Keira Knightley: Amor sem limites
A propósito da personagem complexa de Anna Karenina, a atriz entrega-se de corpo e alma a mais um papel épico e apaixonante.

Entrevistar Keira Knightley é sempre um acontecimento fascinante. É quase como participar, ainda que por uma breve meia hora, nesse processo mágico em que nos é permitido contracenar com ela. À semelhança de um filme, tal é a sua entrega que torna o momento muito emotivo. Keira é tão intensa ao vivo como quando entra na pele de mulheres que procuram uma verdade íntima. Não foi ela que deu nas vistas quando chegou ao cinema no papel de uma... jogadora de futebol em Joga como Beckham? Isso foi aos 17 anos. Em todo o caso, têm sido os filmes de época que têm deixado a marca mais profunda e com os quais confessa sentir-se mais próxima da pura representação.
Precisamente dez anos depois, vive a felicidade de testar os limites do amor em Anna Karenina, na obra cimeira de Tosltoi, num filme assinado pelo britânico Joe Wright que, por certo, não passará despercebido aos membros da Academia de Hollywood. Apesar das piscadelas de olho ao modo de produção de entretenimento de Hollywood, sublinhadas na milionária franchise Os Piratas das Caraíbas, percebe-se que é nos papéis “sérios” que Keira se sente à vontade. Mas não deveria contar mais a sua vontade de se testar e de nos contagiar com esse permanente desafio dos limites? Em Orgulho e Preconceito foi distinguida com a sua única nomeação aos Óscares, apesar de poder ter sido também em Expiação, curiosamente, ambos filmes de Joe Wright. Ou até em ceder à fragilidade e obsessão no recente Um Método Perigoso, de David Cronenberg. Neste reencontro na última edição do Festival Internacional de Cinema de Toronto, comprovamos a felicidade com que a bela e elegante londrina partilha os momentos de introspeção em que a arte parece imitar a vida. Será esse um feitiço do tempo?
Está simplesmente deslumbrante...
Oh, muito obrigado!
'É incrível a forma como a literatura se modifica e nós com ela. Fiquei fascinada com a experiência'
Não costumo perguntar, mas não resisto: o que está a usar?
É um vestido Céline.
E os sapatos?
São Gucci. E se quer saber, as joias são emprestadas da Chanel. Tenho de as devolver amanhã [risos].
Magnífico. Ora diga-me: porque será que quando vemos um filme com o seu nome no elenco esperamos sempre muito? Também sente essa pressão? Agrada-lhe?
[Pausa...] Estou sempre a tentar melhorar. Por isso, acho que existe essa pressão. Embora seja uma pressão positiva, porque é isto que eu gosto de fazer. Nesse sentido, não existe motivo para não tentarmos melhorar e aprender coisas diferentes. Também me pressiono a mim própria para trabalhar e fazer filmes que as pessoas apreciem. Por trás, existe uma equipa que trabalha muito para que isso seja possível, embora nem sempre aconteça.
A sua interpretação em Anna Karenina já está a gerar alguma atenção para os Óscares. A Keira, que já foi nomeada anteriormente, como reage agora?
É sempre muito agradável quando alguém diz isso do nosso trabalho, pois significa que gostaram. Se vier a ser nomeada será fenomenal não só para mim como para todas as pessoas que estiveram envolvidas. No entanto, o propósito do filme é que o público possa apreciar e emocionar-se. Tudo o resto é excelente, em particular para mim, se for esse o caso, mas trata-se apenas do público.
O Joe Wright [o realizador] revelou que a Keira faz uma espécie de trabalho de detetive para se documentar sobre as suas personagens. O que foi então que mais a intrigou na personagem de Anna Karenina?
O livro. Em grande parte foi o livro. As 880 páginas! [Risos] Mas existe um livro sobre a cultura russa chamado Natasha’s Dance: A Cultural History of Russia, de Orlando Figes, que todos nós lemos e do qual muito retirámos. Mas toda a emoção vem do livro.
O Joe também disse que este filme foi para ele um desafio de idade, pois acabara de chegar aos 40, e confessou que pensava em ter filhos... No seu caso, que pressões sentiu ao participar neste projeto?
Foi estranho, porque li o livro no final da minha adolescência e lembro-me dele como um romance belo, incrível e arrebatador. Reli-o no verão de 2011, antes de começarmos a rodagem, e percebi como, afinal de contas, era completamente diferente. A personagem parecia-me agora outra. Muito mais obscura do que anteriormente. Uma descoberta muito interessante, ainda que possa ser óbvia para muitos. É incrível a forma como a literatura se modifica e nós com ela. Fiquei fascinada com a experiência. No fundo, o que eu vi foi o espectro total do que é o amor. E não apenas essa centelha tão feminina. É fascinante conhecer o lado obscuro do compromisso, mas também alguma loucura que nos transmite uma outra emoção. Acho que aos 27 anos me interessaram mais as falhas e os defeitos da personalidade de Anna Karenina do que o lado mais romântico e artificial que teria apreciado mais há uns seis, sete anos.
