O nosso website armazena cookies no seu equipamento que são utilizados para assegurar funcionalidades que lhe permitem uma melhor experiência de navegação e utilização. Ao prosseguir com a navegação está a consentir a sua utilização. Para saber mais sobre cookies ou para os desativar consulte a Politica de Cookies Medialivre
Atual

Memórias (trágicas) do Natal da minha mãe

"Quando chegámos à casa nova, sentimo-nos num palácio. O nosso pai não bebeu nessa noite e a mãe não levou pancada."

Foto: mubi.com
02 de dezembro de 2021 às 08:52 Cláudia Lucas Chéu

A gente fugia a meio da noite e esse Natal não foi excepção. Felizmente tínhamos a casa da tia Virgínia, era perfeita para nos escondermos porque ficava mesmo ao lado da nossa. Na altura, os presentes abriam-se sempre de manhã e, nesse serão, eu e a minha irmã já estávamos deitadas a sonhar com o dia seguinte. A mãe gritou-nos junto à cama: «Vamos embora, já!» E lá fomos assarapantadas atrás da mãe, eu e a minha irmã. A tia Virgínia estava habituada a ouvir os gritos vindos da nossa casa, que ficava mesmo colada à dela, abria-nos a porta e fechava-a depressa. Logo a seguir, assim que o pai dava pela nossa falta, pois saíamos sempre às escondidas, começava aos gritos a bater à porta da tia Virgínia como um animal raivoso, sabia que a gente ia para ali esconder-se. Gania como uma fera, literalmente, e ordenava: «Abre a porta, Virgínia!»

Naquela altura não se chamava a polícia. Por isso, o meu pai podia insistir nos berros à vontade. «Abre-me a porta, que eu sei que elas estão aí!» E gritava ainda mais alto para a minha mãe, chamando-a pelos diminutivos que lhe dera quando eram ainda namorados, com um afecto postiço que nos aterrorizava ainda mais: «Xanoca! Bina! Anda para casa!» E nós ouvíamos aquilo tudo aterrorizadas, em casa da tia Virgínia, caladas e a desejar com muita força que o nosso pai se fosse embora. Mas o pai nunca desistia, podia ficar ali a noite inteira, só quando chegava a hora de ir para o trabalho é que lá se punha a caminho, semiderrotado, mas cheio de ânimo para regressar à noite a casa e ser ainda mais desalmado do que tinha sido no serão anterior.

A tia Virgínia era uma senhora bêbeda muito bondosa; foi ela, por exemplo, que ajudou a minha mãe quando nos pariu, a mim e à minha irmã. Era uma excelente pessoa, mal ouvia os gritos abria-nos a porta de casa. Muitas vezes passámos a noite mesmo à entrada da sua casa, em cima de uma arca, ali sentadas. A minha mãe comigo ao colo e a minha irmã Lourdes sentada ao lado da minha mãe; a minha irmã não era como eu, estava sempre a rir, ria-se de tudo. Houve momentos em que tive a certeza de que era tolinha. O pai aos gritos do outro lado da porta da casa da tia Virgínia e ela a rir como se fosse um filme de comédia. Eu chorava, claro, tinha medo, muito medo, ainda hoje tenho. Nem gosto de me lembrar destas coisas, mas tu pediste e eu contei-te. Deve ser lá para os textos, não é?

Houve um Natal uns anos mais tarde em que o meu pai até foi bonzinho, ele era um homem impulsivo e nem sempre lhe dava só para o mal. Nessa noite disse-nos: «Vamos todos para a casa nova!» Tinha conseguido uma casa de bairro num concurso público e só nos deu a boa nova na noite de Natal. Fizemos a mudança nessa mesma noite, levando apenas o essencial. Eu trazia o meu irmão Luís ao colo, que era pequenino, enrolado numa manta, e fomos pela azinhaga escura, eu e a minha família. Íamos contentes e a cantar. A manta do meu irmão Luís ia a arrastar pelo chão e de vez em quando eu pisava-a e quase caía, mas estava tão contente. Uma casa nova, não conseguia parar de imaginar como seria. A minha mãe e a minha irmã Lourdes levavam cobertores, o meu pai carregava um enorme colchão, parecíamos uma família de saltimbancos. Quando chegámos à casa nova, sentimo-nos num palácio. O nosso pai não bebeu nessa noite e a mãe não levou pancada. Pareceu-nos a noite de Natal perfeita.

*A cronista escreve de acordo com o Acordo Ortográfico de 1990. 

Leia também
As Mais Lidas