Pílula, um pequeno milagre
É a maior descoberta no universo da saúde, logo a seguir à penicilina. No aniversário da Máxima seria imperdoável esquecer aquele que será, porventura, um dos mais feministas avanços científicos, considerado pelo The Economist como uma das sete maravilhas do mundo moderno.

Conceber um bebé é a motivação menos frequente para a maioria das pessoas terem sexo. E esta é a verdade Antes e Após Pílula. Dizer o contrário é falhar uns episódios históricos relevantes e esquecer que Planeamento Familiar é um termo moderno que veio substituir outros métodos contracetivos usados, sem sucesso, ao longo do tempo. Mercúrio e chumbo faziam parte da composição de uma bebida consumida por mulheres chinesas que, séculos atrás, acreditavam assim controlar a fertilidade. Mas já na Idade Média usavam-se amuletos e cumpriam-se rituais para evitar gravidezes não desejadas. Se a primeira opção resultava em mortes, a segunda resultava em nada, porque de nada valia dar três voltas em torno do local onde uma loba grávida tinha urinado. Ao longo de várias gerações, mulheres de vários cantos do mundo experimentaram ervas, mezinhas e até a ingestão de uma papaia por dia (na Índia), muito antes de haver um cientista inglês (1993) a provar que, de facto, a papaia apresentava uma enzima, a papaína, que interfere com a progesterona na inibição de uma gravidez.
Embora apenas tenha surgido na década de 60, a pílula já ‘existia’ na cabeça de muitas mulheres. Dito isto, há pelo menos dois mitos que caem por terra. Pílula e Revolução Sexual: quem já não inverteu a ordem dos acontecimentos que atire a primeira pedra. É comum ‘culpar-se’ a pílula por alguns dos comportamentos da chamada ‘revolução sexual’ dos anos 60 e 70, nomeadamente a libertação sexual das mulheres, o crescimento das uniões de facto, das mães solteiras e da exposição do sexo aos holofotes dos media. Mas hoje sabe-se que a pílula só surgiu depois, em pleno contexto de ‘revolução sexual’, ao qual trouxe a desejada e boa notícia de haver um contracetivo a rondar os 100% de eficácia, que acabaria por estabelecer as bases do Planeamento Familiar nos Estados Unidos e em vários outros países do mundo.

Também é comum darmos os louros ao cientista norte-americano Gregory Pincus, conhecido como o ‘pai da pílula’. Mas seria injusto não mencionar a determinação de duas feministas chamadas Margaret Sanger e Katharine Dexter. Antes de haver pílula, já Margaret tinha conquistado (ou inventado) o direito ao planeamento para as mulheres. Em 1916, abriu a sua primeira clínica de planeamento familiar nos Estados Unidos e, anos depois, fundou a Liga de Planeamento Familiar (que daria lugar à Federação). Só faltava descobrir um método que evitasse a gravidez. Margaret já tinha 70 anos quando decidiu visitar um laboratório em Massachusetts, cujas pesquisas considerava promissoras. Consigo levou Katharine McCormick, uma amiga ansiosa por dar uso a uma valiosa herança. Foi assim que conheceram o biólogo Pincus, o qual financiaram e motivaram, com o objetivo de concluir o sonho de ambas: a criação de um método contracetivo, eficaz e seguro, e controlado por mulheres.
Mas não menosprezemos Pincus. A história da pílula é feita de altos e baixos e marca os passos da mulher a partir dos anos 1960, altura em que a pílula é aprovada como contracetivo. “A separação entre procriação e sexo, o controlo do corpo e da natalidade, o início de uma prática de planeamento familiar – desde logo, e ainda hoje, integralmente assumida pelas mulheres – permitiu-lhes estruturar as suas vidas de forma distinta: um percurso escolar, o assumir de uma profissão e a construção de uma carreira profissional, a decisão sobre quantos filhos ter e quando os ter e o ter uma vida sexual ativa não necessariamente subordinada a uma relação de casamento”, contextualiza Catarina Sales Oliveira, investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (CIES-IUL) e vice-presidente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade da Beira Interior (UBI).