O filme não apresenta preconceitos sobre o adultério. Atraiu-a enquanto atriz penetrar nesse mundo de pecado?
Sim, mas o que acho interessante no livro é que ele também a condena a ela. Posso estar enganada, mas a certa altura acho que o Tolstoi a odeia. Não a protege e condena a sociedade. Ele apresenta-a como a “prostituta da Babilónia”. Ela é a corrupta. Mas ao mesmo tempo sente-se que ele também a compreende, a apoia e a ama. Essa dualidade está presente em toda a obra. E isso foi algo que quisemos incorporar no filme. A ideia de alguém que é dúplice e manipuladora e carente. Ela é ao mesmo tempo magnífica e otimista. Cheia de amor, de vida, de energia. Mas tudo isso está dentro dela. Isso é fascinante.
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Qual foi a sua reação quando percebeu que o Joe iria fazer uma representação teatral do livro?
Oh, não... [risos]. Quando começámos a falar no projeto, a ideia era ser totalmente naturalista. Iríamos filmar na Rússia e em Inglaterra. Mas à medida que fomos falando, percebi que ele queria fazer algo mais estilizado. E ainda baseado neste livro Natasha’s Dance e nas descrições da aristocracia no século XIX. Sabe que, nessa altura, eles nem sequer falavam russo, mas sim um misto de francês e italiano. Viviam em casas desenhadas como se fossem italianas, usavam roupas francesas. Não falavam com outras pessoas e não tinham sequer uma noção da sua própria cultura. Havia uma espécie de crise de identidade em que pareciam interpretar personagens. Isso foi algo que o Joe sempre quis evocar. E à medida que fomos avançando, percebeu que não queria usar os mesmos décors de São Petersburgo tantas vezes repetidos. Ou esses lugares em Inglaterra onde a Keira Knightley apareceu em diferentes filmes. Queria fazer algo diferente. Gradualmente, a ideia de um cenário de palco adquiria significado.
UMA HEROÍNA
Anna Karenina é uma das heroínas mais famosas da Literatura. O extraordinário romance do mesmo nome foi escrito por Leon Tolstói entre 1873 e 1877 e publicado em forma de folhetim, num jornal de Moscovo, como era costume no século XIX. Conta a história de uma aristocrata russa casada, cuja paixão avassaladora por um homem, que não o seu marido, a arrasta para um final trágico, próprio de uma época e de uma cultura inseridas no chamado “movimento romântico”.
A trama de Anna Karenina, tal como a de Madame Bovary, de Gustave Flaubert, depende do tema do adultério como motor da ação mas Tolstói aproveita para descrever minuciosamente as relações sociais e familiares, principalmente as matrimoniais, na sua Rússia natal, numa altura de grandes transformações nos costumes, na economia, na política e nas mentalidades. A modernização da Rússia, a reboque da Revolução Industrial – simbolizada pelo comboio que aqui desempenha um papel fundamental –, não era do agrado de Tolstói, que se insurge contra a liberdade dos sentimentos, dos movimentos e dos impulsos, em contraste com os deveres morais.
A figura de Anna, incapaz de resistir ao amante, Vronski, serve de pretexto para um estudo pormenorizado da paixão amorosa, para uma análise do contraste entre o desejo sexual masculino e feminino e para a dissecação do adultério como ele era vivido, diferentemente, pelos homens e pelas mulheres.
Stiva, irmão de Anna, desencadeia uma crise familiar por ser infiel à mulher mas é julgado com benevolência, as suas ações são desculpadas e até lhe conferem uma aura de bon vivant. Já Anna – embora Tolstói cative o leitor para a paixão que a cega usando a fraca desculpa de que Karenin é um marido frio e cruel – não é contemplada com qualquer lenitivo, os seus atos não têm perdão e ela é duramente castigada por ser mulher, por ter ousado amar fora do casamento, por ter deixado o marido e, pior de tudo, abandonado o filho. O seu último ato de desespero – o suicídio, debaixo das rodas do comboio – revela-se como única saída possível numa época em que a mulher só tinha deveres e muito poucos direitos.
Helena Vasconcelos
Interessante a ideia de interpretar papéis na vida real. Isso acontece-lhe também a si?
Claro. No filme, a Anna interpreta o papel da mulher perfeita, até que percebe que não se adapta e que foi um erro de casting. Neste momento, eu tenho o papel da atriz e você de jornalista. Quando formos para casa, seremos mães, mulheres, maridos, namorados, o que quer que seja. Essa ideia de que estamos sempre a interpretar um papel entusiasmou o Joe. E quando ele descreveu as razões que o justificavam, fiquei fascinada. E quando se trabalha com alguma regularidade, como eu e o Joe, queremos sentir que não percorremos um caminho seguro.
Mas até que ponto essa opção lhe permitiu manter a intensidade da interpretação, pois não sabe o que vai ficar na versão final. A Keira vive cenas muito intensas, eu diria irrepetíveis...
