicos, desde hotéis como o Ritz Four Seasons e o Memmo Hotels, a projetos com a BMW, o JNcQUOI e José Avillez.

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Esperança é a sua criação mais recente – um ambientador desenvolvido para a Terra dos Sonhos, uma associação portuguesa sem fins lucrativos que trabalha com crianças, jovens e adultos em vulnerabilidade. A fragrância propõe uma jornada emocional em camadas, do brilho inicial ao conforto final, pretendendo despertar alegria, esperança, luz, empatia, cuidado, ternura, proteção, conexão e memória. A que é que cheira? Simples: “É a ternura da lavanda que acalma o peito, o brilho da flor de laranjeira que recorda a infância, o abraço quente da baunilha que conforta o coração. É o toque do jasmim quando a alma precisa florescer”, de acordo com o manifesto olfativo que o perfumista partilhou com a Máxima, numa conversa que se focou também nos mitos da perfumaria, no futuro da indústria, e através da qual ficámos a saber mais sobre esta forma de arte que transforma aromas em narrativas.

O ambientador Esperança custa €25 e pode ser adquirido na .

Lourenço Lucena lança "Esperança", fragrância com inspiração na arte da perfumaria Foto: DR

Como é um dia na vida do perfumista Lourenço Lucena? 
A maior parte do tempo passo-o no meu atelier, em Lisboa, a trabalhar em projetos pessoais e para clientes. Ainda assim, gosto de sair e descobrir locais e pessoas que me inspirem e desafiem. Digo muitas vezes que devíamos ser mais turistas na vida. Ter esse espírito de descoberta do novo. A vida não está toda entre quatro paredes e, para um criativo, muitas vezes, a inspiração vem precisamente dessa descoberta. Desse acumular de ideias, referências e histórias. Quando estou no atelier, posso ter diferentes ocupações. A primeira fase da criação de uma fragrância passa por uma pesquisa profunda, uma análise e contextualização do projeto e do seu perfil para poder passar à fase de escolha das matérias-primas que melhor se ajustam à narrativa olfativa que pretendo criar. Segue-se a formulação, que é o momento em que defino a quantidade de cada aroma/matéria-prima – um trabalho demorado, intenso, envolvente e de muita tentativa e erro. É um trabalho de precisão e alquimia.

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O Lourenço já desenvolveu fragrâncias para hóteis e outros espaços. Que diferenças identifica entre desenvolver um perfume para pessoas e um perfume para um espaço? 
Embora o processo seja o mesmo, é muito diferente. Para uma marca, o foco é traduzir os seus valores, posicionamento e universo simbólico. Para lá chegar, é necessário compreender a estratégia de branding, público-alvo, concorrência e a mensagem que a marca quer comunicar. No final, o que se pretende é que o aroma seja um embaixador sensorial da marca, capaz de ser reconhecido, gerar identificação coletiva e ligação emocional e física. Ter a capacidade de criar um território olfativo próprio e diferenciado. Para uma pessoa, o foco é traduzir a personalidade, preferências e memórias olfativas. Tenho que conhecer a pessoa por dentro e por fora. Envolve entrevistas, vários encontros, testes olfativos e a busca por notas que despertem emoções ou transmitam uma identidade íntima. No final, o que pretendo é criar algo único, que funcione quase como uma “extensão invisível” da pessoa É um processo bastante subjetivo, emocional, diretamente ligado ao gosto individual, ao estilo de vida e, muitas vezes, ao momento de vida da pessoa. Um processo demorado e meticuloso. Tomemos como exemplo o perfume Esperança, criado para a Terra dos Sonhos. Esta associação tem uma missão profundamente sensorial: despertar emoções, inspirar esperança e criar experiências transformadoras, especialmente para pessoas em situações vulneráveis. A criação deste aroma pretendeu refletir o espírito acolhedor, mágico e empático que representa a Terra dos Sonhos. A vantagem é que eu já conhecia a associação, porque a minha filha Matilde já tinha beneficiado de um programa inesquecível e mágico, feito à medida dela.

Quais são as diferenças fundamentais entre uma fragrância para homem e uma fragrância para mulher?
A distinção entre perfumes masculinos e femininos não é rígida – é cultural, histórica e de mercado. A perfumaria contemporânea, em particular a de nicho, tem vindo a quebrar essas fronteiras, apresentado aromas sem género, para serem usados por quem se identifica com eles. Ainda assim, existem diferenças fundamentais que se repetem no design olfativo tradicional. Nas fragrâncias convencionadas como masculinas, encontramos madeiras (sândalo, cedro, vétiver...), especiarias secas (pimenta preta, noz-moscada...), ervas aromáticas (lavanda, alecrim, sálvia...), cítricos mais frescos. Estes aromas tendem a passar força, sobriedade, elegância, frescor, virilidade. Já nas fragrâncias convencionadas como femininas, encontramos notas florais (rosa, jasmim, íris, tuberosa...), frutadas (pêssego, frutos vermelhos, pêra...), gourmands (baunilha, caramelo, ameixa madura), âmbar, almíscares suaves. Estas composições tendem a ser mais complexas, facetadas, com evoluções ricas entre as notas de topo, centro e fundo. Isto é, composições que realçam a delicadeza, sensualidade, romantismo, doçura ou sofisticação associadas a este público.

