O nosso website armazena cookies no seu equipamento que são utilizados para assegurar funcionalidades que lhe permitem uma melhor experiência de navegação e utilização. Ao prosseguir com a navegação está a consentir a sua utilização. Para saber mais sobre cookies ou para os desativar consulte a Politica de Cookies Medialivre
Atual

Crónica Isabel Stilwell. Carta aberta a maridos que não acreditam que o calor mata

Crónica sobre calor, maridos, mulheres e ondas de calor em Portugal
Crónica sobre calor, maridos, mulheres e ondas de calor em Portugal Foto: "O Sexo e a Cidade"
26 de junho de 2025 às 10:28 Isabel Stilwell

Há maridos que estão plenamente convencidos de que o não existe e, já agora, que o frio também não. “Só sente o calor e o frio quem quer” é basicamente o seu mantra. Não vão ao ponto de ignorar os graus que o termómetro regista, mas negam em absoluto as suas implicações práticas — nunca está calor demais para sair à rua, para ir à praia ou fazer seja o que for. Nem que justifique um cobertor sobre as pernas.

Quando estes homens têm o azar de ser casados com mulheres de termóstato supostamente sensível, o conflito é inevitável. Quando ela se queixa de que o bafo quente de um dia de 35 graus a impede de respirar, que o calor lhe baixa a tensão arterial ao ponto do desmaio, quando refila que não consegue dormir há cinco noites, eles desvalorizam com uma frase que enlouquece as mais serenas: “Calor? Não está assim tão mau!”. E dois minutos depois, sugerem um piquenique à torreira do sol, como se o que ela acabou de lhe dizer fosse totalmente irrelevante ou, na melhor das hipóteses, resultado de um pico que já passou.

Mas o mais estúpido, o mais absurdo, é que as mulheres em lugar de lhes virarem as costas, marchando para um quarto com ar condicionado ou apanhando um avião para paragens mais frescas, dão-se ao trabalho de argumentar. Sacam, por exemplo, da sua aplicação de meteorologia — a versão primitiva da mais sofisticada que eles trazem no relógio de pulso, evidentemente — e começam a debitar a temperatura, o “Real Feel”, a inexistência de humidade, o que for, progressivamente mais desesperadas à medida que percebem que lhes está a entrar por um ouvido e a sair pelo outro.

Mesmo assim não desistem: passam de seguida para o ChatGPT, citando estudos científicos que confirmam que as mulheres acumulam mais calor porque transpiram menos do que os homens (verdade), que as mulheres têm tendencialmente uma pressão arterial mais suscetível às altas temperaturas (verdade), e que à medida que envelhecem tendem a ser elas a morrer nas ondas de calor (em parte, porque os homens já se foram, de outras causas, detalhe que obviamente omitem). E os homens, presos no seu paternalismo insuportável, fingem que ouvem, acenando com a cabeça, em variantes mais ou menos subtis de “Lo que tu digas, cariño!”. Quando, elas finalmente se calam, eles limitam-se a perguntar: “Mas afinal, ficas ou vais?” Como se elas não lhes tivessem acabado de anunciar a sua morte iminente, deixando-as com a suspeita de que secretamente a desejam.

O mais curioso é que a discussão se repete em todos os dias quentes do Verão e, o que é ainda mais extraordinário, nos mesmos locais, porque não é o facto de elas se sentirem como aqueles pobres cães de raças nórdicas que os donos levam para o Algarve, que deixam de voltar ao local do crime.

Mas o que me importa agora é analisar o fenómeno à lupa. Porque raio nos deixamos arrastar constantemente para este tipo de conversas desgastantes e inúteis, que aliás têm paralelo naquelas em que nos queixamos de exaustão ou de que nos dói aqui ou ali? Porque é que nos eriçamos a discutir o que devia ser apenas uma constatação do que sentimos, sem ser necessária qualquer justificação? Tenho calor, ponto. Tenho frio, ponto. Estou cansada, ponto. Dói-me o estômago, ponto final.

A minha hipótese é que continuamos assombradas pelos epítetos que ouvimos durante décadas, que nos foram transmitidos pelas nossas próprias mães, que também se deixavam escravizar por eles. Temos terror de que nos apelidem – de nos apelidarmos a nós mesmas! — de histéricas ou fraquinhas, de desmancha-prazeres ou caprichosas. Fomos criadas para aguentar, para suportar tudo, para concorrer com os homens, fazer o que eles fazem, tão bem ou melhor. Por isso não nos basta constatar o facto de que o nosso corpo não aguenta MESMO o calor, que o trabalho e os filhos nos deixam de língua de fora, não basta a nossa palavra, precisamos de um “atestado médico”, precisamos de que os homens da nossa vida reconheçam e confirmem que “não é fita”, que realmente não aguentamos mais. De uma validação exterior, de autorização para nos sentirmos como sentimos. É patético, mas é tão verdade.

Talvez entendendo o que vai nas nossas cabeças consigamos ser mais assertivas com boas maneiras, sem a agressividade que tantas vezes pomos na nossa reação, tal a frustração de que o outro não entenda o que, nós mesmas, muitas vezes não sabemos explicar. Vem aí uma onda de calor, e depois desta virão mais por este verão fora, temos muitas oportunidades para começar a treinar. Mais vale um “não”, dito com calma, do que um “sim”, seguido de mil lamúrias e acusações. Toda a gente agradece.

Leia também
As Mais Lidas