Acho que este foi o filme mais difícil que já fiz. Sem dúvida. Desde logo pela mistura e complexidade das emoções. Mas Anna tem de ser emotiva. Se ela fosse sempre racional, esta história não aconteceria. Sabíamos todos que essa emoção teria de se manter. Agora, tentar combinar isso com a parte técnica tão estilizada foi algo muito difícil de conseguir. Mas ao mesmo tempo gratificante e fantástico. Foi uma experiência que puxou por todos nós. E acho que todos somos absorvidos.
Dir-se-ia que a Keira tem um fraquinho por filmes de época. Qual é a sua explicação?
Como calcula, essa é uma pergunta frequente. E durante muito tempo, achei que estava a fazer algo errado. Mas acho que é onde incide o meu gosto. Acho que se tivesse ido para a universidade seria para estudar História. Leio muito sobre História e adoro filmes de época. E acho que enquanto ferramenta dramática obriga-nos a esquecer, a perder a nossa sociedade e a abraçar de forma dramática e emocional as personagens. Quando nos apresentam uma peça moderna, e há tantas, demoramos mais tempo a livrar-nos da nossa própria posição sobre a vida. Julgamo-la mais do que uma peça de época, porque nos deixamos ir completamente.
Acha que esses papéis ousados lhe permitem também conhecer-se mais a si própria?
A meu ver, todas as formas de arte implicam isso. Qualquer artista tenta compreender a raça humana e a sua condição. Muitas vezes, os filmes conseguem-no, ainda que sem deixar de ser puro entretenimento. Isso não faz de mim uma pessoa melhor do que as outras. Esse momento de reflexão sobre o mundo que nos rodeia é algo que aprecio imenso.
E do ponto de vista emocional, o que diria que partilha com as suas personagens?
No caso de Anna, acho que todos nós partilhamos um pouco. Mesmo que não nos limites. Mas quando olhamos para ela, vemos os lados positivos e os negativos. Todos nós já magoámos as pessoas que mais amamos, todos nós nos portámos mal e tivemos gestos de que nos arrependemos. Não porque somos melhores, mas porque sentimos as emoções e nem sempre conseguimos controlar-nos. Acho que é isso que salva Anna. Porque quanto mais a julgamos, pensamos se seremos melhores do que ela. Eu não sei se poderia dizê-lo. Nem sempre me comporto da forma que desejava. Tento fazê-lo, mas cometo erros. Tal como ela. Por isso, é uma personagem tão forte. Como as outras. Não vemos pessoas que são perfeitas, têm muitas falhas. Mas é isso a Humanidade.
No filme, assistimos a um conceito de casamento arcaico, com mais de 100 anos. Como é que a Keira vê o casamento hoje? Parece-lhe ter muito significado como instituição?
Acho que não sei responder... [risos] A resposta é que não sei. O que eu gosto da ideia de casamento pode assumir um sentido pagão, como tantas outras coisas. Mas acho que há um momento em que se escolhe uma pessoa para pertencer à nossa família. Não podemos escolher os nossos pais. Não podemos escolher os nossos irmãos. Nem os nossos filhos. Escolhemos aquela pessoa para entrar naquele núcleo secreto. Gosto dessa ideia. Sobre o resto, não faço a menor ideia.
Mas será que o casamento é mais romântico por isso mesmo? Pelo menos no seu caso, teve essa oportunidade de dizer que ‘sim’.
Pareceu-me uma boa ideia na altura… [risos]
Após interpretar Anna Karenina, o que poderá seguir-se?
Pergunta difícil.
Umas férias?
Sim, férias. Mas a verdade é que nos últimos cinco anos quase morri em cada filme. Por isso, pensei que poderia fazer algo mais positivo. Então fui para Nova Iorque no verão e fiz um filmezinho sobre a amizade [Can a Song Save Your Life?]. E um filme de puro entretenimento de Hollywood. Será um filme de espionagem, com a personagem Jack Ryan [o filme chama-se mesmo Jack Ryan]. É puro entretenimento. Mas tem um final feliz, porque é entretenimento de Hollywood… [risos]
Sim, isso são quase férias...
[Risos] Nem mais.
E o que achou dessa experiência de Hollywood? Pode ser mais regular?
Talvez, ainda que a minha ‘casa’ seja mais o melodrama. Gosto muito, mas mesmo muito, do drama e da tragédia.
E porquê?
Não sei dizer. Acho fascinante. Porque será que as melhores obras literárias não são divertidas? Não sei... Talvez seja essa catarse. Vou citar um filme, não sei bem porquê, mas vou fazê-lo. Lembra-se daquela cena em O Clube dos Poetas Mortos, onde se diz “nós lemos para perceber que não estamos sós”. Provavelmente, estou a dizer mal, mas é esse o sentimento. Quando estamos em baixo, pensamos que somos os únicos a sentir-nos tão miseráveis. Mas há algo que faz parte de todos nós e da vida de todos. Afinal, não estamos sozinhos. Acho que é esse sentimento que acho romântico sobre a tragédia e o drama.
É a tristeza que gosta de companhia?
Acho que sim… [risos] É isso.