Considera-se mais um artista ou um cientista quando cria perfumes?
Sou um compositor de perfumes. Um artista das emoções. Um alquimista dos sentidos. Acima de tudo, um privilegiado por ter a capacidade técnica e sensitiva de contar boas histórias olfativas.

Lourenço Lucena defende o fim das categorias de género nas perfumarias Foto: @lourenco.lucena

Em que é que se inspira quando começa a criar um novo perfume? 
Tudo pode servir como inspiração. No dia-a-dia, diria que me inspiro em memórias, emoções, lugares, artes, pessoas, marcas, uma música, uma cor ou até conceitos abstratos. O perfume é uma narrativa invisível fascinante, que tem o poder de contar uma história que se descobre pelo nariz.

Consegue explicar o exercício de transformar um briefing de um cliente – por exemplo, um perfume que faça lembrar a praia, mas uma praia sofisticada e elegante, com um toque floral, como um casamento na praia, ao pôr-do-sol, mas junto a um pomar de limões – numa fragrância? Como é que o perfume sai do mundo das ideias e ganha existência física?
Gosto desse briefing… É exatamente o ponto de partida da perfumaria criativa: transformar uma imagem, uma memória ou um conceito numa composição única. Primeiro, o desafio é trazer o briefing para o universo olfativo: desenhar uma paleta mental de aromas que traduzem cada ideia ou sensação. Depois desse manifesto olfativo [texto-guia ou declaração de intenções que o perfumista escreve para acompanhar uma criação] bem definido na minha cabeça, passo para a escolha de matérias-primas, selecionando os aromas que melhor me permitem traduzir a ideia. O passo seguinte é a formulação seguindo a estrutura de pirâmide olfativa, conjugando notas de topo, de centro e de fundo, usando as matérias-primas escolhidas, testando em tiras de papel (“mouillettes”) para avaliar e ajustar a harmonia. É um processo interativo, com avanços e recuos: mistura-se, avalia-se, ajusta-se – às vezes tenho dezenas ou centenas de versões, até ao momento em que sinto fisicamente que cheguei lá – uma sensação de libertação e despojo. É o meu sinal de que terminei.

Quanto tempo demora, em média, a desenvolver um perfume do zero até ao frasco final?
O tempo pode variar bastante, em função do briefing, contexto e manifesto olfativo. Em média, o tempo de desenvolvimento de A a Z pode andar entre 6 e 18 meses.

Como é que decide se uma combinação de notas funciona? 
É uma excelente pergunta. Diria que não depende de um único fator, mas de um equilíbrio entre intuição, experiência e experimentação. Muitas vezes, só de imaginar os ingredientes juntos, já consigo prever se haverá harmonia ou algum tipo de conflito. Esta sensibilidade vem de um treino intenso do olfato e da capacidade de memorização das matérias-primas e dos efeitos de cada uma. Por outro lado, a experiência dá repertório: saber que limão + gengibre funciona bem para uma nota fresca e picante, ou que rosa + patchouli trazem uma nota floral sedutora e elegante. O conhecimento técnico também é determinante para saber que algumas matérias-primas são dominantes, outras são voláteis demais ou outras só brilham em pequenas quantidades. A experiência vale ouro, para otimizar o tempo e para evitar erros desnecessários. No fim, a teoria precisa de ser validada. Daí a importância da mistura, do sentir, e avaliar em papel e na pele. Até porque, muitas vezes, algumas composições só revelam a sua força ou fraqueza no teste físico. O ajuste é inevitável no processo de composição. Pequenas variações na composição – às vezes 0,1% de um ingrediente – alteram radicalmente o acorde olfativo.

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Existem regras de ouro que não devem ser quebradas na criação de perfumes? 
Sim, na perfumaria existem algumas regras de ouro que funcionam como guias fundamentais. Embora, muitas vezes, o que me desafia seja, justamente, o descobrir quando e como não as respeitar. A primeira, e talvez a mais importante, é que uma fragrância deve ter uma narrativa evolutiva, que se descobre e revela: um início surpreendente, um coração expressivo e consistente e uma base sólida e bem sustentada. A segunda: uma composição tem de ter harmonia e coerência olfativa, ou seja, os vários aromas têm de estar bem interligados, respeitando-se e criando uma só voz olfativa. A terceira: diria que o uso consciente de matérias-primas é fulcral. Algumas notas são tão fortes e poderosas que devem ser usadas em quantidades mínimas. Neste grupo de matérias-primas temos, por exemplo, os aldeídos, a civete, o jasmim absoluto ou o patchouli – o excesso pode dominar a composição e arruinar a harmonia aromática. A quarta regra está relacionada com a estabilidade e segurança. A fragrância deve ser estável na fórmula: não pode oxidar rápido, mudar de cor de forma indesejada ou perder força em pouco tempo. De nada serve ser uma composição incrível se depois é altamente volátil e pouco tenaz. Por outro lado, deve também respeitar as normas de segurança estabelecidas pela IFRA (International Fragrance Association), já que algumas matérias-primas são limitadas por risco de alergias ou toxicidade. Por fim, uma fragrância tem de ter uma mensagem, uma referência olfativa. Caso contrário, torna-se um caos de notas sem foco. Se não se consegue descrever a composição em duas ou três palavras (por exemplo: “cítrico elegante”, “floral romântico”, “amadeirado intenso”), é porque a identidade está confusa e a necessária harmonia não se cumpriu. Em suma, as regras de ouro servem como base técnica e estética. O desafio está em dominar essas regras para depois ter liberdade na criação.