A pílula é hoje o contracetivo mais popular, estimando-se que seja utilizada por mais 100 milhões de mulheres. Em Portugal, “segundo o último estudo das Práticas Contracetivas em Portugal, 58% da população feminina com vida sexual ativa (ou seja, que precisa de contraceção) utiliza a pílula. O uso é transversal a todos os grupos etários, mas mais frequente nas mulheres com menos de 40 anos”, revela Teresa Bombas, presidente da Sociedade Portuguesa da Contraceção.
Além de ser o método mais utilizado, é também aquele que, ao fim de mais de 50 anos, continua a suscitar mais questões, explica Paula Pinto, do projeto Sexualidade em Linha, apoiado pela Associação de Planeamento Familiar para esclarecer dúvidas sobre saúde sexual.

Em 1965, porém, apenas 35% das mulheres casadas nos Estados Unidos usavam este método ou planeamento familiar. Também no Reino Unido, a pílula estava interdita a mulheres solteiras. “Em termos internacionais e também em Portugal, a sua venda foi permitida (Santos, 2010), contudo a pílula não chegou de forma igual a todas as mulheres. As mulheres rurais continuaram a ter muitos filhos, da mesma forma que continuaram largos anos a serem maioritariamente analfabetas e, ainda hoje, são quem protagoniza os percursos escolares de menores qualificações”, recorda a professora Catarina Sales Oliveira.
Em Portugal, em 1962, as mulheres “não tinham liberdade para abrir a sua própria correspondência, sair do país sem a autorização do marido ou até votar”, acrescenta Diana Maciel, professora do ISCSP. Os comportamentos oscilavam em função da classe social e com alguma contestação à mistura, explica a também investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género. Ainda assim, para a grande maioria, era consensual o princípio “Deus, pátria, família”. “O poder político, aliado à Igreja Católica, veiculou este princípio. Deus é considerado pela Igreja Católica uma entidade masculina, a pátria era dirigida por homens e a família comandada por um chefe de família: o marido, o pai. Com este princípio fundador e moldador do regime e da realidade social, as mulheres foram excluídas e afastadas da plenitude dos seus direitos humanos e cívicos. Deste modo, as mulheres, idealmente, deveriam restringir-se aos papéis tradicionalmente femininos, nomeadamente o cuidado do lar, do marido e dos/as filhos/as”, reforça a professora Diana Maciel. Além disso, tomar a pílula era condenável aos olhos da igreja. Não deixa de ser curioso saber que John Rock, o ginecologista que deu seguimento ao trabalho de Pincus, conduzindo os primeiros estudos clínicos com a pílula, fosse católico: é ele o autor do livro O tempo chegou: Propostas de um médico católico para acabar com a batalha sobre o controlo da natalidade.
“Importa ainda entender todos os custos que a pílula implica para as mulheres: as primeiras pílulas acarretavam fortes efeitos secundários, alguns dos quais graves e fatais (Santos, 2010)”, destaca a investigadora Catarina Sales Oliveira. O próprio ginecologista John Rock que, em segredo, distribuía pílulas para estudar a eficácia do medicamento, já tinha reportado efeitos secundários graves, os quais Pincus, o pai da pílula, resumia de hipocondria. Náuseas, dores de cabeça, alterações de humor, aumento da pressão arterial continuam a ser sintomas reportados às pílulas combinadas, estando por isso a pílula desaconselhada a mulheres obesas e fumadoras, nomeadamente com 35 ou mais anos, aponta o portal dos serviços de saúde britânicos.

Os perigos do contracetivo oral marcaram a década de 70. Mas havia sempre quem preferisse trautear e seguir o lema de The Pill (A Pílula), uma espécie de ode à pílula em forma de música country, interpretada por Loretta Lynn. Essa mesmo, a cantora e mãe de seis filhos que disse, em entrevista à revista People, que se houvesse pílula no seu tempo, tomá-la-ia como se fossem pipocas. A verdade é que, embora a pílula tenha sofrido alterações (“Hoje usamos doses de etiliestradiol abaixo de 35 mcg ou usamos estrogénios naturais enquanto nos anos 60 a dose era de 50 mcg”, explica a médica Teresa Bombas, presidente da Sociedade Portuguesa da Contraceção), a polémica nunca terminou.

