Olga Roriz: Alma intranquila
Olga Roriz é um nome maior da dança nacional e também o da Companhia que a coreógrafa fundou, há 25 anos. Celebramos Dia Internacional da Dança com o artigo sobre a coreógrafa e a Companhia Olga Roriz, publicada na edição de abril da Máxima.

Qual é o trabalho de um coreógrafo? Olga Roriz (Viana do Castelo, 1955) ri-se. Estamos sentadas, frente a frente, no seu gabinete no palácio lisboeta onde se encontra instalada a Companhia Olga Roriz e o tema da conversa versa o 25.º aniversário da instituição que a coreógrafa fundou. Numa longa carreira onde o percurso de vida se confunde com o percurso na dança e este com o trabalho de coreografia, a criação da sua própria companhia foi, como tantas outras coisas, ao longo de 45 anos a trabalhar na dança, uma decisão orgânica. E garante: "Não foi nenhum Grito do Ipiranga!" Antes de responder, olha para cima, inspira fundo e começa a explicar que é diferente de coreógrafo para coreógrafo. Esclarece: "Há um trabalho mimético, onde os movimentos partem do próprio coreógrafo. Ele cria os movimentos e passa-os para os bailarinos. Ele faz e eles mimetizam. Eu trabalhei assim durante muitos anos na Gulbenkian [no Ballet Gulbenkian]. Aliás, a maior parte dos coreógrafos começa assim porque é assim que vai descobrir a sua própria linguagem ao perceber qual é a motivação do seu próprio corpo. É uma coisa muito pessoal." Olga Roriz explica que o movimento não chega para fazer uma peça de dança e que, desde que começou a coreografar, com vinte e poucos anos, acompanhava os movimentos com histórias e dava à arte da coreografia um cariz um pouco teatral e, até, intelectual. Queria que os bailarinos, mais do que interpretar movimentos, interpretassem personagens. Um conceito que tirava partido de uma vida, embora ainda curta, dedicada à cultura e à dança.
A pequena Olga tinha três anos quando a educadora de infância viu nela uma predisposição especial para a dança. Em pouco tempo Olga Roriz, a irmã mais velha e a mãe rumaram a Lisboa, e deixaram em Viana do Castelo o pai que as visitava aos fins de semana. Iniciou a sua formação em dança, aos oito anos, no Teatro Nacional de São Carlos, onde, ao longo de uma década, se orgulha de ter participado em todas as temporadas e de ter tido a oportunidade de assistir a todas as obras e aos intérpretes que passaram pelo palco. Seguiram-se-lhe o Conservatório Nacional de Lisboa e o Ballet Gulbenkian, integrando este último como intérprete, em 1976. Em apenas três anos passou também a assumir o papel de coreógrafa. "Imagine uma miúda de 23 ou de 24 anos na Gulbenkian, à frente de uma companhia, onde tinha os meus ídolos, a coreografar pessoas quase com o dobro da minha idade. Tinha de ser muito segura. Às vezes ia para casa chorar, ali não! Tinha de ter uma resposta muito rápida e não ter a mínima dúvida. Eu fui feita de uma forma muito ríspida – ou eu própria me fiz…" O trabalho árduo de se preparar com antecipação para que no estúdio nada falhasse contribuiu para moldá-la com uma rispidez que se viria a tornar útil. Por toda esta pressão, considera que quando começou a trabalhar decidiu seguir a via do improviso e que isso lhe trouxe liberdade, a qual, acentua, implica responsabilidade.

Depois de quase duas décadas no Ballet Gulbenkian, Olga Roriz foi convidada para ser a diretora da Companhia de Dança de Lisboa (CDL), entre 1992 e 1995, onde começou a trabalhar com o método que continua a praticar. Mas terá sido a primeira a pô-lo em prática em Portugal? "Eu penso que não. Eu trabalho é há muito tempo. Quando comecei a trabalhar assim não sabia de outros coreógrafos que trabalhavam assim. Na Gulbenkian, onde também fui intérprete, ninguém tinha trabalhado assim. Todas as pessoas que me rodearam naquela altura foram muito importantes porque eu senti ‘não é assim eu quero trabalhar’. Às vezes isso é mais importante do que ter alguém [um exemplo] e pensar ‘é assim mesmo que eu quero fazer’." Então passa a explicar. "Numa improvisação eu ponho uma música – ou não, porque para mim [a música] não tem a mesma importância que poderá ter para a maior parte dos coreógrafos –, ponho uma câmara a filmar e improviso durante meia hora ou uma hora. Depois é aquilo que eu improvisei que vou passar para o corpo. O tempo da improvisação é aquela hora. Depois pode-se demorar meses a aprender o que está naquela hora." Quando Olga Roriz está a orientar outras pessoas não é ela que faz os movimentos, mas é quem dá as ideias e quem lança cenários para quem está a improvisar e a reagir. Conta que durante um mês todos os dias filma e escolhe os momentos de que gosta, para depois os passar aos bailarinos, para eles os reaprenderem. E acrescenta que o trabalho complementar à dança pode passar por ver filmes, ler livros, ver documentários, fazer viagens, ir a museus, andar na noite, observar. "Para a peça Antes que Matem os Elefantes, que era sobre os refugiados e acabou por ser sobre a guerra da Síria, fui à Grécia e a um campo de refugiados. É preciso ir até esse ponto de pesquisa." Só depois começa o trabalho no estúdio. A sua forma de trabalhar é a sua assinatura? "Sim! A primeira [a trabalhar assim] obviamente que não fui. Houve uma grande época na minha vida em que me compararam com outros criadores. É normal porque somos todos influenciados. Compararam-me com a Pina Bausch e ainda nunca tinha visto a Pina Bausch." Abandonou a Companhia de Dança de Lisboa, em 1995. E embora a fundação da sua própria companhia de dança não fosse uma ambição, Olga Roriz reconheceu que seria o caminho natural a seguir e, assim, nasceu a Companhia Olga Roriz (COR), em fevereiro daquele ano.
Pela ocasião da visita da Máxima, Olga Roriz e a equipa arrancavam com os trabalhos para o próximo espetáculo, Seis Meses Depois, que estava agendado para estar em palco entre 17 e 19 de abril na Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II (mas, entretanto, o teatro encerrou devido à pandemia de Coronavírus e a estreia não chegou a acontecer). E foi com os oito bailarinos que integrarão esta peça que escolheu ser fotografada. Conta que conheceu Catarina Câmara e Bruno Alexandre num trabalho que fez na Escola Superior de Dança, André de Campos começou como estagiário na COR depois e, tal como Bruno Alves, entrou para a companhia através de uma audição. O espaço inclui uma escola que, segundo Olga Roriz, é uma espécie de estágio de dois anos para bailarinos que acabaram o curso ou que estão em fim de formação. E foi a partir daí que a coreógrafa escolheu Francisco Rolo e Beatriz Dias. Falta referir Marta Lobato de Faria que Olga Roriz conheceu em audições e já participou em peças da coreógrafa nos últimos anos, e, finalmente, Ionel Serrano que se juntou à companhia para a peça Autópsia, no ano passado. "Para se ter um universo criativo muito rico tem de se procurar, observar e cultivar."

