Isabel Nery - Mães Atrás das Grades
Durante meses, a jornalista Isabel Nery mergulhou no universo prisional para descobrir histórias de mães e filhos que nem as penas mais pesadas conseguiram separar.

As Prisioneiras – Mães Atrás das Grades é o relato da experiência da maternidade dentro dos muros das prisões portuguesas.
Há vontades irreprimíveis e histórias que têm de ser contadas. Foi mais ou menos o que sentiu Isabel Nery quando terminou o artigo de página e meia sobre mães nas prisões que publicou na revista Visão, onde trabalha desde 2002. “Fiquei com muita pena de não poder aprofundar mais, sobretudo no que diz respeito às crianças – a maior parte dos estudos que existem sobre o tema (e são poucos) focam-se na questão feminina e nos direitos como mães, não no impacto ou nos direitos das crianças.”
Quando a Booktailors a contactou para saber se estaria interessada em escrever um livro de reportagem sobre o tema, o convite pareceu-lhe “irrecusável”. É assim que nasce um livro raro sobre a realidade prisional portuguesa e, mais especificamente, sobre a realidade das mulheres que também são mães. Durante meses, a jornalista frequentou as prisões de Tires e de Santa Cruz do Bispo, conversou com as reclusas, observou e ouviu os seus filhos. “Comecei por ir um dia sem compromissos nem entrevistas marcadas, nem fotógrafo, apenas para conhecer o ambiente e dar-me a conhecer.”
Nesse dia, surgiram os primeiros casos que mereciam ser analisados. Depois desses, outros. Alguns sugeridos pelos próprios serviços prisionais, outros nascidos do contacto direto com mulheres que queriam as suas histórias ouvidas. Foi o que a jornalista fez. As Prisioneiras – Mães Atrás das Grades (Livros de Seda) mostra como a maternidade pode ser vivida do lado de lá, ao mesmo tempo que traça o perfil de um grupo heterogéneo de mulheres, com diferentes origens, histórias e penas, obrigadas a partilhar o presente atrás das grades.
'As crianças ficaram traumatizadas quando foram afastadas das mães, não quando foram presas com elaQual é o primeiro impacto de uma visita a uma prisão?
A sensação de fecharem a porta atrás de nós é sempre sufocante. No caso de Tires isso é atenuado pelo tamanho da propriedade. Na Casa das Mães também se sente menos a clausura, mas no pavilhão das Condenadas é mais duro: vários andares de varandins, muitas mulheres a circular, muitos olhares. Tive muitas vezes a sensação de estar a ser observada como acontece às próprias reclusas. Por um lado, porque os edifícios estão feitos com esse objetivo. Por outro, porque um jornalista dentro da prisão é sempre um “acontecimento”. Senti que a minha presença causava muita tensão em alguns funcionários, muito mais do que nas próprias reclusas.
Lendo os depoimentos das entrevistadas subsiste a ideia de que o ambiente prisional afinal nem é tão mau como se pensaria à partida. Isto deve-se a quê?
O cinema e a literatura exploram muito os aspetos maus das prisões. Isso causa nas pessoas a ideia de que a prisão é o fim do mundo – e não é. Claro que a perda de liberdade é algo brutal. Por vezes, não temos noção que perder a liberdade não é só ficar fechado. É comer o que nos mandam à hora que nos mandam, deitar quando nos mandam, pedir licença para se levantar da mesa, não poder telefonar a não ser para números previamente autorizados, não ter acesso a Internet, nem poder vestir o que queremos. Como se voltássemos a ser crianças, já não sendo. Mas as agressões e os riscos físicos são relativamente reduzidos numa prisão feminina. As masculinas são muito mais duras desse ponto de vista. O facto de ter feito um trabalho sobre mães presas também atenua os maus ambientes porque a presença das crianças reduz a agressividade.
O facto de se tratar de uma mulher a fazer as perguntas fez diferença?
Em alguns casos, acho que sim. Por exemplo, o tema da sexualidade era muito melindroso e poderia ter sido ainda mais difícil se o jornalista fosse homem. Mas também houve casos em que a presença do fotógrafo – homem – ajudou a conseguir um ambiente mais descontraído.