Não existem dúvidas quanto à eficácia contracetiva da pílula, próxima dos 100%, quando devidamente tomada. Mas, no que respeita aos efeitos secundários, a conversa é outra. Ainda recentemente, foi publicado um estudo dinamarquês que associa a contraceção oral a um “pequeno mas significativo aumento do risco de cancro da mama”, o que nos leva a repensar riscos e benefícios.
O médico Carlos Oliveira, presidente do Núcleo Regional do Centro da Liga Portuguesa Contra o Cancro, defende que ganham os benefícios. “São maiores os riscos de uma gravidez em idades jovens ou de uma gravidez não desejada e de um aborto, mesmo nas melhores condições”, defende. “Não nos podemos esquecer que, se há esse risco aumentado de cancro da mama, a contraceção oral também está associada a uma diminuição do cancro dos ovários, uma diminuição do cancro do endométrio, tendo sido ainda demonstrado impacto no cancro colo-retal. Sendo assim, não há razões fortes para contraindicar a utilização da contraceção oral em jovens a partir dos 17, 18 anos.” Mas atenção, ressalva o professor Carlos Oliveira, “o ideal é que estas jovens engravidem cedo. A grande proteção para o cancro da mama é uma gravidez entre os 20 e os 25 anos. A Liga Portuguesa Contra o Cancro, numa tolerância civilizacional e dado o contexto, aconselha a gravidez antes dos 30”. Alguma mulher tranquila com este conselho, levante o braço.
Quanto ao estudo dinamarquês que tem merecido destaque na imprensa internacional importa esclarecer que “foram excluídos fatores de risco como tabagismo, a história familiar ou a idade…”, alerta a médica Teresa Bombas, concluindo que “em relação ao cancro da mama a pílula é segura, mesmo nas mulheres com história familiar de cancro da mama e com lesões benignas (nódulos benignos-fibroadenomas ou quisto da mama)”.