Os bailarinos são freelancers, trabalham nas produções da COR durante alguns meses, fazem as digressões e dão aulas na escola da companhia, mas não estão lá a tempo inteiro e dedicam-se a outros projetos de dança. Percebe-se, enquanto fala sobre os bailarinos, que para Olga Roriz não se trata apenas de dança e de técnica. As características pessoais são muito importantes porque o trabalho é desenvolvido em grupo e, portanto, procura-se personalidade, alguma excentricidade e muita cultura. "O denominador comum desta gente é ser gente muito envolvida politicamente." E explica: "Uma coisa que me interessa é ter aqui exemplos da espécie humana diferentes uns dos outros. Eu preciso de poder discutir com os meus bailarinos e de aprender com eles. [Com o passar do tempo] fiquei melhor no sentido de ter mais paciência para ver, escutar, e se trabalho com a improvisação dos bailarinos, eu tenho de estar ali para eles e não são eles para mim. Trabalhar comigo é muito difícil, não por causa da minha personalidade, mas por causa do que eu peço." Assume-se extremamente disciplinada e exigente consigo própria e com os bailarinos. Contudo, também tem de lidar com "uma insegurança enorme que traz uma busca e que traz dúvidas". Confidencia: "Estou sempre em estado de dúvida. Quase nunca gosto do que faço." A coreógrafa explica que a dança é um trabalho de 24 horas, no qual não basta o que se faz em estúdio, há muito labor de investigação a ser feito em casa. "Há que ir ao fundo, como um ator vive a personagem. Só que na dança parece que o gesto é uma coisa que vem dos órgãos. Não é uma coisa que fica na palavra. A palavra é muito forte, só que quando se diz, está dita. Na dança, este envolvimento físico parece distante, às vezes, mas é muito exigente, diariamente." Além da densidade da forma de trabalhar existe a complexidade dos temas. A peça mais recente, Autópsia (de 2019), abordava a questão do aquecimento global e nela buscava-se uma dança para salvar o mundo. Os bailarinos usavam roupas sujas de argila e ao movimentarem-se deixavam o chão manchado e transformavam o cenário. O próximo trabalho, Seis Meses Depois, é o capítulo que se segue nessa história e sobre o que será do futuro da humanidade. Olga Roriz partilha com o público as suas preocupações através dos espetáculos e usa-os para alertar e sensibilizar a audiência para questões atuais e proeminentes. "Para mim, quando não há confronto, nem conflito, uma peça não é uma peça. Mesmo que seja uma coisa tranquila, há sempre uma intranquilidade dentro de nós."
Quando Olga Roriz começou a coreografar foi desafiando os limites do conceito da dança e do papel do próprio coreógrafo, contribuindo para a internacionalização da dança nacional. Conquistou um lugar só seu neste meio. "Pela via do gesto, os coreógrafos têm uma linguagem própria que passam aos bailarinos, mas têm muitas preocupações. Há poucos coreógrafos que, hoje em dia, façam movimentos [só] pela beleza do movimento. A beleza pode existir mesmo que estejamos a falar de pobreza e não é por aí que as coisas ficam grotescas e feias. A beleza existe sempre."
25.º aniversário

A COR completou 25 anos em fevereiro, mas as celebrações ainda vão começar. "Quisemos fazer algo com que o público pudesse ficar. Então criámos um livro de fotografia, que é também uma homenagem aos bailarinos e às equipas." Haverá ainda um documentário, realizado por Henrique Pina, que acompanhou a produção da peça Autópsia, e no qual se explora o método de trabalho de Olga Roriz e da sua companhia.
Styling: Paulo Gomes
Maquilhagem: Cristina Gomes
Cabelos: Edgar Venâncio