Lourenço Lucena, perfumista português, fala sobre a indústria e o futuro da perfumaria Foto: DR

Há algum mito sobre perfumes que gostasse de desmistificar? 
Há vários mitos que importa definitivamente desmistificar. “Os perfumes têm género” – não defendo esta ideia e acho mesmo que se devia abolir as categorias “Masculino” e “Feminino” nas perfumarias. “O perfume dura o mesmo em todas as pessoas” – não é verdade. A fixação varia conforme o tipo de pele, alimentação, clima e até o pH da pele. O mesmo perfume pode durar 10 horas na pele de uma pessoa e duas horas noutra. “Perfume mais caro é sempre melhor” – não concordo. O preço de um perfume é definido pelo posicionamento, marketing, exclusividade, embalagem e, por vezes, pelas matérias-primas. Por essa razão, existem perfumes de mass-market muito bem construídos, assim como há perfumes super caros que decepcionam. “Esfregar os pulsos ativa o aroma da fragrância” – é exatamente o contrário. Esfregar destrói as moléculas mais voláteis e pode distorcer a nota de saída da fragrância. O melhor é deixar secar naturalmente.

Outro mito que eu próprio tinha e que acabei por descobrir que não é verdade é que aromas naturais são melhores do que aromas sintéticos. Nem sempre é assim. Aromas sintéticos são essenciais para dar estabilidade, fixação e até recriar aromas impossíveis de extrair da natureza, como o mar, o lírio-do-vale, a dama da noite ou a folha de figueira. Além disso, aromas naturais podem ser mais propensos a causar alergias ou a terem variações, decorrentes de alterações climatéricas, por exemplo. Aromas sintéticos são, neste sentido, bem mais estáveis que os naturais. 

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Por fim, “uma fragrância cheira o mesmo na pele ou no frasco” – falso. O aroma transforma-se no contato com a pele, pela temperatura do corpo, oleosidade e química corporal. Todos estes elementos influenciam a representação olfativa de um aroma na pele. Por essa razão, escolher um novo perfume é algo que deve ser ponderado e sem pressa, para que depois de uma primeira seleção se possa sentir na pele como evoluem os aromas que mais se aprecia.

Na sua opinião, como será a perfumaria do futuro? 
A perfumaria do futuro está a ser redesenhada por tecnologia, sustentabilidade e novas formas de expressão cultural. Antes de mais, ao nível da sustentabilidade e transparência, com o uso crescente de ingredientes renováveis, biotecnologia e química verde, com o exemplo do patchouli cultivado em laboratório, almíscares sintéticos em vez de derivados animais e a transparência nas fórmulas. Os consumidores querem saber de onde vêm as matérias-primas, se são éticas e seguras. Depois, a importância da biotecnologia para a criação de novos aromas – moléculas únicas que não existem na natureza –, algo que contribui para a expansão dos catálogos de matérias-primas, bem como para a possibilidade de termos composições mais estáveis, menos alergénicas e mais duradouras.

Vamos certamente assistir à personalização extrema, com perfumes criados à medida através de algoritmos e inteligência artificial (IA), que analisam gostos pessoais e geram fórmulas certeiras. Experiências interativas em que o consumidor “co-cria” a sua fragrância, em tempo real, com apoio de IA, irão aparecer daqui a nada, certamente.

Quero, igualmente, acreditar que os perfumes podem vir a ser um importante elemento para o reforço da identidade cultural e política dos países. Expressar a identidade de um país através de um aroma é criar uma ligação física e emocional com esse território. Uma afirmação sensorial única. Não percebo, como ainda não aconteceu e quero muito fazer parte da mudança desse estado apático em que as marcas-território se fundearam.

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Há muito que me considero um sensorialista que pugna pela consciência da importância dos sentidos para uma vivência mais física, mais humana e mais conectada. Nesse sentido, a integração com música, arte, realidade virtual e ambientes imersivos, pode ser uma forma de aliarmos o real ao digital, alavancando a nossa experiência de vida. Diria ainda que a perfumaria pode ganhar outra importância na conexão entre saúde e bem-estar, através da criação de perfumes com função além do estético, como relaxamento, foco, energia, com a aromaterapia e neurociência aplicadas e, até mesmo, o uso em wearables ou difusores inteligentes que adaptam a fragrância ao humor do utilizador. 

Em resumo, acredito que a perfumaria do futuro será mais ética, tecnológica, personalizada e artística, indo além de “cheirar bem” para se tornar uma forma de expressão e bem-estar integrada ao nosso quotidiano.

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