Ao contrário do que acontece nas outras áreas de estudo, poucos especialistas se têm dedicado a avaliar o impacto da pílula no cérebro e na cognição. Em Agosto, a BBC revelou que o primeiro destes estudos foi feito apenas há oito anos, quando a pílula é usada há mais de 50. Belinda Pletzer é neurocientista na Universidade de Salzburgo, Áustria, e concluiu que o cérebro das mulheres que tomam determinadas pílulas apresenta alterações que se refletem em comportamentos e características tipicamente mais femininas (pílulas com progestinas androgénicas) ou masculinas (pílulas antiandrogénicas). É como se a pílula masculinizasse ou produzisse um efeito feminino nas mulheres que tomam o contracetivo oral. A neurocientista não receia em destapar o lado mais escuro da pílula: “Quando os atletas tomam esteroides, falamos de ‘doping’ – é considerado abuso e fortemente condenado pela sociedade. Mas ficamos felizes por milhões de mulheres tomarem essas hormonas todos os dias, por vezes desde a puberdade à menopausa”, cita a BBC.
A indicação principal para a toma da pílula continua a ser a contraceção eficaz, esclarece a ginecologista e obstetra Marcela Forjaz. “Além deste motivo, recomendo a pílula com frequência para o controlo da acne, do hirsutismo (excesso de pelos), para o controlo da dor durante a menstruação, síndrome pré-menstrual e ainda para a regulação do ciclo em mulheres com síndrome de ovário poliquístico ou outras alterações funcionais. É preciso ter em conta que a pílula corresponde, no entanto, a várias formulações de tipos diferentes de estrogénios e progesteronas, diferentes doses e combinações, adaptando-se a escolha ao perfil da mulher e ao objetivo principal (ou acessório) que se tem em mente para essa mulher.”
I’ve got the power. Como refere à Máxima a investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, Diana Maciel, a pílula veio dar à mulher o “domínio sobre o seu corpo e o poder agencial para segurar o seu destino reprodutivo nas suas próprias mãos”. Paula Pinto, Coordenadora da Sexualidade em Linha, reconhece que, tal como a pílula, “a maioria dos métodos contracetivos é de uso feminino, mas a responsabilidade face ao uso de contraceção é de ambos. As consultas de planeamento familiar destinam-se a homens e a mulheres”. Mas na prática não é bem assim, garante Catarina Sales Oliveira, investigadora do CIES.
“Foi sobre a mulher que recaiu a responsabilidade do planeamento familiar, o que se torna muito claro quando se verifica que apenas mulheres vão às consultas de planeamento familiar, apesar de existirem métodos contracetivos para homens e de a decisão de ter ou não filhos dizer respeito a mulheres e homens (Saleiro e Sales Oliveira, 2018).”
A pílula é uma caixinha de surpresas. O médico Carlos Oliveira não poupa elogios ao medicamento que veio “diminuir a natalidade nos países onde esta era excessiva e apresentava consequências graves: fome, mortalidade infantil muito elevada”. Em 1962, ano da entrada da pílula em Portugal, tínhamos “a taxa de natalidade mais elevada da Europa (24%) e um índice de fecundidade de 3,4%, recorda Catarina Sales Oliveira. Em 2018, Portugal é dos países europeus com a taxa de natalidade mais baixa, com uma média de 1,36 nascimentos por cada mulher em idade fértil. Mais: em 1960, a idade média da mãe ao nascimento do primeiro filho era de 25 anos. Hoje é de 30,3 e prolifera o conceito de “filho único”, recorda a investigadora. O que significa que as gerações futuras estão em risco. Mas a culpa nunca morre solteira.
CAIXA:
5 perguntas mais frequentes sobre a pílula
Como atua a pílula?
As hormonas sintéticas da pílula aumentam o muco cervical evitando que o espermatozoide atinja o óvulo, dificulta a implantação de um óvulo fertilizado no útero e, o mais importante, impedindo que a ovulação ocorra.
A pílula é hoje mais eficaz?
Resposta de Teresa Bombas, presidente da Sociedade Portuguesa da Contraceção: A pílula é um contracetivo muito eficaz. Sempre foi. A pílula tem duas hormonas na sua composição: estrogénios e um progestativo. A evolução tem sido no sentido de diminuir a dose de estrogénios e da substituição dos estrogénios sintéticos pelos estrogénios naturais, com o objetivo de reduzir os riscos, nomeadamente o risco tromboembólico. Por outro lado, a evolução científica foi no sentido de melhorar também o componente progestativo tornando-o mais seletivo, permitindo assim todos os benefícios que atualmente temos num contracetivo combinado: menos acne, menstruações escassas e não dolorosas, controlo de ciclo…
Quais os mitos mais frequentes relacionados com a pílula?
Resposta de Paula Pinto, Coordenadora da Sexualidade em Linha: Embora as mulheres estejam informadas sobre os métodos contracetivos, nomeadamente a pílula, observamos com alguma frequência um desconhecimento face ao modo como a pílula atua no organismo, ‘alimentando’ alguns mitos: achar que, mesmo tomando a pílula, a mulher tem período fértil; achar que a toma da pílula durante vários anos seguidos pode fazer mal e, por isso, deve “fazer-se um descanso parando a toma da pílula para limpar o organismo”. Este procedimento, errado e desnecessário, acaba por provocar irregularidades no ciclo menstrual e contribui para que a mulher acabe por ter relações desprotegidas durante este período, com risco de uma gravidez não desejada; que a pílula engorda; que uma mulher que toma a pílula durante muitos anos tem mais dificuldade em engravidar.
Quando chega a pílula masculina?
Resposta da ginecologista e obstetra Marcela Forjaz: A pílula masculina é muito desejada pelas mulheres, mas os resultados dos testes científicos, até à data, não parecem tornar esta hipótese muito sedutora para os homens. Testaram-se combinações hormonais injetáveis que tiveram uma eficácia na ordem dos 96%, mas considerou-se que a composição teria de ser trabalhada com vista a uma melhor relação eficácia/segurança. Como efeitos adversos registou-se, sobretudo, alterações do humor e depressão. As composições orais em estudo reduzem as hormonas responsáveis pela produção de espermatozoides, nomeadamente a testosterona, o que se associa a diminuição da libido e fadiga, aumento de peso e um impacto negativo no perfil lipídico (relação entre o colesterol total e o colesterol ‘bom’). Para já, não passa assim de uma aspiração.
Por que razões não querem as mulheres ter (mais) filhos?
Resposta de Diana Maciel, investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género: Não é verdade que as mulheres não queiram ter mais filhos/as. Estudos apontam que as mulheres gostariam de ter mais filhos/as do que os que têm. No entanto, o contexto social, económico, financeiro e/ou familiar não lhes permite. Em 2018, vivemos ainda num país em que as mulheres são tendencialmente mais escolarizadas do que os homens, mas enfrentam maiores dificuldades na integração no mercado de trabalho, com maiores taxas de desemprego, maior proporção de contratações temporárias e menores salários, embora sem diferenças relevantes no número de horas trabalhadas. Além de que ainda persiste uma considerável feminização do trabalho não pago, quer ao nível dos cuidados com a casa, quer ao nível dos cuidados à família, o que leva muito frequentemente a duplas jornadas de trabalho. Essa dupla pressão sobre as mulheres origina muitas vezes uma realidade diferente da desejada em que as mulheres ambicionam ter um número de filhos/as que depois acabam por restringir devido aos constrangimentos das suas vidas.
