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Histórias de Amor Moderno: “O meu doloroso trabalho de parto durou quase quarenta horas"

“A cabeça, naquele preciso momento, era uma montanha-russa aos berros, uma guilhotina de espinhos feita só para me picotar o pescoço antes de me arrancar a cabeça.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB/ Pieces of a Woman
03 de maio de 2025 às 08:00 Maria Olívia Sebastião

Há uma pergunta que ainda hoje me assalta: aconteceu ou não aconteceu? Posso ter imaginado tudo. Posso ter misturado o desejo, o instinto e a frustração, posso ter cozinhado um caldo de sentimentos e pensamentos de tal forma intensos que se tenham transformado em memória. Pode não ter acontecido nada. Repito-o para mim mesma e tento, desse modo, apaziguar o sentimento de culpa - se não tiver acontecido, culpo-me do quê, afinal? De ter pensamentos? De ter sentimentos? Mas então penso: e se aconteceu mesmo?

O meu filho nasceu numa manhã de segunda-feira. Este facto não tem qualquer relevância, é só uma nota mental que guardei. Sei-o porque, quando mo pousaram sobre o peito, ainda ensanguentado e a berrar como qualquer bebé saudável acabado de nascer, eu estava tão cansada e tão baralhada que perguntei que dia era a alguém da equipa que tinha acabado de me ajudar a parir. Uma enfermeira muito maldisposta olhou-me nos olhos com ar furioso e disse "é segunda-feira, minha amiga, e já é de manhã!" Acredito que tenha sublinhado o ser de manhã porque o meu trabalho de parto durou quase quarenta horas, depois de ter dado entrada na maternidade no sábado à noite.

O parto foi o princípio da minha dolorosa epopeia. Aprecio muito as mães que desfrutam do momento do parto, só lamento não ter conseguido retirar do meu um prazer semelhante ao que essas mães apregoam. Pelo contrário. Digo-o sem ressentimentos, embora não pareça. Não guardo rancor pelo que me aconteceu nem tão pouco inveja de quem viveu experiências diferentes e melhores. Só que comigo não aconteceu assim, um momento bonito, uma memória idílica, harmoniosa, pacífica. Tudo foi dor, tudo foi sofrimento.

O cansaço levou-me à exaustão. Sentia-me doente, ainda eu ia a meio daquele percurso infernal. Acredito que a experiência de ter filhos - ter filhos no sentido de os parir: o ato de pôr cá fora, no mundo, um ser humano - possa ser encantadora e memorável para muitas mulheres. Para mim, só foi inesquecível porque infelizmente não conseguirei apagar da memória aquelas quase quarenta horas da mais penosa tortura.

Chegada a casa, precisava de abrigo e de descanso, de paz e de compreensão. Em vez disso, calhou-me ter família. Não se espantem com as minhas palavras. Quem tem família - e eu desejo do fundo do coração que todos tenham uma - sabe perfeitamente que esse ingrediente da existência pode tornar-se um fardo, um castigo ou até mesmo uma praga que, no lugar de nos dar o conforto e o carinho de que precisamos no momento em que mais necessitamos, é capaz de pegar no mais ínfimo detalhe da nossa prática, da nossa conduta ou até numa suposição daquilo que pensamos para nos infernizar o momento e torná-lo ainda pior do que ele já era à partida.

Se faço estas confissões não é para me justificar. Para começar, porque não há nada para justificar até prova em contrário. Eu não sei se aconteceu ou não aconteceu. Não sei se aconteceu o que eu acho que aconteceu. Que posso eu saber, de que posso estar certa, se a cabeça, naquela altura, naquele preciso momento, era um vendaval, um corrupio, um caleidoscópio, uma montanha-russa aos berros, às piruetas e às cambalhotas, uma guilhotina de espinhos feita só para me picotar o pescoço antes de me arrancar a cabeça.

Eu e o meu companheiro não somos casados. (A minha avó diz que ele é o meu colega; não sei se o faz por maldade, se o diz por ingenuidade ou falta de melhor designação lá na ideia dela.) Nunca chegámos a casar, o assunto não era sequer tema de conversa. Quando fiquei grávida, ainda pensei abordar a questão, mas depois temi que soasse demasiado oportunista. Recentemente, e depois de tudo o que nos tem acontecido, ele próprio admitiu que pensou pedir-me em casamento quando soube que íamos ter um bebé, mas achou que eu podia pensar que só se queria casar por causa de termos um filho. Andámos os dois calados e a remoer, devíamos ter conversado.

