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Histórias de Amor Moderno: "Antiquado, destreinado e 14 anos mais velho do que a Elisa, tentava insinuar-me sem ser explícito, mostrar-me interessado sem parecer desesperado."

“A presença da Andreia tornou-se tão insuportável para mim que demorámos uma imensidão de tempo até nos separarmos pela simples razão de que estávamos sempre, e convenientemente, desencontrados.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

"Blue Valentine" (2010)
"Blue Valentine" (2010) Foto: IMDB
20 de dezembro de 2025 às 09:00 Maria Olívia Sebastião

O dia mais triste da minha vida começou no minuto imediatamente a seguir ao momento em que me senti mais eufórico. “Posso ir ter contigo?”, perguntei, na minha inocência entusiasmada e esperançosa, em mais uma das muitas mensagens de Instagram que trocámos durante quase três meses. E depois fiquei a contemplar o ecrã do telefone. “Vista.” Sorri. A Elisa leu a mensagem. E, depois, “Elisa está a escrever”. Em seguida, parava. E a mensagem de resposta, não havia maneira de chegar. Elisa escrevia de novo e depois parava. A seguir, ficava quieta. E eu, expectante, sentia o coração bater mais depressa. Primeiro, cheio de esperança, no limite da ansiedade otimista. Eventualmente, depois de esmorecer, comecei a temer. E se ela dissesse não?

Elisa escrevia e parava, escrevia e parava. E eu imaginava-a a teclar com ambos os polegares, usando as duas mãos, como fazem as raparigas que cresceram de smartphone em punho. Na minha cabeça surgiam imagens de Elisa sorrindo, envergonhada, enquanto escrevia uma mensagem amorosa e romântica que, em seguida, vergada sob o peso do pudor, decidia apagar, muito hesitante. Quando o otimismo começou a dar sinais de cansaço e depois de rotura, a imagem que surgia era outra: Elisa escrevendo uma mensagem de rejeição e, em seguida, decidindo não a enviar - mas por pena de mim, por não me querer magoar.

Antes de continuar a falar da Elisa, preciso de revelar a Andreia. A Andreia foi minha namorada durante 16 anos. A Andreia foi minha namorada durante mais quatro ou cinco, ou talvez oito anos do que os nossos destinos e a configuração existencial de cada um de nós estariam preparados para aguentar. Ou seja, duplicámos artificialmente a duração de uma relação que não tinha assim tanto para dar.

Inicialmente, vivemos uma espécie de paixão madura - eu estava à beira dos 30 anos quando nos conhecemos, ela tinha 27 -, que durou talvez um ano, e depois começámos a fazer coisas de adultos como se fôssemos um equipa, ou uma parceria, ou uma sociedade: adquirimos bens, posicionámo-nos socialmente, auxiliámo-nos mutuamente, demos um ao outro aqueles empurrões metafóricos que os gurus do autodesenvolvimento afirmam fazer falta a cada indivíduo.

E vivemos nesse vaivém de construção pessoal e familiar, económica e social, e nem reparámos que o amor estava a deixar de existir. Rarefeito, foi-se tornando uma memória querida. Houve momentos, quando estar com a Andreia ainda não me causava uma sensação altamente desagradável, em que sentia que podia falar com ela acerca de uma mulher que eu amara e com quem adorava passar tempo - e que era ela mesmo, a Andreia, a minha namorada. Só que não era exatamente assim como esta Andreia de agora. Era como se fosse uma versão desta Andreia de agora, só que de outrora. Seria, nessa altura, capaz de ver fotografias de momentos passados com ela e de lhe descrever todas as situações como se ela nunca tivesse estado lá. Enfim, passava tanto tempo ao lado da Andreia, mas sem estar verdadeiramente com ela, que nem me lembrava de que éramos namorados.

O passar dos anos foi agravando este sentimento. Se acham que ser-se indiferente é mau, experimentem ficar tempo suficiente nessa apatia até ela ganhar ranço e se transformar em paz podre, primeiro, depois em ressentimento miudinho, em seguida em ódio contido, daquele que não admitimos nem perante nós próprios, mesmo em segredo. Por fim, chegamos à náusea, ao nojo pela proximidade da pessoa.

Não estou a exagerar. A presença da Andreia tornou-se tão insuportável para mim que demorámos uma imensidão de tempo até nos separarmos pela simples razão de que estávamos sempre, e convenientemente, desencontrados. Suspeito que ela nutria por mim o que eu sentia por ela: aversão e repulsa. Só que, quando estamos juntos há 13, 14, 15, 16 anos, é mais fácil evitar a pessoa do que enfrentar o assunto e dizer “olha, querida, isto para mim já não dá”.

Foi antes de eu ganhar coragem para confrontar a Andreia com o cadáver putrefacto daquela que fora um dia a nossa relação que a Elisa surgiu na minha vida. Na verdade, a Elisa não surgiu “na minha vida”. Surgiu no meu bairro. Cruzámo-nos pontualmente por causa de trabalhos que executámos nos mesmos locais, embora trabalhássemos em áreas distintas - eu no audiovisual, ela em comunicação organizacional.