Oitenta por cento das reclusas nacionais são mães. O livro demonstra que a presença dos filhos é importante para ambos. Do que observou, sente que estão reunidas as condições essenciais para uma convivência harmoniosa ou há muito por fazer?
Portugal oferece boas condições para as mães presas. Não só porque dá algumas condições especiais às reclusas com filhos na prisão mas sobretudo porque dá boas condições às crianças. Têm creche, fazem atividades no exterior, têm acompanhamento psicológico. Onde está quase tudo por fazer é no acompanhamento das crianças e jovens que não estão na prisão com as mães – que são a esmagadora maioria. São menores que sofrem muito e não têm a atenção de ninguém. Entrevistei vários e senti que sofriam em silêncio. Por vezes, têm mesmo de fingir que não sofrem porque sabem que não há condições para se queixarem ou pedirem o que quer que seja para eles. A mãe já absorve toda a atenção da família e das instituições.
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Diz que se sentiu algumas vezes enganada e que, na prisão, a verdade é o valor mais relativizado. Refere-se a uma não assunção de culpa?
Não. A maioria das mulheres admite o crime que cometeu, mas tendem a relativizar, a ter desculpas. Nalguns casos, são vidas inteiras de enganos. Já nem elas próprias sabem muito bem onde está a verdade. Julgo que algumas, para sobreviverem a vidas tão difíceis, criam uma espécie de mundos paralelos onde se vão movimentando consoante as situações. Não são raros os problemas psíquicos nestas populações, o que também agrava a situação. Muitas vezes, a mentira faz parte da estratégia de sobrevivência.
O tráfico de droga é apontado como o principal motivo de condenação. É feito algum trabalho nas prisões para evitar a reincidência após a libertação?
Não. Praticamente nada. Esse aspeto é muito descurado pelo nosso sistema prisional.
Acredita numa plena integração social ou há algum desamparo após a libertação e as mulheres acabam por ser abandonadas à sua sorte?
São completamente abandonadas à sua sorte. Quando saem voltam à família desestruturada, ao bairro de uso, aos companheiros que as desrespeitam. Nalguns casos, foram os pais que as inseriram no crime, sobretudo quando se trata de tráfico de droga, e é quase impossível encontrarem alternativas de vida. Importa não esquecer que são populações frágeis a todos os níveis: sem apoio familiar; sem diferenciação académica ou profissional; sem dinheiro. Tudo se conjuga para que volte a correr mal porque o sistema está quase exclusivamente focado no castigo. Mesmo assim, a reincidência é de cerca de 30 por cento, o que significa que a maioria acaba por encontrar alternativas. Em regra, os filhos são uma motivação importante para não reincidir.
Que memórias e marcas ficarão nas crianças?
Isso ninguém sabe. Portugal tem uma longa tradição de mais de 50 anos a permitir a permanência das crianças com as mães reclusas, mas nunca estudou como é que isso as afeta, nem se essa é uma solução boa para elas. O que posso dizer é que os especialistas em psicologia infantil defendem que sim e que os filhos de reclusas e ex-reclusas que entrevistei, alguns já adultos, ficaram traumatizados quando foram afastados das mães, não quando foram presos com elas. Julgo que o sentimento mais comum nestas crianças é o de abandono. É uma marca que lhes fica para sempre, mesmo quando ultrapassam os problemas.
E na autora/jornalista?
Foi um trabalho muito duro emocionalmente. Porque lida com duas coisas que valorizo muito: a liberdade e a infância. Houve casos em que chorei com as reclusas e outros em que perdi o sono por me sentir impotente perante aquelas infâncias roubadas. Os sentimentos eram tão fortes que às vezes não conseguia pô-los no papel de uma só vez. Aconteceu-me várias vezes acordar a meio da noite com uma frase que transmitia melhor o sentimento que queria mostrar e levantar-me para tomar nota porque se não o fizesse não conseguia voltar a adormecer. Tinha a sensação de uma necessidade absoluta de me libertar (para o papel) daquela ideia ou sentimento. Mas talvez o mais marcante seja a força daquelas crianças. Vê-las rir e brincar, apesar do que passaram.
Há alguma tentação de lá voltar?
Sim, tenho tentado saber de algumas reclusas. Mais do que voltar à prisão, gostaria de rever algumas das mulheres.