Sermos casados não mudaria muito, mas podia ter evitado certas questões. Por exemplo: a minha mãe, que desde que cheguei a casa não se contém nem se coíbe de fazer comentários, críticas e apreciações, quando não mesmo avaliações técnicas do nosso desempenho enquanto pais da criança, respondeu-lhe - ao meu companheiro (o meu "colega") - "está calado, vocês nem sequer são casados" quando ele tentou defender-me do fogo das críticas à forma como segurava o bebé para lhe dar banho.

A mãe dele não é melhor: os horários, os ciclos, o cuidado com os pólens, a cautela com o excesso de luz, com a falta de roupa, com o lateralizar da cabeça, a posição da chucha, o tamanho dos casacos - tudo é motivo e pretexto para sinalizar, para corrigir, para aconselhar. Farto de todo aquele ambiente, exausto por me acompanhar em todos os principais momentos desde que entrei na maternidade, saturado de aturar observações e intromissões, acabou por, depois de mais uma crítica, responder à própria mãe "como se diz na nossa terra, dá-me dinheiro, não me dês opiniões". Ela não gostou.

A pressão constante vinda de todas as partes foi fazendo mossa. O bebé não é um bebé fácil, não adormece docilmente, chora bastante, acorda muitas vezes, não parece ter estabelecido uma rotina, nada nele é previsível. As mães, a minha e a do meu companheiro, continuam a sua cruzada contra tudo o que não se fazia assim no tempo delas, além de sinalizarem com zelo excessivo qualquer pequeno indício de que nem tudo está perfeito, ou ainda de que elas próprias faziam, fazem ou fariam muito melhor do que nós fazemos. As discussões sucedem-se. Quando não se discute, os maus modos imperam, o mau ambiente apodera-se da casa, o ar torna-se irrespirável.

Eu e o Gonçalo - assim se chama o pai da criança, o meu companheiro - acabamos também por discutir. Ter as mães constantemente por perto aumenta a tensão e as probabilidades de explodirmos um contra o outro, mesmo que saibamos, lá no fundo, que não é um contra o outro que explodimos. É contra a frustração, contra a saturação, contra a falta de sossego, pela vontade de estarmos isolados, só em família: eu, ele e o bebé.

Há dois dias, quando a mãe dele, uma vez mais, insistiu em corrigir-me pela forma como pegava no bebé ao colo, não me contive e disse-lhe "não ouviu já o seu filho? Não me dê conselhos, dê-me antes dinheiro. Não é isso que vocês dizem lá na vossa terra?" O Gonçalo não gostou, "então, o que é isso?", perguntou-me, abrindo os braços. Fechei-lhe a porta do quarto na cara, com toda a força. O bebé estava ao meu colo.

E foi então que pode ter acontecido aquilo que eu não sei se aconteceu. Não sei se deitei o bebé na cama ou se o deixei cair sobre o colchão, ou ainda se o atirei com força e com raiva. Sei que, num determinado momento, foi isso que eu desejei. Foi essa a vontade que eu senti, a de atirá-lo para cima da cama com toda a força, deixar tudo para trás, mandar à fava a vida inteira, a família e o próprio bebé. Mas logo me debrucei sobre o meu pequenote que, espantado, de olhos esbugalhados, me procurava na penumbra do quarto e tentava perceber que grunhidos eram aqueles que eu fazia, que lágrimas, que choro, que raiva era aquela. E então chorei, chorei, chorei, e abracei-me ao meu bebé com todo o meu amor e todo o remorso deste mundo e de todos os outros mundos vizinhos e distantes, um remorso que me transbordou dos braços e se transformou num aperto suave ao meu menino, e num aperto pesado no meu peito.

Não sei se aconteceu ou se não aconteceu, mas dói-me a alma e o coração como se tivesse feito tudo aquilo que naquele momento definitivo desejei. Sinto culpa. E não consigo decifrar o enigma nem o caminho para sair do labirinto onde me enfiei.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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