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Família: tão longe e tão perto

Seja por força da emigração ou por constrangimentos profissionais, há famílias que a distância forçou a uma nova forma de organização. Em muitos lares nacionais vive-se a dois tempos: o da partida e o do regresso.

23 de fevereiro de 2016 às 07:00 Máxima

Todas as noites, a rotina repete-se. De um lado Paulo Fernandes, do outro a mulher e os filhos. Por volta da hora do jantar, o pai senta-se à mesa. E ainda que os mais de cinco mil quilómetros que os separam não permitam que

partilhem a refeição, nenhuma fronteira é capaz de os impedir de estarem juntos. Umas vezes mais cedo, outras mais tarde, para que o pai possa contar uma história aos filhos ou simplesmente conversarem sobre as aventuras do dia, o computador liga-se e o FaceTime permite juntar o que a distância separou. É assim há já sete anos, desde que Paulo Fernandes começou a trabalhar em Angola. Por cá ficou a mulher, Joana Gonçalves. Mais tarde chegaram os filhos, Alice, de seis anos, e o benjamim da família, Vasco, de sete meses. Uma vivência que se faz a dois tempos: a três, quando o pai está longe, e a quatro, quando regressa.

"Tenho a sorte de trabalhar em Luanda um mês e estar depois outro mês em Lisboa, o que significa que nunca estamos distantes muito tempo", conta à Máxima Paulo Fernandes. Sete meses lá, cinco meses cá, que fazem das viagens, das despedidas e dos reencontros uma constante. O mais difícil é, além do afastamento da família, a sensação de nunca estar por completo em nenhum lado. "Tenho sempre a mala à porta, que quase nunca chega a ser desfeita na totalidade." No entanto, reconhece que a dificuldade é maior para o outro elemento do casal, aquele que fica e sobre quem recai, agora em exclusivo, a gestão do dia a dia: acordar cedo, preparar as crianças, levá-las à escola, regressar a casa, trabalhar, ir buscá-las, ajudar nos trabalhos de casa, dar os banhos... A partilha com o marido, essa, faz-se através de um ecrã. "Todos os aspetos que caracterizam a dinâmica de uma família nuclear tradicional têm de ser flexibilizados e reajustados", confirma Rita Fonseca de Castro, psicóloga clínica especializada em terapia familiar da Oficina de Psicologia. "Falamos de limites – que passam a ser definidos muito para além das fronteiras da casa onde a família reside –, de hierarquia, comunicação, regras, papéis e funções. Não se pretende, nem se espera, que os elementos que ficam no país de origem assumam o papel e as funções do elemento que se ausentou e, muito menos, que o substituam, mas o elemento que fica terá forçosamente de assumir um papel duplo com muitas tarefas quotidianas antes repartidas." É a Joana Gonçalves que cabe resolver tudo, pelo menos enquanto a cara-metade está longe. Os problemas, os dramas, as complicações. Há dias mais difíceis, dias mais longos, dias em que, confessa, "sentimos mais a falta do outro. Quando há qualquer coisa que se altera... Por exemplo, o Vasco esteve doente e eu não tinha com quem me revezar, o que se torna fisicamente extenuante".

Rita Fonseca de Castro não tem dúvidas que as distâncias criam "uma nova forma de organização familiar ou de tipologia familiar", que não só "remete para a divisão de tarefas, mas para várias outras dimensões, das quais um exemplo será a imposição de regras e limites – que podem ter sido negociados e estabelecidos por ambos os progenitores, mas que têm de ser impostos no quotidiano apenas pelo elemento que está presente". Mais ainda: "No que diz respeito às tarefas, poderá haver uma sobrecarga efetiva para quem fica."

"Como qualquer outra situação de crise ou transição na vida de um indivíduo ou de uma família, a emigração acarreta riscos para a saúde mental, tanto dos que ficam como de quem se

ausenta", alerta Rita Fonseca de Castro. "A saída do país cria forçosamente ruturas nos laços

familiares, afetivos e, até mesmo, culturais e linguísticos." Quem vai perde a rede de suporte, não sendo raros os momentos de solidão e até

mesmo, reforça a especialista, "de culpa por ter ‘abandonado’ a família". Contrariar estes sentimentos é possível, garante a psicóloga, devendo para isso promover-se "o contacto entre os vários elementos da família com a maior frequência possível, idealmente de forma presencial", até porque, "por mais evoluídas que as tecnologias estejam, dificilmente alguma conseguirá superar a presença física". Importa apostar na qualidade das relações e "independentemente da idade das crianças, este tema deve ser alvo de uma comunicação aberta e de esclarecimento de quaisquer dúvidas que

possam surgir entre todos os elementos da família".