A princípio, reparei na Elisa porque a achei bonita e tímida, quase infantil. Agora que penso melhor no assunto, acredito que aquilo que me levou a reparar nela foi a minha solidão. Tão simples quanto isso. A minha relação com a Andreia tornara-me solitário há tanto tempo que qualquer olhar feminino na minha direção, qualquer esgar de atenção, qualquer palavra que me fosse direcionada seriam suficientes para me captar a atenção da maneira mais fervorosa. Ser notado por uma mulher, acho eu, era razão de sobra para me fazer apaixonar por ela.

A Elisa reparou em mim. Dizia-me “Eduardo, tu és tão talentoso”, incentivava-me, “Eduardo, porque não tentas?”, “porque não mostras?”, “porque não apresentas?”, “porque não te promoves?”. Elogiava-me, “És um homem sensível”, “tens a capacidade de ver o que poucos veem”. Aproximava-se de mim, sentava-se a conversar comigo, fazia-me confidências. Vim, mais tarde - demasiado tarde - a perceber que era muito seletiva nas confidências que me fazia.

À medida que eu e a Elisa nos aproximávamos, aumentava a minha necessidade de deixar tudo claro entre mim e a Andreia. De dia para dia, as coisas entre nós faziam cada vez menos sentido, até ao ponto de se tornar francamente absurdo pensar que aquilo que havia entre nós era uma relação. Até podia ser, mas na mesma medida em que eu e o meu vizinho das traseiras, que encontro uma ou duas vezes por mês, temos uma relação: sim, dizemos “olá, então como é que isso vai” um ao outro, mas sem esperar qualquer tipo de resposta franca e sincera - não queremos desse encontro fortuito e inevitável nada mais do que a compreensão diplomática da existência um do outro, manifestada numa frase curta e inócua, como “então, até logo, gosto em vê-lo”.

Acabei tudo com a Andreia. Fui sincero, disse-lhe o que pensava e sentia, embora não tivesse na altura a clareza de ideias que tenho hoje, agora que passaram mais de seis meses desde que tudo entre nós acabou. Ela aceitou com uma estranha frieza. Talvez já estivesse à espera. Talvez eu lhe tenha poupado a maçada de ser ela a dar-me com os pés. Pouco importa.

Quando efetivamente nos separámos, senti-me livre. Parece metáfora, mas não é: senti, de facto, o o que é não ter ninguém, a liberdade de não ter responsabilidade por nem para com, de não dever satisfações a. E foi então que, pela primeira vez, compreendi que estava apaixonado pela Elisa e que tinha, até então, escondido os meus sentimentos, que não admitia nem a mim mesmo.

Quando se passa muito tempo numa relação assente no marasmo de não acontecer coisa absolutamente nenhuma e de conviver bastante bem com isso, perde-se a prática e a sensibilidade para saber como concretizar a aproximação a alguém de uma forma romântica. Dei então por mim a experimentar a difícil arte do galanteio como se tivesse chegado a 2025 vindo diretamente do século XVIII. Eu, antiquado, destreinado e 14 anos mais velho do que a Elisa, tentava insinuar-me sem ser explícito, tentava mostrar-me interessado sem parecer desesperado. E, acima de tudo, tentava comunicar com ela sem ser mal entendido.

Elisa acolhia as minhas investidas com grandes sorrisos. Eu sentia que ela gostava de mim. Imaginei que fosse, tal como eu, uma alma solitária à espera que o cosmos ou o destino lhe pusessem no caminho alguém que a fizesse sentir amada. E esse alguém seria, sem dúvida, eu. A Elisa mexeu comigo de uma maneira que eu nunca tinha sentido. Atraía-me, mas era também muito mais do que isso: fazia-me querer acordar mais cedo, dava-me, sem que soubesse, claro, razões para estar feliz com a vida. A Elisa era o sopro que faltava ao meu espírito.

“Posso ir ter contigo?” A pergunta continuava em suspenso, aguardando uma resposta que se demorava, que hesitava, que se escrevia e se apagava e voltava a escrever-se. Até que insisti: “Então, posso?” “Olá, Eduardo” - assim que li o início, pressenti o pior: a distância, o tom de quase desconhecidos, a formalidade forçada, tudo terríveis pistas. “Hoje não consigo. Estou fora da cidade, vim ver o meu namorado. Mas fica para uma próxima. Beijinho.”

A Elisa, que durante meses falou comigo, que me fez revelações e confidências, que me criou ilusões e permitiu aproximações, a essa Elisa nunca tinha ocorrido que talvez fosse relevante deixar-me saber que ela tinha um namorado.

Sim, continuamos a falar, eu e a Elisa. Só que não é a mesma coisa, nunca mais vai ser. E não vou esconder que ainda gosto muito dela. Mas remeti-me ao estatuto de solitário. Prefiro estar só a viver infeliz ou a ser magoado injustamente.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado. 

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