Crush #1
Uma jovem cantora capaz de desafiar a sociedade francesa, dois russos que veem nas flores uma forma de expressão artística, um cantor que podia ser tanto um rapper como crooner da memória portuguesa. Homenageamos ainda um fotógrafo que nos deixou um legado de talento. O nosso primeiro Crush é escrito a partir deles.

Um crush é alguém por quem serias capaz de fazer qualquer coisa. Alguém que não consegues esquecer. Alguém em quem estás sempre a pensar.
Yseult, de voz e corpo

Acontece algo quando ouvimos a voz de Yseult. A cantora surge quase sempre acompanhada de um piano, como dita a tradição de um género musical bem clássico, a Varieté Française — podia ser Edith Piaf. Há a mesma gravidade ou potência na sua voz, ela consegue mergulhar-nos em estranhas paisagens sentimentais. O seu corpo exprime autenticidade. Yseult celebra a realidade que se impõe – felizmente – nos média dos últimos tempos. Um corpo negro, que vive plenamente as suas formas. Os padrões de identidade e género de outrora são agora questionados. Yseult apresenta-se sem filtros, fala de saúde mental nas letras que escreve e questiona o olhar alheio. Filha de emigrantes, cresceu no norte de França. Tornou-se conhecida do público em 2013, através de um concurso de talentos na televisão, para depois desaparecer e autoproduzir-se longe das grandes editoras. No último ano lançou dois EP´s, Brut e Corps.

Quando em fevereiro, ganhou o prémio revelação nos tão cobiçados Victoires de La Musique, as redes sociais em França tentaram diminuir o seu discurso. Diziam já não poder queixar-se de racismo, pois tal distinção era uma prova de integração. A presença de Yseult na cerimónia desafiou um país onde a extrema-direita se aponta como finalista nas presidenciais de 2022. Dizia no seu discurso de vitória: "quero que toda a França oiça que a minha raiva é legítima, a nossa raiva é legítima. O nosso combate vai encontrar percalços, mas temos de nos unir. Este prémio é para os meus irmãos e irmãs." As suas atuações nessa noite foram revestidas com tons nude, em silhuetas imaginadas pelo novo designer da Mugler, Casey Cadwallader — outro nome que vamos querer guardar connosco.


CENTÁ, mais do que flores
"Há pessoas que fazem com tinta e cores o que nós fazemos com flores", diz Viktor, na minúscula e luminosa loja que abriu com a sua companheira Lera no bairro de Santos, em Lisboa. Ele é cabeleireiro, ela foi florista em Moscovo — a cidade que os apresentou. Em 2019, mudaram-se para Portugal. Viktor evoca a vida próxima do oceano como uma das razões da mudança. O que podem trazer flores ao nosso quotidiano? "Há alguma astrologia que refere a presença de flores como benéfica, há também o cheiro que deixam no ar e…Estas cores todas" — diz Viktor. Lera olha-o atentamente, junta palavras em russo às frases que Viktor pronuncia em inglês. Os dois floristas trabalham uma paleta de cores original, as composições que ambos inventam podiam ser peças de uma instalação, e eles inspiram-se em tudo. O Instagram de CENTÁ é a prova disso. Há zonas da cidade, esquinas de prédios ou elementos da Natureza que lançam o mote.

A música também pode ser um ponto de partida. Enquanto os entrevistamos ouvimos Lança Perfume, hit da icónica e delirante Rita Lee. Não parecem haver acasos na CENTÁ. O dia cinzento e chuvoso em que falámos com o casal ganha de repente toda uma nova energia de entusiasmo. Ali também se bebem cocktails com notas florais, as receitas vieram da Rússia. Perguntamos se CENTÁ poderá ser um sítio para começar a noite, quantos a pandemia sem fim acabar? Afirmativo. E Viktor lança uma provocação, "Porque não beber um cocktail também de manhã? Afinal os nossos sabores são bastante suaves". Compramos a ideia.

O bairrismo lírico de Pedro Mafama

A última vez que falámos publicamente com Pedro Mafama foi em 2016 para Nocturama (publicado na Vogue Portugal), a sua música ainda estava guardada numa gaveta. Pedro tinha o projeto de criar uma marca de roupa em que se misturava streetwear com a História de Portugal. Passámos uma noite a vaguear com ele nos arredores de Lisboa. Mafama dizia-nos, "podemos aprender a partir de nós próprios e reconciliar o passado com o presente. Deixar de pensar que é uma contradição".

Não o perdemos de vista desde então, e foi com entusiasmo que vimos os seus singles Jazigo ou Lacrau, ganharem as ondas das rádios alternativas. A sua colaboração com Dino D’ Santiago na canção Sô Bô prometia outros voos. E Pedro chega agora com Estaleiro, vídeo magnificamente realizado por André Caniços, recuperando uma versão contemporânea dos cenários do Teatro de Revista ou do Cinema clássico português. As ideias acutilantes que nos surpreendiam em 2016 ganharam forma com um lirismo surpreendente. A sua música electrónica mistura-se com referências tradicionais portuguesas e sons magrebinos. O álbum Por Este Rio Abaixo promete contar os dias em que Pedro, sem rumo nem futuro, percorria o bairro da Graça onde cresceu. Olhava para uma Lisboa em decadência, "com sonhos altos mas uma força de execução quase nula". Acreditamos na clareza do olhar de Pedro, e na forma como ele absorve o mundo. O álbum chega em breve.

Adeus Lisboeta Italiano. REST IN POWER
Era frequente cruzarmo-nos com a sua lente nas noites de Lisboa ou do Porto. André Miguel tinha 25 anos, era fotógrafo e assinava as suas fotografias com o alter ego Lisboeta Italiano, através do qual tentava retratar o mundo da noite, e os que o rodeavam. Apesar da sua alta estatura, André conseguia passar despercebido no meio das pistas de dança onde se movia. Éramos muitas vezes surpreendidos pela sua voz, "como estás?" — perguntava timidamente.

As suas imagens gritavam desejo, continham sensações de alegria e realização. A assinatura do Lisboeta Italiano era bem pessoal, atiçava a vida com curiosidade. Numa narrativa consistente e prolífica, fazia muitas vezes eco ao hedonismo de Dash Snow e Ren Hang, dois fotógrafos que também deixaram o mundo cedo demais.

Em março de 2021, durante uma caminhada, André teve uma paragem cardiorrespiratória, deixando a vida dos que o amavam em suspenso. O Coletivo Prometeu, do qual fazia parte, pede agora apoio na construção de um túmulo para o homenagear. Assim, foram disponibilizadas edições limitadas de algumas das fotografias de Lisboeta Italiano. Para contribuir entre em contacto com: coletivo.prometeu@gmail.comPodemos ver de perto o trabalho do fotógrafo em As mãos do André, exposição em homenagem ao trabalho do Lisboeta Italiano, patente na Galeria Bardo Creative Ground, no Porto, até dia 7 de maio.
*Definição de crush pelo Urban Dictionary