Maria Romeiro, 62 anos, tem por cá o marido. E a filha. Mas lá longe estão o filho, a nora e a neta, de 15 meses. As visitas são, tanto quanto possível, regulares – três a quatro vezes por ano –, mas as quatro horas de voo que os separa mudaram as rotinas da família. O telefone toca, invariavelmente, todas as manhãs. Varsóvia, na Polónia, fica então apenas à distância de um telefonema que substitui as conversas que antes tinham frente a frente. "Não costumava falar tanto ao telefone. Quer dizer, falávamos regularmente quando eles estavam cá, mas agora passo horas agarrada ao telefone", refere. Ao fim do dia, é a vez do Skype entrar em ação. O computador já foi um bicho-de-sete-cabeças. Agora, depois de um curso que ajudou a desvendar os mistérios da informática, serve de janela para acompanhar o que se passa lá longe, encurta as distâncias e ajuda a matar saudades. "Foi através do Skype que vimos a bebé a mandar beijinhos pela primeira vez", recorda.

Os almoços de domingo, pretexto para juntar toda a família, acontecem agora mas apenas quando a outra parte da família, já carinhosamente apelidada de "os polacos", regressa a casa. "Nessas alturas, tudo gira à volta deles. Fazemos o máximo de coisas juntos para compensar o tempo em que estamos afastados."

O cenário não é novo. Portugal conhece-o bem ou não fosse este um país de emigrantes. É certo que o passar dos anos mudou as condições oferecidas a quem parte, mas a separação é inevitável e a saudade, ainda que mitigada pelas novas tecnologias, não há nada que a mude. Em 2013, contavam-se 74 322 portugueses que fazem parte de uma emigração que se assume, lê-se na reflexão escrita pelo investigador Jorge Malheiros (Portugal 2010: O Regresso do País de Emigração), como "temporária e não definitiva, facto que também é favorecido pelas possibilidades de livre circulação".

RELAÇÕES À DISTÂNCIA

"Sou mãe e avó à distância", ironiza Maria Romeiro, incapaz, no entanto, de esconder alguma mágoa. Até porque, confirma Rita Fonseca de Castro, "os impactos emocionais que decorrem deste tipo de situação são inevitáveis", sendo mesmo "exacerbados quando a saída do país é motivada por fatores externos, como o desemprego ou as dificuldades financeiras, sobre os quais a pessoa pode sentir que não detém qualquer controlo, sentindo assim que a separação dos seus familiares não é uma escolha livre mas uma escolha pela sobrevivência". Um impacto que, defende, "pode fazer-se sentir de forma distinta nos diferentes subsistemas

familiares" e que se traduz, invariavelmente, "em sentimentos de tristeza, nostalgia ou saudade, mas também revolta, frustração ou, mesmo, zanga". Hoje, Alice, filha de Paulo Fernandes e Joana Gonçalves, tem seis anos e desde sempre teve o pai longe. "Já nasceu comigo em Angola", conta Paulo. Tempos houve em que "dizia que o pai trabalhava no aeroporto", resultado das muitas viagens que o tiveram como destino. Até porque o casal sempre fez questão que ela o fosse levar e buscar. Momentos que se tornam agora mais difíceis. "Na viagem de regresso do aeroporto fica triste e chora um bocadinho."

Depois, há os reencontros. "O mês em casa é passado em função das necessidades deles. Nesse mês eu é que trato de tudo: faço as compras, levo os filhos à escola, tento compensar passando o máximo de tempo com  eles", esclarece Paulo Fernandes, que não esconde o desejo de encontrar um trabalho que lhe permita estar sempre com a família. "Ao longo destes anos vamos pensando nos prós e nos contras. Sobretudo quando as coisas correm menos bem, pensamos se tudo isto se justifica." Joana Gonçalves concorda que há momentos em que percebe "que isto é pouco consistente. O que nos dá esperança de continuar é o regresso".

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